27 de junho de 2014

CORDIALIDADE


Como missionários somos chamados a explorar a cordialidade como atitude evangelizadora que brota da contemplação do Coração escancarado de Cristo e nos leva a ver o mundo e a missão através do olhar misericordioso do coração ao jeito de São Daniel Comboni.

O coração é um símbolo poderoso e constante na linguagem de Daniel Comboni. Nos Escritos, a palavra aparece 1046 vezes no singular e 229 vezes no plural.

No preâmbulo da quarta edição do Plano para a Regeneração da África Central, escreve: «O católico, habituado a julgar as coisas com a luz que lhe vem do alto, olhou a África não através do miserável prisma dos interesses humanos, mas do puro raio da sua fé [… e]sentiu que o seu coração palpitava mais fortemente; e uma força divina pareceu empurrá-lo para aquelas bárbaras terras, para apertar entre os seus braços e dar um ósculo de paz e de amor àqueles infelizes irmãos seus» (Escritos 2741).

Comboni contrasta assim a atitude cordial do «filantropo cristão» que acelera as batidas do coração perante a situação africana com os interesses das potências europeias que queriam civilizar a África e «obrigar a natureza a revelar também naquelas imensas regiões os tesouros virgens das suas enormes produções em benefício da família humana» (Escritos 2740).

E continua: «A desoladora ideia de ver suspensa, talvez por muitos séculos, a obra da Igreja em favor de tantos milhões de almas que gemem ainda nas trevas e na sombra da morte, deve ferir profundamente e magoar o coração de todo o devoto e fiel católico, inflamado do espírito da caridade de Jesus Cristo.» (Escritos 2752).

DO CÉREBRO AO CORAÇÃO

Foi o Papa Francisco que me despertou para a cordialidade como lugar teológico e virtude cristã. Ele emprega a palavra cordial oito vezes na Exortação A alegria do Evangelho (EG).

Como homens, estamos habituados a funcionar a partir da razão: somos mais cerebrais que cordiais, mais efetivos que afetivos. A conversão – metanoia em grego – significa literalmente ver para além (meta) da mente, intelecto razão (noia). Daí o grande convite e desafio de Jesus: «Vinde a mim, todos os que estais cansados e oprimidos, que Eu hei de aliviar-vos. Tomai sobre vós o meu jugo e aprendei de mim, porque sou manso e humilde de coração e encontrareis descanso para o vosso espírito. Pois o meu jugo é suave e o meu fardo é leve» (Mt 11:28-30).

Somos convidados a caminhar do cérebro para o coração. A cordialidade – a capacidade de viver a partir do coração – leva-nos a aprender do coração manso e humilde de Cristo em contraste com a arrogância agressiva do «euismo» individualista globalizado e dominante que «favorece um estilo de vida que debilita o desenvolvimento e a estabilidade dos vínculos entre as pessoas» (EG 67), que em conjunto com a crise de identidade e o declínio de fervor debilita os evangelizadores (EG 78) e «divide os seres humanos e põe-nos uns contra os outros visando o próprio bem-estar» (EG 99), uma forma de hedonismo pagão (EG 193).

A sociedade contemporânea é altamente competitiva, agressiva, agressora e neurótica. No Sermão da Montanha, a magna carta do cristianismo que tanto tem impressionado não cristãos como Gandhi, Jesus recorda-nos que os mansos são felizes porque possuirão a terra (Mt 5:5).

Jesus também nos convida a viver a partir do coração: «Ide aprender o que significa: Prefiro a misericórdia ao sacrifício» (Mt 9:13). O que nos leva de novo às bem-aventuranças: «Felizes os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia» (Mt 5:7). E a outro dito de Jesus: «Sede misericordiosos como o vosso Pai é misericordioso» (Lc 6:36).

Misericórdia vem do latim, é composta por miser (mísero, infeliz) + cor (coração) e o sufixo ia e significando a capacidade de sentir a desgraça alheia. Este é o jeito de Deus, viver assim é ser imagem e semelhança de Deus!

A misericórdia é parte integrante da experiência cristã. Zacarias, o pai do Batista, bendiz o mistério da encarnação como visita do coração misericordioso do nosso Deus (Lc 1:78).

Daniel Comboni queria os seus missionários «santos e capazes». E define a capacidade como caridade: «Antes de tudo, devam ser santos, isto é, completamente alheios ao pecado e à ofensa a Deus, e humildes; isso não basta: precisam de ter caridade, que é a que os torna capazes» (Escritos 6655). Aliás, o amor é a via ordinária da experiência de Deus: «Aquele que não ama não chegou a conhecer a Deus, pois Deus é amor» (1 Jo 4:8).

Celebrar o Coração de Cristo, é fazer memória da cordialidade misericordiosa de Jesus que veio para chamar não os justos mas os pecadores à «metanoia» (Lc 5:32), a ir para além da mente e viver a partir do coração porque Deus nos quer «discípulos missionários» (EG 89-90) segundo o seu coração (Act 13:22).

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