A primeira foi escrita no início do seu serviço missionário em Santa Cruz, no Sudão.
Numa carta ao pai com data de 5 de março de 1858, uns meros 20 dias depois de chegar entre os Dincas Kich, diz: «O missionário deve estar disposto a tudo: à alegria e à tristeza, à vida e à morte, ao abraço e à despedida. E a tudo isso estou disposto também eu» (Escritos 218).
A segunda foi escrita a 4 de outubro de 1881 – portanto, seis dias antes de morrer – ao P. José Sembianti, seu reitor em Verona. Diz: «Eu sou feliz na cruz, que levada de boa vontade por amor de Deus gera o triunfo e a vida eterna» (Escritos 7246).
A primeira citação ilustra bem a visão do nosso Pai para a sua missão: uma disponibilidade total, integral que inclui os binómios da alegria e da tristeza, da vida e da morte, do abraço e da despedida, que ele abraça durante toda a sua vida em modo heróico a ponto de ser canonizado.
Esta visão holística, que concebe a realidade como um todo em contraponto à fragmentação do viver, é fundamental para uma vida sadia, integrada, sem esquizofrenias nem bipolaridades.
Vai na linha do sermão que Comboni pregou a 11 de março de 1873 em Cartum quando tomou posse como provigário apostólico da África Central.
«Tende a certeza de que a minha alma vos corresponde com um amor ilimitado para todo o tempo e para todas as pessoas. Eu volto para o meio de vós para nunca mais deixar de ser vosso e totalmente consagrado para sempre ao vosso maior bem. O dia e a noite, o Sol e a chuva encontrar-me-ão igualmente e sempre disposto a atender as vossas necessidades espirituais; o rico e o pobre, o são e o doente, o jovem e o velho, o patrão e o servo terão sempre igual acesso ao meu coração. O vosso bem será o meu e as vossas penas serão também as minhas» (Escritos 3158), proclamou.
Este sermão inspirou gerações de missionários e continua a convocar-nos desde a Eternidade onde Comboni vive no seio de Deus-Pai.
A segunda citação é a última frase escrita por Daniel Comboni que temos. Por isso, sabe a testamento espiritual e remete-nos para o coração da espiritualidade cristã e comboniana: o mistério da cruz.
Comboni escreve: «Eu sou feliz na cruz, – e sublinha a palavra cruz – que levada de boa vontade por amor de Deus gera o triunfo e a vida eterna».
Esta citação leva-me ao capítulo 12 da Carta aos Hebreus. A Bíblia dos Capuchinhos traduz: «Tendo os olhos postos em Jesus, autor e consumador da fé. Ele, renunciando à alegria que lhe fora proposta, sofreu a cruz, desprezando a ignomínia, e sentou-se à direita do trono de Deus» (Hebreus 12, 2).
Detesto esta tradução, porque parece desvirtuar o texto grego. A tradução da Sociedade Bíblica de Portugal em português corrente é mais consensual: «Tenhamos os olhos postos em Jesus, de quem a nossa fé depende do princípio ao fim. Ele suportou a morte na cruz, sem se importar com a vergonha que nisso havia, sabendo a alegria que o esperava».
Jesus não renunciou à alegria. A alegria esperava-o e deu-lhe a força para viver o seu mistério pascal amando até ao fim com amor extremado.
A espiritualidade da cruz – tão forte na mística do nosso fundador – não é uma beatice piedosa do século XIX. É uma maneira concreta de entender e integrar a vulnerabilidade e o sofrimento que são parte da nossa vida e que tendemos a esconder.
Não é masoquismo, ter prazer em sofrer! É a capacidade para aceitar de boa vontade e por amor contrariedades, fragilidades, dificuldades, quedas e vulnerabilidades que não são desperdícios emocionais para jogar nos aterros sanitários dos interstícios das nossas entranhas.
São cruzes que podem gerar vitória e vida, se recicladas pela graça de Deus.
São Paulo notou com muita acutilância e visão teológica que «tudo contribui para o bem daqueles que amam a Deus» (Romanos 8, 28). Daí a cruz – e as cruzes – ser fonte de felicidade, glória e vida para o nosso fundador e para cada um de nós.
A Igreja deu-nos uma porção do Capítulo 10 do Evangelho segundo São João – mais concretamente os versículos 11 a 16 – para celebrarmos a solenidade do nosso Fundador.
Ele foi um pastor segundo o coração de Cristo.
Jesus apresenta-se-nos como o pastor bom e belo que dá a vida pelas ovelhas.
Usa o verbo conhecer quatro vezes: Ele conhece as ovelhas e as ovelhas conhecem-no como Ele conhece o Pai e o Pai conhece-o.
É interessante notar que a relação com as ovelhas brota da relação com o Pai: o conhecimento mútuo das ovelhas nasce do conhecimento mútuo do Pai.
Um conhecimento que, mais que acumulação de informação, é relação, ternura.
No tempo de Jesus, Deus era sobretudo chamado Adonai, Senhor, a palavra-passe usada em vez de Yahweh, o inefável nome de Deus.
Jesus chama Abba – Papá a Deus: mantém uma relação filial, íntima. Daí vem a grande novidade e autoridade de Jesus que tanto impactou nos seus ouvintes.
Os Documentos Capitulares 2015 dizem a este respeito: «Nós somos discípulos de Jesus, chamados a realizar o seu projecto. Característica do discípulo é o encontro pessoal com o Bom Pastor e a escuta da sua voz, saboreando o seu amor e caminhando atrás d’Ele (Jo 10,1-21). Jesus chama-nos a viver e a promover vida plena para todos, conscientes de que trabalhamos num mundo em que forças poderosas levam por diante um plano de morte e destruição» (nº 2).
Esta citação remete-nos para o tema que nos guia este ano como família comboniana: «Cristo vive e quer-te vivo».
A Regra de Vida define o noviciado como «a primeira experiência profunda do modo de vida dos missionários combonianos e tem a finalidade de preparar o candidato para a consagração a Deus para o serviço missionário» (RV 92).
O Directório coloca alguns objectivos concretos: «aprofundamento da comunhão pessoal com Cristo; melhor compreensão da Palavra de Deus, da liturgia e dos sacramentos; equilíbrio entre acção e contemplação; aprofundamento da teologia dos votos e da sua incidência no crescimento humano-cristão da personalidade, para uma maior disponibilidade em ordem ao serviço missionário; experiência de vida comunitária; mais amplo conhecimento da vida e do carisma do Fundador e do Instituto, e estudo aprofundado das constituições» (RV 92. 3).
É este o trabalho que vos espera durante os próximos dois anos, queridos noviços. Um caderno de encargos bastante extenso, mas – estou seguro – que ides cumprir com alegria e dedicação.
Esta folha de serviço é expressão da mística comboniana do sair.
Os nossos irmãos maiores escreveram na mensagem para a celebração do Dia de Comboni que «partir é essencial para o nosso ser missionários, é abandonar o nosso espaço de segurança para renascer numa nova cultura, no seio de outra família humana com a qual partilhamos alegrias, dores e esperanças».
Invoco sobre cada um de vós o Espírito do Ressuscitado para que vos entregueis, de alma e coração, com generosidade e alegria, a esta etapa formativa fundamental para a construção da vossa identidade de discípulos missionários combonianos com a ajuda do mestre, da comunidade comboniana e da comunidade cristã do Jardim de Cima.
Que o Senhor abençoe os vossos intentos no início desta caminhada. Amen.
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