A primavera está por toda a parte. Em nosso redor a natureza
parece vencer a imobilidade do inverno e amontoa os traços insinuantes do seu reflorir.
Há uma seiva que revitaliza a paisagem do mundo. Mesmo nos baldios, nos pátios
e quintais abandonados, nos jardins mais desprovidos a primavera desponta com
uma energia que arrebata.
Penso muitas vezes nos versos do Cântico dos Cânticos, o mais
primaveril poema da Bíblia: «Fala o meu amado e diz-me: “Levanta-te! Anda, vem
daí, ó minha bela amada! Eis que o inverno já passou, a chuva parou e foi-se
embora; despontam as flores na terra, chegou o tempo das canções, e a voz da
rola já se ouve na nossa terra; a figueira faz brotar os seus figos e as vinhas
floridas exalam perfume. Levanta-te! Anda, vem daí, ó minha bela amada! Minha
pomba, nas fendas do rochedo, no escondido dos penhascos: deixa-me ver o teu
rosto, deixa-me ouvir a tua voz; pois a tua voz é doce e o teu rosto,
encantador”» (Ct 2, 10-14). Neste poema, a primavera do mundo é uma
representação simbólica da primavera interior que nos desafia. Na verdade, o
nosso coração não pode continuar eternamente sequestrado pelos impasses dos
seus invernos gelados. A nossa vida está prometida à primavera – é a mensagem
que o despertar da natureza (e aquele mais íntimo) nos parece segredar.
Mas também acontece que o renascimento do mundo nos parece
incomparavelmente mais simples que o nosso. Por nossa parte, sentimo-nos
soterrados e sem forças. Achamos que já passou demasiado tempo, que em algum
momento do percurso nos perdemos e que talvez isso seja agora irremediável.
Vamo-nos deixando ficar num conformismo tácito, insatisfeitos e adiados, a
ponto de desistir. Certamente a voz da primavera não nos deixa indiferentes:
ela há de sempre sobressaltar-nos. Mas olhamos para ela com mais nostalgia do
que com esperança. Contemplámo-la à distância. Ou então defendemo-nos dela como
podemos, fingindo não perceber o que significa. No fundo de nós mesmos,
consideramos que a primavera já não é para nós. E no nosso coração andamos às
voltas com aquela pergunta que também a Bíblia conserva e que não temos paz
enquanto não conseguirmos responder: «Pode um homem, sendo velho, nascer de
novo?» (Jo 3,4).
Os cristãos começam por estes dias um tempo litúrgico que é uma
espécie de pronto-socorro da primavera. Falo da quaresma. Gosto de explicá-la a
mim mesmo como um curso intensivo de jardinagem, pois trata-se de revitalizar a
paisagem da vida, projetando-a dinamicamente, devolvendo-lhe intensidade e cor.
A quaresma aprofunda três sulcos, afinal muito simples (o da oração, o da
esmola e o da renúncia a que chamamos jejum), mas pode constituir uma alavanca
de transformação que restaura em nós a liberdade de ser, que cimenta a
capacidade de reconstruir a vida e de a viver fraternalmente, que nos dá um
sentido de confiança capaz de abraçar criativa e serenamente a própria
fragilidade, que melhora o nosso ânimo e até o nosso humor. Fazemos Quaresma
para arriscar a Páscoa.
José Tolentino Mendonça em Diário de Notícias (Madeira)
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