23 de abril de 2011

PÁSCOA


Encontrei-me com sul-sudaneses pela primeira vez em 1999 nos desertos inóspitos que asfixiam Cartum. Tinham fugido da guerra pela autodeterminação que grassava no Sul sem dó nem piedade.
Um colega que sabia como furar o bloqueio de postos de controlo da polícia à volta de Cartum, levou-me a visitar os deslocados em Jabarona. Fiquei impressionado com a capacidade de sofrimento e de resistência de gente votada ao desprezo porque eram negros – escravos, como a elite árabe teima em lhes chamar.
Gente habituada às florestas equatoriais, às planícies verdejantes e aos rios do Sul sobreviviam num ermo sem fim de terra ressequida, perseguida pelos islamistas, mas sem baixarem os braços.
Entretanto, em Dezembro de 2006, a vida trouxe-me para Juba, a capital do Sul do Sudão, para integrar como director de informação uma equipa de combonianas e combonianos encarregada de montar a rede de rádios católica do Sudão.
O Sudão do Sul tem mais de seis vezes o tamanho de Portugal. A população ronda os 8,3 milhões. Quase cinquenta anos de guerras civis (1955-1972 e 1983-2005) mataram 2,5 milhões e deslocaram mais de quatro milhões. Metade da população tem menos de 33 cêntimos de Euro para gastar por dia. A guerra destruiu a rede de saúde e o sistema escolar: três quartos são analfabetos.
O sul do São é território fértil para um sem número de doenças endémicas: malária, tifo, cólera, kala azar, febre-amarela, cegueira dos rios, meningite… A médica das consultas para viajantes fez uma cara muito feia quando lhe indiquei no Atlas o meu destino final.
Apesar de tudo, os Sudaneses do Sul chamam à sua terra paraíso e lutaram meio século pelo direito à autodeterminação.
Os povos do sul, um mosaico de mais de sessenta tribos negras, cristãos e seguidores das religiões tradicionais, não foram tidos nem achados quando a administração colonial egípcio-britânica decidiu dar a independência ao país e entregaram o poder às elites árabes e muçulmanas do Norte a 1 de Janeiro de 1956.
Finalmente a oportunidade de marcarem encontro com a história e dizerem o que queriam como povo aconteceu com o tratado de paz negociado entre o governo de Cartum e os rebeldes do SPLA (o exercito de libertação do povo do Sudão) em 2005 que consagrou o direito ao referendo de autodeterminação.
O plebiscito decorreu de 9 a 15 de Janeiro deste ano. O governo de Cartum usou todos os truques que tinha na manga para descarrilar o processo, mas os sulistas cerraram fileiras e defenderam com paciência e constância o direito ao voto. A comissão encarregada da auscultação popular pôs o processo a funcionar em três meses e o referendo foi proclamado como evento paradigmático pela ONU e pela comunidade internacional pelo modo como decorreu.
O circo mediático foi desmantelado em poucos: os jornalistas esperam sangue e morte – como aconteceu nas eleições do Quénia – mas os sul-sudaneses mantiveram-se unidos e vigilantes para defenderem o seu referendo.
Houve muita gente que passou a noite inteira nos centros de voto em autêntica vigília. As filas eram longas sob um sol escaldante e impiedoso, mas os cidadãos esperavam pacientemente pela vez de escolher o seu destino comum com a devoção de quem faz fila para a comunhão.
Depois de marcarem o boletim com o dedo e de o dobrar, uns beijaram-no antes de o colocar na urna, outros chamavam, havia quem dançasse e ululasse… Uma explosão de alegria com o sentido de que finalmente se reencontraram com o seu futuro.
Mamã Rebecca Kadi Loburang foi uma dessas pessoas Apesar dos seus lindos 115 anos de idade, ela fez questão de votar. Vestiu-se de branco, qual noiva adornada para o grande encontro, e pediu à família que a levasse à mesa de voto numa cadeira de rodas.
No final disse aos jornalistas através da neta que veio votar pela independência porque queria deixar um Sudão do Sul melhor e mais pacífico para as novas gerações!
Foi a aurora de ressurreição no Sul do Sudão, uma paz de novo ameaçada pelas nuvens negras do conflito por uma mão-cheia de senhores da guerra que preferem o poder ao bem comum: desde o refendendo mais 800 pessoas foram mortas em conflitos localizados e dezenas de milhares deslocadas.

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