17 de dezembro de 2024

DEUS, MINHA MÃE


Por defeito profissional, quando leio um romance, procuro notar qual é a relação do autor com Deus. Valter Hugo Mãe, no seu Deus na escuridão – uma ficção que tem a Medeira como cenário – fala de Deus como mãe. Porque, como escreve Afonso Cruz em Flores, «Deus não é macho».

No décimo capítulo, que leva o título do livro, o autor escreve no primeiro parágrafo, que «Deus é certamente como as mães. Liberta Seus filhos e haverá de buscá-los eternamente. Passará todo o tempo de coração pequeno à espera, espiando todos os sinais que Lhe anunciam a presença, o regresso dos filhos». 

E prossegue: «Deus é exatamente como são as mães, que criam e depois vão ficando para trás, à distância, numa distância que parece significar que não são mais precisas, e Ele, como elas, só sabe amar acima de qualquer defeito e qualquer falha, com cada vez maior saudade. [...]. Deus, como as mães, corre os dias inteiros à janela e escuta. [...] A casa de Deus tem a chave do lado de fora, debaixo de um vaso. Toda a gente o sabe. É tique de todas as mães que dormem lá dentro vulneráveis q qualquer ladrão. [...] Exatamente como as mães, Deus cozinha os seus pratos favoritos e acredita que agora ficarão para sempre.»

Esta ideia de Deus como mãe não é estranha à Bíblia. Devido à nossa cultura, desenvolvemos muito o conceito de Deus-Pai e esquecemos o de Deus-Mãe. No livro do Deuteronómio lemos: «Desprezas a Rocha que te deu à luz, esqueces o Deus que te gerou» (Deuteronómio 31:18, na tradução da Bíblia de Jerusalém; a Bíblia dos Capuchinhos, traduz: «Desprezaste o Rochedo que te gerou, e esqueceste o Deus que te formou»).

O profeta Isaías também fala de Deus como mãe. No capítulo 49, Deus pergunta: «Acaso pode uma mulher esquecer-se do seu bebé, não ter carinho pelo fruto das suas entranhas?» E responde: «Ainda que ela se esquecesse dele, Eu nunca te esqueceria!».

No último capítulo do livro, Deus promete: «Como a mãe consola o seu filho, assim Eu vos consolarei».

O povo guji, com quem vivo, partilha a mesma intuição. Começa as orações tradicionais invocando «Deus nosso Pai, Deus nossa Mãe, Deus nosso Avô, Deus nossa Avó, Deus nosso Bisavô, que nos deu à luz!»

Eu aprendi a rezar com eles, a invocar Deus por. novos nomes. A missão é circular: evangelizamos e somos evangelizados. Anunciamos Deus e aprendemos novas formas de dizer Deus. 

Tomas Halik, teólogo checo que, juntamente com José Tolentino Mendonça, me inspira, escreve em O sonho de uma nova manhã, o seu livro mais recente, que «a evangelização sob a forma de inculturação pressupõe [...] também a disponibilidade para compreender a nossa própria fé de uma nova e mais profunda forma, num novo contexto cultural». O sublinhado é dele.

Voltando ao Deus na escuridão, Valter Hugo Mãe apresenta uma definição de oração interessante: rezamos para dizer a Deus aonde estamos. 

As rezas são uma espécie do transmissor que identifica os aviões e marcam a sua posição no céu: «Se Deus pudesse, escreveria a cada filho uma carta de amor para o convencer a vir em visita. Mas o paradeiro do filho só se descortina pela prece. Sem isso, Deus guarda as cartas que escreve sem ter para onde as enviar. Espera. No que à visão de seus filhos se refere, Deus espera na escuridão. Seu candeeiro é Seu nome na boca do filho.» 

Genial!

10 de dezembro de 2024

CELEBRAR A PADROEIRA





Qillenso – a missão entre o povo guji da Etiópia onde sirvo – foi estabelecida oficialmente em 1981, dedicada à Senhora das Dores. Entretanto, a festa da padroeira passou a ser comemorada a 8 de dezembro, Senhora da Imaculada Conceição. 

Oficialmente a paróquia continua dedicada à Senhora das Dores. Porém, a data da solenidade foi mudada por duas razões. 

Primeiro, setembro e outubro são, aqui, o ponto alto da estação das chuvas. Quando chove, chove mesmo e estorva a organização e as deslocações.

Depois, em setembro os produtos agrícolas – milho, café, repolho, cereais – estão a crescer. Em dezembro, em plena estação seca o tempo das colheitas dá muito mais de comer e dinheiro para comprar.

A festa deste ano celebrou-se no domingo, dia 8, mas os preparativos começaram nos dias anteriores. Os jovens ensaiaram a dramatização da parábola do filho pródigo e os coros deram lustro às atuações.

Na sexta, um grupo de mulheres lavou o chão e as cortinas da igreja. 

No sábado, as adolescentes assearam o templo depois da reunião semanal. 

Algumas mulheres, ajudadas pelo catequista Mi’essa e por um dos anciãos da comunidade, estiveram até às duas da manhã a migar couves e repolhos, a raspar cenoiras e a cozer pão – bolos de trigo de um palmo de diâmetro e dois dedos de altura – para o almoço da festa. Devido a um apagão de mais de 24 horas, as mulheres trabalhavam de pilhas amarradas à cabeça.

Para a festa paroquial, participaram representantes de quatro das cinco capelas do centro. De Gosa, a 35 quilómetros mais a norte, não é fácil arranjar transporte ao domingo. As Missionárias da Caridade, as Irmãs de Santa Teresa de Calcutá, também marcaram presença com um grupo de jovens de Adola, o centro citadino da missão.

A igreja, que é pequena, estava à pinha, com as crianças sentadas nos degraus do altar e o corredor central e outros espaços com bancos e cadeiras extra. Estava decorada com bandeirinhas no exterior e balões e ervas de junco no interior.

A missa estava marcada para as 9h30. Porém, começou uma hora depois. Como é uso, foi bem participada, cantada e dançada. Coube-me presidir, ladeado pelo pároco e pelo seminarista que vive connosco, os catequistas da zona e os acólitos.

Depois da eucaristia – que demorou mais de duas horas – os jovens apresentaram a encenação inculturada da parábola da misericórdia. A assembleia seguiu o drama muito atenta e gozosa!

Os coros atuaram depois: os três de Qillenso (mulheres casadas dirigidas por Mi’essa, jovens com alguns adultos penetras e adolescentes) e os das capelas. Todos trajados a preceito. Entre atuações foram leiloados os produtos levados para o ofertório: milho, café, manteiga, uma galinha...

Já passava das 15h00 quando fomos para o salão paroquial para o almoço. Um momento sempre alegre. A ementa foi simples, mas nutritiva: um bolo de pão com um prato de vegetais cozidos. A comida estava saborosa.

Depois veio o grande desafio de futebol entre a equipa de Qillenso e a seleção do resto das capelas. Um jogo bem disputado e aferroado: os da casa levaram os hóspedes de vencida. E também houve alguma briga de permeio. É costume!

Assim se celebrou a Senhora das Dores no dia da Senhora da Imaculada Conceição de Qillenso com uma mensagem fundamental: «Temos mãe!». A declaração que o papa Francisco repetiu, emocionado, em Fátima há sete anos e meio, durante a eucaristia do centenário das aparições. Ainda ressoa dentro de mim.

 

2 de dezembro de 2024

AZUL DO CÉU

Hoje o pintor encheu de anil
o céu por cima de mim.
Sem fiapo de nuvem

nem grão de poeira.
Um azul que envolve 
e devolve,
e enche o olhar de paz
e o coração!
Um céu que leva
para além dele,
atrás do horizonte:
cor de infinito 
sobre tela breve.
Este azul celeste,
da mana-saudade,
que também é dele,
fundo, altaneiro,
regressa-me ao dia primeiro 
quando a Voz criadora anelou:
"Faça-se luz!"
A luz? 
Azul anilado,
índigo!