Os
Missionários Combonianos foram acolhidos entre o povo Nuer, no Sudão do Sul, em
1996. Desde então eles assumiram os cuidados pastorais da Paróquia São José
Operário na missão de Leer, a qual pertence à Diocese de Malakal e corresponde
a uma extensa área territorial de quatro municípios. As pessoas que vivem na missão
são todas da tribo Nuer, uma etnia do grupo nilótico, também conhecidos como pastoralistas
ou semi-nômades. O povo Nuer forma o segundo maior grupo étnico do Sudão do Sul
e a sua maioria ainda não foi evangelizda. A missão de Leer, portanto, é uma
missão de primeira evangelização, muito desafiadora e estressante, mas também é
uma missão muito bonita e cativante.
AVENTURA DRAMÁTICA Eu cheguei à
missão de Leer em julho de 2010. Foi lá que iniciei minha aventura missionária
na África. Uma aventura é normalmente algo vivido com muita animação e diversão,
mas também pode ser uma situação a ser vivida de forma muito dramática.
Recentemente eu vivi uma dessas experiências. Uma aventura daquelas que a gente
nunca esquece. Estava acompanhado de um grupo de Missionários Combonianos,
Irmãs Missionárias Combonianas e mais algumas outras pessoas. A estória aconteceu
na missão de Leer, estado de Unity, numa região rica em petróleo que fica no
Sudão do Sul, a nação mais jovem do mundo. Eu gostaria de partilhar essa
estória com vocês.
Somos cinco Missionários Combonianos que trabalham
na missãode Leer: Pe. Francesco Chemello (Itália), Pe. Raimundo Rocha (Brasil),
Pe. Yacob Solomon (Etiópia), Ir. Nicola Bortoli (Itália) e Ir. Peter Fafa
(Togo). As Irmãs Missionárias Combonianas que atuam em Leer são a Ir. Agata
Catone (Itália), Ir. Carmirta Júlia (Equador), Ir. Laura Perina (Itália) e Ir.
Lorena Morales (Costa Rica). Em janeiro de 2014 o seminarista maior Comboniano,
Ketema Dagne (Etiópia) e o Pe. Michael Barton (USA) chegaram à missão para
aprender a língua Nuer. Também os padres Stephen,
Joseph Makuey e Ernest Adwok, da
Diocese de Malakal (Paróquias de Mayom e Rubkona), foram acolhidos na
missão e com eles um casal e uma
senhora com sua filha de 17 meses. Chegaram a Leer fungindo da guerra. Todos
viveríamos a mesma aventura e provação.
CONFLITO Antes, porém, aconteceram alguns fatos que
eventualmente fizeram suscitar uma guerra civil no país. O Sudão do Sul tem
apenas dois anos e meio de independência e passa por um processo de construção
de nação. A independência aconteceu no dia 9 de julho de 2011 depois de uma
longa guerra civil de 21 anos. O país está entre um dos mais pobres do mundo e
há tempos vinha enfrentando crises políticas e financeiras que muito ameaçavam sua
estabilidade. Em julho de 2013 o presidente Salva Kiir depôs o vice presidente,
Dr. Riek Machar. Ambos são membros do mesmo partido político (SPLM). O
presidente é da etnia Dinka e o vice deposto pertence à etnia Nuer. As duas
formam as maiores tribos dentre os mais de 60 grupos étnicos do país.
Tensões foram
aumentando dentro do governo e a crise no partido foi se agravando.
Infelizmente os membros partidários não foram capazes de resolver suas
diferenças através do diálogo e no dia 15 de dezembro de 2013 uma onda de
violência se instalou em Juba, a capital do país. Tudo começou com uma briga
armada entre a guarda presidencial, em que muitos são Dinkas, e membros do
exército da etnia Nuer. O exército foi dividido entre forças leais ao governo e
forças leais ao ex-vice presidente. Por causa disso, dezenas de milhares de
pessoas viriam a ser mortas, quase um milhão forçadas a deixar suas casas e se
refugiar no mato, bases da ONU ou em outros países. Muita destruição e saques viriam
a acontecer em boa parte do país.
Os conflitos
começaram em Juba, mas rapidamente se espalharam por outras regiões e agora se
concentram nos três estados produtores de petróleo: Jonglei, Upper Nile e
Unity. Isso não é por acaso. Existem muitos intereses políticos e económicos
por trás dessa briga de poder. O petróleo é a principal fonte que alimenta a
economia do país, uma riqueza natural na qual muitos querem colocar suas mãos
ganaciosas. Os conflitos até certo ponto ganharam uma dimensão étnica envolvendo
as duas maiores tribos: Dinka e Nuer. Porém, as causas dos conflitos são na
verdade políticas e motivadas por ganância e interesse de indíviduos ou grupos.
Na noite de
15 de dezembro e nos dias que se seguiram, centenas de inocentes civis foram
mortos em Juba. Ao que tudo indica muita gente foi atacada e morta com base na
sua origem étnica. Mulheres foram violentadas, casas saqueadas e queimadas.
Dezenas de milhares, sendo a maioria membros da etnia Nuer, procuraram refúgio
nas bases da ONU, tanto em Juba quanto em todas as outras zonas atingidas pelos
conflitos. Outros milhares fugiram para os países vizinhos. A maioria dos
estrangeiros que estavam no país foi evacuada para seus países de origem. A
crise política e briga de poder que aconteceu em Juba fez gerar um guerra que espalhou
muito medo, violência, morte, destruição e incertezas pelo país.
LEER Apesar dessa situação apavorante em Juba e
outras partes, a vida seguia relativamente normal na missão de Leer e nós
continuamos com a nossa rotina. Porém, quando se aproximou o natal, aumentaram
as tensões e medo de que os conflitos chegariam a Leer. No começo de janeiro
2014 a cidade de Leer acolheu milhares de pessoas que fugiam dos conflitos em
Bentiu e região norte do estado de Unity. Leer é rodeada por pântanos e
isolada, mas acessível desde Bentiu. Nosso grupo de missionários começou a
ficar preocupado com a situação. No meio de medos e tensões resolvemos ficar na
missão como um sinal de esperança e solidariedade para com o nosso povo.
Até esse momento
nossa aventura missionária em Leer assemelhava-se a qualquer outra vivida por
missionários engajados com uma missão de primeira evangelização entre povos
pastoralistas. O povo estava feliz com nossa presença missionária. Muito trabalho
tinha sido feito na missão, sobretudo no campo da formação de lideranças,
sacramentos e promoção humana (educação). Algumas estruturas em material
permanente tinham sido construídas e muitas lideranças receberam treino para
serem catequistas e evangelizadores. A igreja local estava crescendo e tínhamos
muitos planos para o futuro. Porém, um novo e doloroso capítulo na história da
missão de Leer seria aberto pela guerra.
FUGA O ambiente ficava cada vez mais tenso e
perigoso. A insegurança era imensa. A comida ia ficando mais escaça. Isso fez
com que o povo fugisse para o mato. Resolvemos fazer o mesmo. Dois fatores foram
determinantes para a nossa fuga. Primeiro, a pressão recebida por parte de
soldados rebeldes e civis armados. Os rebeldes controlavam a cidade e
insistentemente queriam os carros da missão. Queriam também saquear toda a
missão. No dia 29 de janeiro cinco grupos de soldados (alguns bêbados) e alguns
civis vieram à nossa residência exigindo os carros. Conseguimos a muito custo
convencê-los de não levar os carros da igreja. Depois de receber água e comida
partiram. A essa altura todas as ONGs que atuam em Leer tinham evacuado seus
funcionários e suas dependências tinham sido completamente saqueadas. Por causa
dessa situação de insegurança achamos que não daria mais para resistir a tanta
pressão.
O segundo
fator para a fuga foi uma informação que recebemos na noite do dia 29 de
janeiro dizendo que combatentes Darfurianos (da região de Darfur, no Sudão)
estariam na linha de frente das forças do governo que avançavam. A maioria são mulçumanos
e não respeitariam ninguém da igreja. Eles atacariam, destruiriam e até
matariam quem encontrasse. Sentimo-nos inseguros e vulneráveis, sem proteção
alguma. Essa situação nos obrigou a deixar a missão. Foi uma decisão muito dura
e dolorida. Partimos e a viagem pelo mato foi também difícil. Era terreno de
areia e trechos com lama. Finalmente chegamos ao nosso destino, uma comunidade
distante com uma capela. A comunidade cristã nos recebeu bem e ali nos sentimos
aliviados e ‘seguros’. O pior, porém, ainda estava por vir.
MILAGRE Algumas horas após a nossa partida, a missão
foi saqueada. A expectativa do nosso grupo era que as forças do governo
avançassem rumo a Leer pela estrada principal. Porém, uma hora após nossa
chegada ao local os rebeldes Darfurianos, vindos pelo mato com as tropas do
governo, atacaram o nosso grupo. Eles já chegaram atirando em nós. Podíamos
ouvir o som das balas acima de nossas cabeças enquanto corríamos para o mato. O
grupo espalhou-se e perdemos contatos uns com os outros. Cada um de nós pensava
que os demais haviam sido mortos. Graças a Deus ninguém morreu. Aos poucos conseguimos
nos juntar já ao anoitecer. A exaustão e o medo eram grandes. Não tínhamos
dúvidas, se estávamos vivos foi porque Deus fez uma milagre naquele dia. Estávamos
com medo, mas não em desespero. Sentíamos fortemente a presença de Deus.
Dois dos três
carros da missão, carregados de comida e outros bens, foram levados. O terceiro
carro foi incendiado porque os guerrilheiros não conseguiram por o carro a
trabalhar sem a chave. Perdemos quase tudo. Ficamos sem poder fazer nada e
vulneráveis. Não tínhamos nada em que confiar, a não ser em Deus. Passamos a
noite no terreiro de uma casa próxima cujos moradores também correram para
escapar dos tiros. Dormimos no chão frio sob o ataque dos mosquitos e sem
comida. No dia seguinte logo de manhã cedo partimos dali guiados por dois
catequistas e algumas mulheres até chegarmos a uma localidade distante e
aparentemente segura. Não demorou muito para outras famílias em fuga se
juntarem a nós. Formamos uma pequena comunidade, todos partilhando do mesmo
destino e aprendemos lições enormes de solidariedade. Comida, remédios, roupas,
lençóis e mosquiteiros eram partilhados entre os que mais precisavam. Ao fim de
cada dia uma outra partilha: a Santa Eucaristia era celebrada. As orações e o
espírito de comunidade mantinham viva a nossa esperança.
INCOMUNICADOS A falta de comunicação foi outro desafio muito
grande nessa aventura. Sem telefone, ninguém sabia se ainda estávamos vivos ou
qual seria nossa localização. Depois de doze dias e de uma longa procura, um
telefone via satélite foi encontrado e contatos foram feitos com os
Missionários Combonianos de Juba. A partir desse momento sentimo-nos mais
tranquilos e as esperanças de sermos resgatados aumentaram. Porém, ainda
levariam alguns dias até isso acontecer. Por medo ninguém se arriscava a ir à
cidade até que uma senhora se prontificou a levar uma carta ao Comissário de
Leer para saber se a cidade era segura o suficiente para o nosso grupo se
descolar até lá e ficar na residência da missão. Recebemos uma resposta
positiva e imediatamente nos pusemos em marcha. Após quatro horas de caminhada,
chegamos a um acampamento militar onde ficamos aquele dia e noite. No dia
seguinte conseguimos chegar a Leer e cinco dias depois fomos evacuados para
Juba em aeronaves da missão de paz das Nações Unidas.
AMADOS E PROTEGIDOS Enquanto vivíamos
essa aventura sentimos muito medo, mas também sentimo-nos tão amados e
protegidos por Deus. A solidariedade de muitas pessoas simples foi imensa. Além
disso, ao fazermos a escolha para ficar com o povo naquela situação sentimos
que estávamos fazendo a coisa certa como filhos e filhas de São Daniel Comboni.
Comboni fez causa comum com os mais pobres e abandonados dessa terra e incasavelmente
trabalhou para e com eles. Por fim doou sua vida. Nossa presença na missão
durante esse tempo de guerra não era somente para proteger a igreja e propriedades
da missão. Era também para ser sinal de esperança para o povo e ser voz aos que
não tem voz, para dizer ao mundo o que estava acontecendo ao povo durante a
guerra através do serviço de internet da missão, o único meio de comunicação
que tínhamos funcionando.
ABRAÇO CORDIAL A vida missionária é sempre bonita e
apaixonante, mas também é uma aventura cheia de desafios, especialmente em
situações de guerra. Não existe lugar para ‘romantismo’.
É missão dura. O missionário tem que abraçar a missão com um coração bravo e
amoroso. Na missão procuramos responder ao chamado de Deus para nos fazermos
solidários com os mais pobres e esquecidos do mundo. Abrimos nossos corações e
nossa missão para acolher a todos, independentemente da tribo, raça, religião e
afiliação política. A vida deve vir em primeiro lugar. Nessa aventura partilhamos
das dores, alegrias e esperanças do povo. Às vezes é preciso arriscar nossas
vidas para que o povo viva.
Na missão vivemos
situações em que somos levados a sofrer e a enfrentar momentos muito difíceis,
mas o fazemos com alegria porque fazemos o que devem fazer os discípulos de
Jesus de Nazaré. Somos evangelizadores, mas o povo também nos evangelizou
durante essa aventura missionária. Eles partilharam de sua pouca comida para
nos manter vivos. Arriscaram suas vidas para salvar a nossa. Fizemo-nos pobres com
os pobres e para os pobres, mas fomos enriquecidos com tantos sinais lindos do
Reino de Deus os quais foram revelados nas atitudes e simplicidades do povo de
Deus. A missão é como uma escola onde se ensina e se aprende, se evangeliza e se
é evangelizado.
VOLTAR Apesar de tudo o que passámos ainda temos a
esperaça de poder voltar à missão de Leer. No momento a situação não nos
permite. O povo continua refugiado no mato e pântanos. A insegurança é grande.
Um dia voltaremos ao nosso povo e continuaremos com o árduo, porém, necessário trabalho
de evangelização. Não perdemos a motivação missionária. Sempre haverá riscos,
mas Deus está conosco. Não temeremos porque é Deus quem nos chama e envia para
promover vida e paz onde há morte e violência. Precisamos discernir com
sabedoria quando será o momento mais apropriado para recomeçar. A pessoa de
Jesus Cristo precisa ser conhecida, amada e seguida por todos. O evangelho não
pode parar. O povo clama e não queremos nos fazer de surdos a seus clamores,
especialmente aos dos mais pobres.
Pe. Raimundo Rocha, Missionário Comboniano no Sudão do Sul
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