13 de julho de 2008

DARFUR

NAS MALHAS DA GUERRA

Ouvi distintamente o retinir de um contentor de água vazio no caminho pedregoso que me levava a Hai el Salam. Não olhei para trás; apenas me desloquei para a beira do caminho. O burro parou ao meu lado e uma voz convidou-me a subir para a carroça. Quem não conhece, em Nyala, a tão familiar carroça da água, que, desde manhãzinha ao pôr-do-sol, vai palmilhando ruas, caminhos e vielas na cidade e arredores?
Os meus olhos procuraram, em vão, um lugar onde me sentar. Mas não fiz disso motivo para recusar tão amável convite. Agradeci a mão do condutor que me ajudou a subir e, facilmente, ajeitei-me ao seu lado.
A carroça da água faz parte do quotidiano do Darfur. Fenómeno que se lhe possa comparar só o rakcha, triciclo motorizado com uma cobertura de lona, funcionando legalmente como meio de transporte público.
Sentado ao lado do jovem condutor, os meus olhos fixam-se na carroça, como se a vissem agora pela primeira vez. É uma caixa de folha metálica que o ferreiro transformou em contentor de água, assentando num eixo e duas rodas descartadas dos automóveis na sucata.
Naquela tarde, parece que não havia mais ninguém na rua onde a gente pusesse os olhos senão no estrangeiro sentado no topo da carroça-contentor de água. Os comentários abundaram, mas logo me habituei ao refrão:
- Maagul?! Shuf el khauaja el gharib da...! Possivel?! Não é coisa que se veja num estrangeiro!
Ao passar por casa da Farida, lá estava ela com os seus dois pequenos que a tinham chamado à porta. Deles ouvi palavras simpáticas:
- Wallahi jamil, ia abuna; queda quaiiess! Bonito de verdade, padre; assim está bem!.
De língua solta e palavra fácil, o Sabri – é este o nome do aguadeiro – não pára de falar, conversando simultaneamente comigo e os muitos amigos pelo caminho.
O animal de carga também faz parte da conversa mas, acaso não fosse pelo movimento do chicote no ar, não executaria prontamente as ordens do condutor.
- O burro vai num bailinho porque, graças a Deus, o contentor está vazio. Mas, quando está cheio, também tem força para mostrar. Ao voltarmos do poço do wadi, terás ocasião de ver que é verdade.
Outras carroças, irmãs da nossa, cruzam a passo lento e pesado. Vêm do poço do wadi, onde compraram água para mais um turno. Param à entrada desta e daquela porta, aligeirando a carga ao animal, a troco de 10 guirish por cada jerrican de água. O Sabri antecipou-se à minha pergunta e disse em forma de protesta:
- Preço demasiado barato. Além disso, o burro também não trabalha sem comer!
- Apesar de tudo, vejo que não tens urgência em mudar de emprego.
- Porque sei cativar a simpatia dos clientes. Se não fossem as gorjetas, já teria desistido.
O cruzamento à nossa frente, sem polícia nem semáforos, naquele momento, tornou-se demasiado pequeno e transformou-se enorme numa confusão. Um camião, automóveis ligeiros, carroças de cavalos, rakchas... Mas os burros com os seus contentores de água são a maioria. Está claramente visto ser eles a causa principal do engarrafamento e caos no tráfico. Os insultos enchem o ar, quase abafando o som das buzinas. Vêem-se chicotes e varapaus a querer fustigar não somente – pelo que parece – o dorso dos animais.
- Eh, Sabri, pára o animal! Vê lá onde te vais meter.
Mas o hábil condutor não necessitou da minha admonição. O asno obediente cortou à direita, na pequena e última oportunidade que lhe restou.
- Não achas que sois demasiadosos vendedores de água aqui em Nyala?
- Somos vários milhares. Há trabalho para todos e o número tende a aumentar. Desde que os Janjauids começaram os massacres nas aldeias é muito perigoso e arriscado viver fora da cidade. Mas aqui pode-se viver e trabalhar com certa segurança, mesmo que os aviões e helicópteros voem, baixinho, por cima das nossas cabeças.
- O teu nome árabe – Sabri – tem a ver com alguém que tem muita paciência, mas vejo também que a coragem é parte da tua bagagem.
- Por mais ruído e piruetas que façam no ar, o burro já se habituou. E eu também já não me assusto como antes.
Seguiram-se uns instantes de silêncio que Sabri interrompeu, com desilusão e tristeza:
- Não só não me assusto como antes mas quase não me importa saber se são aviões que vão atacar ou que vão socorrer. Às patrulhas dos soldados da paz (UNAMID) que vou encontrando no meu caminho tenho vontade de lhes gritar:
- Ide embora e não vos importeis com a paz no Darfur! Deixai cair sobre nós o destino dos muitos milhares de irmãos nossos que foram mortos nesta terra amaldiçoada!
A sua conversa continuou mas, desta vez, dirigida ao companheiro diário que puxa a carroça:
- Tu não sabes deste assunto, pois não?!.. És burro, mas vives feliz!
Depois de uma breve pausa, o meu amigo respirou fundo, olhou-me de frente e continuou no mesmo tom de desespero:
- Eu sei que a submissão a Deus é a base da nossa religião muçulmana. Porém, sinto uma revolta enorme quando recito a primeira sura do Alcorão em que louvo a grandeza de Deus Allahu Akbar, Deus é o Maior, ou simplesmente quando, na linguagem comum, agradeço com a frase típica também do sagrado Alcorão: El hamdu lillah, Graças a Deus. Acho impossível que, com tudo o que está a acontecer nesta terra do Darfur, Deus esteja do nosso lado.
Não obstante a fragilidade do momento e a delicadeza da questão para um muçulmano, ousei provocar o meu interlocutor:
- Será Deus que não está do nosso lado, ou serão os autores da guerra que não estão do lado de Deus?
Sabri não era dono de si mesmo para controlar as palavras que há pouco tinha pronunciado. Sinto o seu olhar confuso e exausto penetrar até ao fundo da minha alma. Tenho consciência da minha pobreza, mas sei que possuo um tesouro. O meu desejo e alegria é que a paz e a reconciliação que levo dentro de mim, fruto do Espírito de Jesus Cristo em quem eu creio, seja partilhado com este meu amigo sofredor.
O silêncio durou ainda alguns instantes. O animal, espontaneamente, parou. Penso no grupo de cristãos que estarão à minha espera. Mas, na presente circunstância, talvez eu seja melhor cristão se abdicar do meu apontamento para estar com Sabri.
Ele, muito agradecido, opôs-se totalmente:
- Gostaria de ir contigo até ao wadi mas, então, fica para outro dia. Obrigado pela boleia!”
- Foi bom estar contigo, khauaja, estrangeiro Desculpa lá a palavra, pois tu não és um khauaja como os outros. Sei que os cristãos te chamam abuna, mas eu não fui habituado assim. A nossa amizade não há-de ficar por aqui. Hei-de aparecer, um dia, na tua igreja, in cha Allah.
Mais uns minutos a pé e estou com o grupo dos pais dos baptizandos no centro católico de Hai el Salam.
Quando aviões e helicópteros voam baixinho, por cima das nossas cabeças, já não assustando o animal nem o seu dono...
Quando a vista e o ouvido ficam insensíveis e a pessoa se habitua à rotina da guerra...
Diz-se que o homem é um animal de hábitos. Deus nos livre de certos hábitos de consequências mortais.
Temo que muita gente aqui no Darfur se esteja a habituar à guerra. Há mortes pela espada ou catana, mortes pelo fogo, mortes pelas balas das kalashnikovs, mortos pela fome, pela tortura ou doença acelerada. Mas há outras mortes que não só a morte física. Vêem-se corpos ambulantes, mortos para uma vida digna dos humanos, aprisionados pela rede em que a guerra os deixou.
Os traumas psicológicos estão na ordem do dia. No momento em que escrevo está a decorrer um curso para animadores na sede da nossa diocese, em El Obeid. Nyala enviou três participantes que, por sua vez virão a contribuir para restabelecer, a nível local, a dignidade humana e o bem-estar psíquico das pessoas traumatizadas pela guerra.
Não era este o tema do encontro sobre o baptismo, programado para aquele dia em Hai el Salam, mas ficou a ser.
Sabri, não importa se me chamas khauaja ou abuna. O meu desejo é que encontres a paz contigo próprio; tu e tantos outros a quem a guerra apanhou nas malhas da sua rede.
Amigo simpático da carroça da água, não morreste às mãos dos Janjauid; não queiras agora ficar morto, privando-te da dignidade própria dos humanos e do teu bem-estar psíquico. A partir de hoje serás um dos beneficiários do serviço paroquial de Nyala, em favor dos traumatizados da guerra.
Fico à tua espera, como prometeste, in cha Allah!

Feliz Martins
Nyala - Darfur

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