Por defeito profissional, quando leio um romance, procuro notar qual é a relação do autor com Deus. Valter Hugo Mãe, no seu Deus na escuridão – uma ficção que tem a Medeira como cenário – fala de Deus como mãe. Porque, como escreve Afonso Cruz em Flores, «Deus não é macho».
No décimo capítulo, que leva o título do livro, o autor escreve no primeiro parágrafo, que «Deus é certamente como as mães. Liberta Seus filhos e haverá de buscá-los eternamente. Passará todo o tempo de coração pequeno à espera, espiando todos os sinais que Lhe anunciam a presença, o regresso dos filhos».
E prossegue: «Deus é exatamente como são as mães, que criam e depois vão ficando para trás, à distância, numa distância que parece significar que não são mais precisas, e Ele, como elas, só sabe amar acima de qualquer defeito e qualquer falha, com cada vez maior saudade. [...]. Deus, como as mães, corre os dias inteiros à janela e escuta. [...] A casa de Deus tem a chave do lado de fora, debaixo de um vaso. Toda a gente o sabe. É tique de todas as mães que dormem lá dentro vulneráveis q qualquer ladrão. [...] Exatamente como as mães, Deus cozinha os seus pratos favoritos e acredita que agora ficarão para sempre.»
Esta ideia de Deus como mãe não é estranha à Bíblia. Devido à nossa cultura, desenvolvemos muito o conceito de Deus-Pai e esquecemos o de Deus-Mãe. No livro do Deuteronómio lemos: «Desprezas a Rocha que te deu à luz, esqueces o Deus que te gerou» (Deuteronómio 31:18, na tradução da Bíblia de Jerusalém; a Bíblia dos Capuchinhos, traduz: «Desprezaste o Rochedo que te gerou, e esqueceste o Deus que te formou»).
O profeta Isaías também fala de Deus como mãe. No capítulo 49, Deus pergunta: «Acaso pode uma mulher esquecer-se do seu bebé, não ter carinho pelo fruto das suas entranhas?» E responde: «Ainda que ela se esquecesse dele, Eu nunca te esqueceria!».
No último capítulo do livro, Deus promete: «Como a mãe consola o seu filho, assim Eu vos consolarei».
O povo guji, com quem vivo, partilha a mesma intuição. Começa as orações tradicionais invocando «Deus nosso Pai, Deus nossa Mãe, Deus nosso Avô, Deus nossa Avó, Deus nosso Bisavô, que nos deu à luz!»
Eu aprendi a rezar com eles, a invocar Deus por. novos nomes. A missão é circular: evangelizamos e somos evangelizados. Anunciamos Deus e aprendemos novas formas de dizer Deus.
Tomas Halik, teólogo checo que, juntamente com José Tolentino Mendonça, me inspira, escreve em O sonho de uma nova manhã, o seu livro mais recente, que «a evangelização sob a forma de inculturação pressupõe [...] também a disponibilidade para compreender a nossa própria fé de uma nova e mais profunda forma, num novo contexto cultural». O sublinhado é dele.
Voltando ao Deus na escuridão, Valter Hugo Mãe apresenta uma definição de oração interessante: rezamos para dizer a Deus aonde estamos.
As rezas são uma espécie do transmissor que identifica os aviões e marcam a sua posição no céu: «Se Deus pudesse, escreveria a cada filho uma carta de amor para o convencer a vir em visita. Mas o paradeiro do filho só se descortina pela prece. Sem isso, Deus guarda as cartas que escreve sem ter para onde as enviar. Espera. No que à visão de seus filhos se refere, Deus espera na escuridão. Seu candeeiro é Seu nome na boca do filho.»
Genial!