«Eina! Olha quantas cruzes! E que bem alinhadas que estão ao longo de toda a igreja», exclamou Khalid, um aluno muçulmano durante uma visita de estudo à igreja paroquial de Nyala, no Sul do Darfur, surpreendido com a distribuição da via-sacra na parede da igreja.
Não havia cristãos entre os alunos. O que não me surpreende. A maioria dos católicos são desalojados e não têm dinheiro sequer para frequentar uma escola do estado quanto mais uma privada!
“Hoje trouxemos 195 alunos. A outra metade vem amanhã” – diz-me um dos professores. A visita honra o estabelecimento escolar e, ao mesmo tempo, é uma prova concreta de diálogo inter-religioso entre muçulmanos e cristãos.
O Gabriel – o catequista-chefe da paróquia – fez, no adro, uma apresentação geral da Biblia e da Igreja Católica. Depois os professores dividiram os alunos em quatro grupos para um encontro com o padre Emanuel Denima Darama dentro da igreja. É um comboniano congolês.
O padre Denima continuou a explicar as ideias principais do cristianismo. Os estudantes não o poupavam com perguntas. Um deles acabou por receber um raspanete do responsável: «Khalid, não me queiras deixar envergonhado neste lugar sagrado. Por favor, os comentários estúpidos são dispensados, e só se faz uma pergunta de cada vez.»
«Professor, não se preocupe; este aluno não está a ser malcriado; pelo contrário, está a pôr uma questão que toca o centro da fé cristã», atalhei.
O jovem, mais à vontade, exprimiu aquilo que lhe ia na alma: «Nós sabemos que a cruz é coisa de cristãos. Nunca duvidei da minha fé islâmica. Como muçulmano, sei que Jesus – Issa aleihi elsalam, a paz esteja com ele – não foi crucificado mas arrebatado directamente para o Paraíso. No entanto, neste momento acho-me confuso. O crucifixo que vejo à minha frente e em tamanho natural, faz-me muita impressão.»
A assembleia ficou em profundo silêncio, apreensiva. Talvez alguém quisesse comentar a opinião do colega. Mas ele, logo a seguir, arrematou: «Tenho ainda uma pergunta de curioso: aquela mesa ali, tão cuidadosa e lindamente coberta, para que serve, neste lugar sagrado?»
Enquanto Khalid falava, os pensamentos atravessavam a minha mente como relâmpagos. Seria este um dos momentos do «encanto» do Crucificado que, por vezes, sentimos através do seu Espírito?
Khalid não perguntou porque é que aquele homem se deixou pregar numa cruz. Eu tão pouco saberia responder-lhe. De facto, não tem mesmo explicação humana. Faz parte do insondável mistério de Deus que veio ter connosco, «rebaixando-se até à morte e morte de cruz». Coisa de que só o amor de Deus é capaz.
Mas a morte de Jesus é uma morte que gera Vida. Não será, talvez, de forma automática. Será mais uma caminhada lenta e provada. A Bíblia fala-nos da tolerância e da paciência de Deus, tema apreciado também pelo Islão. Um dos 99 atributos ou mais belos nomes de Deus escritos no Alcorão é precisamente «El Sabur», infinitamente paciente. Ninguém é excluído da Salvação oferecida por meio de Jesus Cristo crucificado. Mas não é próprio de Deus queimar etapas. O seu estilo preferido é não forçar o ritmo das suas criaturas. A seu tempo tudo acontecerá. Eu acredito nesse milagre.
Delicadamente ousei interromper o silêncio dos alunos que, acredito, era espaço habitado pelo Espírito Santo.
«Desculpem, permitam-me só uma observação a Khalid. O Issa que lês no Alcorão, chama-se Jesus no Evangelho. E agora vamos à pergunta curiosa sobre o que faz aquela mesa neste lugar sagrado.
«Aquela mesa é o lugar onde acontece a Morte e a Vida. À volta dela reunimo-nos para a refeição sagrada. Vós, no Islão, celebrais a festa do “Adha”, o sacrifício, na qual comeis a carne do cordeiro cujo sangue tem que ser derramado. E quando uma pessoa é morta violentamente vós usais a palavra “zabaha”, não é verdade? Essa palavra indica que o sangue escorreu até à última gota, certo? Se não for verdade, estejam à vontade e não tenham receio de me corrigir.
«Para nós, cristãos, Jesus substitui o cordeiro na Páscoa dos hebreus do Antigo Testamento. É Ele o Cordeiro da Páscoa cristã. Talvez, aos ouvidos dos muçulmanos estas palavras soam como blasfémia. Mas não vejo nenhum de vós tapar os ouvidos, que tomo como sinal de apreço e respeito. Obrigado!
«Na vossa bela língua árabe, esta mesa tem o nome de “mazbah”. Sabem sem dúvida do que trata. Sim, os cochichos ai no fundo da igreja, queremos ouvi-los. Ora venham lá essas achegas em voz alta!»
«Dá a ideia de matadouro ou matança. Lugar do sacrifício. Holocausto. Sabe a sangue», alguns alunos foram comentando.
«Obrigado. Aconteceu há dois mil anos: Jesus morreu no alto da cruz e ao terceiro dia ressuscitou. O altar – “mazbah” – representa o sacrifício, a oferta de Jesus e está intimamente ligado com este acontecimento e faz parte da mesma realidade. Sobre esta mesa faz-se a celebração da maior festa do cristianismo: a Páscoa, dia da Ressurreição de Jesus, que se repete cada domingo.
«Jesus oferece-se como “Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo”. É o banquete da Páscoa que somos convidados a partilhar em refeição de comunhão. É a festa da Eucaristia, isto é, acção de graças pelas maravilhas que Deus fez e continua a fazer através da Morte e Ressurreição daquele Jesus que contemplamos ao olhar o Crucifixo.
«A expressão dos vossos olhos diz-me que não estais a acompanhar o meu pensamento. Mas não vos censuro por isso. Quem se atreveria? A lógica e a filosofia ajudam a chegar à fé. Mas neste caso concreto elas valem-nos de bem pouco. Aqui somos convidados a entrar no mistério da fé, cujo segredo reside em Deus. Ele criou-nos livres e deu a cada um a chave do próprio coração. É uma fechadura que só podemos abrir por dentro. Se deixarmos Deus entrar, Ele partilhará connosco os seus segredos. Para Ele não há distinção de raças e não lhe importa que O tratemos por Deus, Theos, God ou Allah, em latim, grego, inglês ou, árabe. Ou que lhe falemos com a voz silenciosa do coração. Se O deixarmos entrar, Ele passará de hospede a Senhor da nossa vida. E ensinar-nos-á os caminhos da fé; por vezes tão diferentes e até contraditórios.
«Deus sabe tirar partido das más escolhas dos seres humanos, em favor da Vida que Ele reservou desde sempre para as suas criaturas. Todas, a seu tempo e sem queimar etapas.»
Ao despedir-me de Khalid, disse-lhe a sós: «Não fiques a cismar na crucifixão. Deixa-te encantar pelo Crucificado! Para aqueles que O contemplam com olhos de fé, a sua morte gera Vida. Não é uma vida passageira e mesquinha mas de valor divino, como a d‘Ele. Condiz perfeitamente com o teu lindo nome, Khalid, eterno e glorioso.»
Feliz da Costa Martins
missionário comboniano
Nyala (Darfur – Sudão)
Nyala (Darfur – Sudão)
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