Etty (Esther) Hillesum era uma judia holandesa que sonhava ser escritora. Começou a escrever um diário em 1941. Tinha vinte e sete anos.
O seu Diário 1941-1943 é a obra intemporal de uma jovem que quer ser feliz respondendo às questões levantadas pela estação de grande sofrimento e extermínio em que vive através de uma visão lúcida e serena da realidade. Uma mulher que busca a felicidade na simplicidade desbravando as grandes planícies de tranquilidade, o seu imperativo moral.
Na primeira entrada, de 9 de março de 1941, expressa o «bloqueio espiritual» em que vive.
Cinco meses mais tarde, a 4 de agosto, deixa um anseio existencial profundo: «Mais tarde hei-de voltar a escrever: “Como a vida é bela e como estou feliz”, agora porém não consigo mesmo nada imaginar como irei sentir-me nesse momento».
De facto, a 16 de setembro de 1942, no meio de todos os excessos que foi o Holocausto, um tempo de grande e indizível sofrimento humano, anota: «Gostava de juntar as mãos e dizer: “Meninos, estou tão feliz e grata e acho a vida muitíssimo bela e cheia de sentido”. Sim, sim, bela e cheia de sentido, enquanto estou aqui à beira da cama do meu amigo morto, que morreu demasiado jovem, e eu posso ser deportada a qualquer instante para um local desconhecido. Meu Deus, estou-te tão grata por tudo».
Acabou por ser deportada com a família de Westerbork, na Holanda, para Auschwitz, na Polónia, a 7 de setembro de 1943. A Cruz Vermelha anunciou a sua morte a 30 de novembro.
Etty experimenta uma revolução copernicana na sua vida, porque o psicoterapeuta Julius Spier que a guiou para assumir e trabalhar todos os estados de alma, também lhe ensinou a dizer Deus.
A 22 de novembro de 1941 descreve-se como «a rapariga que não conseguia ajoelhar-se e que afinal aprendeu a fazê-lo no tapete áspero de fibra de coco de uma casa de banho desarrumada».
Remetendo para a experiência mística de Santo Agostinho — que lia — escreve: «Dentro de mim há um poço muito fundo. E lá dentro está Deus. Às vezes consigo lá chegar. Mas acontece mais frequentemente haver pedras e cascalho no poço, e aí Deus está soterrado. Então é preciso desenterrá-lo».
A 9 de setembro de 1942, grafa: «Continuo a não conseguir encontrar o tom certo para aquele sentimento de firmeza e felicidade que há em mim, onde também se incluem todo o sofrimento e tristeza».
Refletindo sobre o Holocausto, confessa: «Se este sofrimento não levar a um alargamento de horizontes, a uma maior humanidade pela derrocada de todas as mesquinhices e superficialidade desta vida, nesse caso foi em vão».
Na ânsia de viver para os outros, voluntariou-se para o campo de trânsito de Westerbork, na Holanda.
Quer ser o coração pensante de todo o campo de concentração.
«Não existe um poeta dentro de mim, mas sim um pedaço de Deus em mim que poderia desenvolver-se até se tornar poeta. Num campo assim tem que haver contudo um poeta que experiencie a vida lá, lá também, e que como poeta a possa cantar», escreveu no registo de 3 de outubro de 1942.
Li o diário de Etty a primeira vez ao ritmo apressado de comboio rápido entre Lisboa e Castelo Branco numa viagem de ia e volta. A estação da pandemia permitiu-me uma leitura mais lenta e cheia de apeadeiros para mergulhar nas profundezas da sua espiritualidade.
E de sentir o cheiro do jasmim junto à janela do seu quarto.
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