14 de março de 2008

SONHO

Naquela tarde de meados de Março, o panorama da praça El Maulid, na cidade de Nyala, no Sul do Darfur, era de uma tristeza indizível.
Eu e outros sobreviventes da cruel batalha que aconteceu em pleno dia, procurávamos reconhecer e identificar familiares e amigos – os nossos mortos.
Vagueava, sem rumo, entre os corpos naquele campo de sangue. Para mim, tudo se tinha tornado indiferente. A maior das preciosidades perdera o seu valor e a vida tinha o mesmo rosto da morte. Confuso e semiconsciente, nem saberia dizer o nome das pessoas amadas que procurava naquele lugar hediondo.
Sem saber porquê, encontro-me de joelhos perante aquele corpo esfacelado e de rosto irreconhecivel. Uma bomba tinha-lhe feito o coração nos pedaços que marcavam de sangue o chão e alguns corpos à volta.
Homens, mulheres e crianças deambulavam, em marcha fúnebre, por toda a praça. Chegavam perto de nós e quedavam-se a olhar com ar de mistério e reverência, como que a confirmar algo de que eu próprio não tinha a certeza.

Deles ia ouvindo palavras de consolação por aquele morto.
Para aquela gente não havia dúvida que o corpo que jazia ali junto a mim naquele chão ensopado de sangue, era meu pai, meu irmão, minha mãe, minha filha...
Palavras que eu não corregi, aceitando-as como uma verdade que não soube negar.
Quem foi o autor deste massacre? A malvadez dos janjauids, especialmente em extremos de loucura e raiva, não deixava dúvida a ninguém. Mas onde estavam os capacetes azuis, as forças de manutenção de paz do Darfur?
«São poucos e não podem acudir a tudo» – era, entre lágrimas, a resposta resignada de alguns.

Outros, porém, já sem lágrimas para chorar, engrossavam o caudal das suas vozes em protestos de raiva que queriam chegasse às presidências do governo do Sudão em Cartum e da Organização das Nações unidas em Nova Iorque.
Uma rajada de metralhadora colou, num gesto instantâneo e automático, os nossos corpos ao chão. Foram minutos longos como as horas, onde os vivos se juntaram aos mortos. Não se viu um movimento nem se ouviu um ai, não fosse de novo soltar-se o gatilho da arma fatal e vigilante do inimigo. Quem se levantaria ainda vivo?


De um salto, fiquei sentado na cama. Enxuguei o corpo, ainda não convencido que era mesmo suor ou sangue. Felizmente, não passou de um sonho.

Feliz da Costa Martins
Missionário Combonianoem Nyala (Darfur)

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