26 de dezembro de 2024

BORDAR EM PONTO DE ESPERANÇA


Chegou radiante, com a sua pequena almofada bordada e cosida à mão. Mostrou-ma com orgulho: 

– Não é linda? Diz-me que está bonita!

Peguei na almofada bordada e examinei-a com atenção. 

Ao reparar na minha expressão de dúvida, acrescentou rapidamente:

– Bem, eu estou a aprender... Mas diz-me que estou a ir bem.

Ela é uma mulher beduína muito bonita. 

A sua filha acaba de casar com o filho da irmã.

É um costume beduíno comum de casamento entre parentes próximos.

– A almofadita está bem feita. Porém, não a podemos enviar para outro país com o enchimento que puseste! – expliquei-lhe. 

Ela não desanimou. Na aula seguinte, trouxe-a de volta, sem o enchimento.  

– Achas que a vão comprar? – pergunta com esperança no olhar.

– Vamos ver! – respondi-lhe, confiante de que alguém vá apreciar o seu esforço.

A almofadita é o seu primeiro trabalho no curso de bordado beduíno que iniciámos há três meses. 

É muito mais do que um objeto: é um símbolo de esperança no meio de uma realidade cada vez mais incerta e desafiante. 

A paz tarda em chegar, mas, entretanto, eles bordam, sonham e confiam.

Será que, ao ler esta mensagem, apreciaria o trabalho dela ou o das outras 160 mulheres que estão a aprender e a produzir com esperança? 

Cada ponto carrega consigo esforço, dedicação e confiança. Cada produto tem a sua história e é uma história de resiliência e esperança no meio do conflito.

 Ir. Cecília Sierra,

Missionária Comboniana entre beduínas no Deserto da Judeia

22 de dezembro de 2024

NATAL DE MISSIONÁRIOS PORTUGUESES EM ÁFRICA


 

“Temos de viver no essencial, e o essencial é Jesus”

No Sudão do Sul, maioritariamente cristão, ou na Etiópia, onde os católicos são apenas 1% da população, a quadra natalícia é vivida com grande devoção e alegria, apesar das dificuldades e do aumento da insegurança. É o testemunho deixado à Renascença por uma religiosa e um padre, ambos missionários combonianos.

O Natal cristão é celebrado em todos os cantos do mundo, e mesmo nos mais longínquos e improváveis encontramos missionários portugueses. É o caso do Sudão do Sul, o país mais jovem do mundo. “Estou aqui há cinco anos”, conta à Renascença a irmã Beta Almendra. Esta missionária comboniana diz que “a maioria dos sudaneses são cristãos”, mas que enfrentam graves problemas de sobrevivência.

“As maiores dificuldades deste país são básicas: educação, saúde, água, luz, estradas. São coisas que ainda estamos a sonhar tê-las com qualidade”, diz a missionária.

A irmã Beta Almendra dá como exemplo a situação a que chegaram os próprios funcionários públicos: “Só para imaginar, o governo não paga os salários há um ano! Portanto, quem é professor, quem trabalha no setor público, não recebe há um ano. Como é que se sobrevive? Com as organizações não governamentais, com a Igreja. Há muita, muita corrupção, porque todos estão a tentar ganhar alguma coisa extra para sobreviverem. Estamos com muitas dificuldades”

Apesar disso, garante que o Natal será vivido com alegria, e deixa uma mensagem de esperança.

“Vamos à missa, rezamos, comemos, dançamos, com crianças, adultos, com os coros das paróquias. Celebramos o Natal com muita fé, com muito amor e carinho, Jesus está no meio de nós. Ele vive e é Ele que nos dá esta esperança, de que 2025 vai ser melhor! A mensagem que deixo para todos é que realmente Jesus esteja no nosso coração. Tudo o resto é muito supérfluo, roupas, comida, viagens…. Temos que viver no essencial e o essencial é Jesus. É a nossa força, é a nossa paz, é a nossa liberdade. Feliz Natal!”.

 

Etiópia. Minoria cristã só celebra o Natal a 7 de janeiro

O padre José da Silva Vieira, também ele comboniano, já esteve em missão no Sudão do Sul. Antigo provincial em Portugal, onde esteve à frente da Conferência dos Institutos Religiosos de Portugal (CIRP), há três anos voltou à Etiópia, onde já tinha sido missionário, entre 1993 e 2000. “Estou a trabalhar entre o povo Guji, no sul da Etiópia. É uma missão geograficamente muito extensa”.

No país vive-se alguma insegurança nesta altura. “Sim, há alguma insegurança na zona, à volta da cidade de Adola. Tivemos de fechar algumas capelas, devido aos combates intermitentes entre os soldados do governo e os rebeldes do Exército de Libertação. Esta insegurança não nos permite visitar essas zonas, e é pena, porque as pessoas ficam sem assistência dos missionários”.

O padre José Vieira conta que na Etiópia os cristãos são uma minoria. “A Igreja Católica é uma Igreja pequenina, não chegamos sequer a 1% da população. Seremos um milhão de católicos, num panorama de 120 ou 130 milhões de habitantes”.

Mas, apesar de ser pequena está dividida em dois ritos. “As quatro dioceses do Norte seguem o rito oriental etíope e têm uma maneira própria de preparar e viver o Natal. O Advento, para eles, tem seis semanas, durante as quais fazem jejum todos os dias. Não comem carne, produtos lácteos, ovos, está tudo fora do cardápio alimentar. No dia do Natal, que é a quebra do jejum, aí há uma grande festaque começa na igreja e depois continua nas casas com uma refeição, em que voltam a comer carne”.

A sul é tudo diferente. “Nós, nas oito dioceses do Sul, a que chamamos de vicariatos apostólicos, seguimos o rito latino vertido para as línguas locais. Temos quatro domingos do Advento, e depois, no dia do Natal, há uma Eucaristia celebrada com muita alegria. A igreja é decorada com balões, põe-se erva no chão como sinal de festa, e a Missa é comprida, bem cantada, bem rezada, bem dançada, como é costume aqui. As pessoas também vestem roupas novas, e a liturgia também continua em família, com um almoço melhorado”.

Este ano vai passar o Natal na comunidade da cidade. "Normalmente vou almoçar com as missionárias da caridade, as irmãs de Santa Teresa de Calcutá. São elas que nos dão o almoço e o jantar enquanto nós trabalhamos na cidade”, conta.

Na Etiópia seguem o calendário ortodoxo. “Só celebramos o Natal no dia 7 de janeiro, e não no dia 25 de dezembro, porque o calendário litúrgico que os católicos seguem na Etiópia é o calendário da Igreja Ortodoxa da Etiópia” explica. Mas assinalam com grande devoção o dia do batismo do Senhor.

“Há essa curiosidade: embora a celebração do Natal seja muito bonita e bem participada, em que a Igreja se enche de cor e alegria, a celebração maior na quadra natalícia é o Timkat (também conhecido como a Epifania etíope, em que se celebra o Batismo de Jesus no Rio Jordão, e que será assinalado a 19 de janeiro de 2025). “Aí é que realmente o Mistério da Encarnação do Senhor é celebrado extensivamente. A festa começa no dia anterior, dia 18, normalmente os ortodoxos celebram sempre durante a noite, como vigília. A Eucaristia acaba com uma grande bênção a toda a multidão, com água benta”.

“É outra das realidades que experimentamos na Etiópia, onde o Natal tem dois momentos, o momento do nascimento do Senhor e depois o momento do seu batismo e da sua manifestação como Salvador do mundo”, sublinha.

Para o padre José Vieira, o Natal “é uma quadra eminentemente missionária. Nós, os missionários, enquanto contemplamos o Mistério de Belém, contemplamos o mistério da nossa vocação. Como Jesus encarnou a nossa história, também nós somos chamados a encarnar a história, a cultura, o espaço em que manifestamos, através da nossa vida e através da pregação, o amor de Deus para com todos os povos. No meu caso, o povo Guji, no sul da Etiópia”.

Ângela Roque, Rádio Renascença

17 de dezembro de 2024

DEUS, MINHA MÃE


Por defeito profissional, quando leio um romance, procuro notar qual é a relação do autor com Deus. Valter Hugo Mãe, no seu Deus na escuridão – uma ficção que tem a Medeira como cenário – fala de Deus como mãe. Porque, como escreve Afonso Cruz em Flores, «Deus não é macho».

No décimo capítulo, que leva o título do livro, o autor escreve no primeiro parágrafo, que «Deus é certamente como as mães. Liberta Seus filhos e haverá de buscá-los eternamente. Passará todo o tempo de coração pequeno à espera, espiando todos os sinais que Lhe anunciam a presença, o regresso dos filhos». 

E prossegue: «Deus é exatamente como são as mães, que criam e depois vão ficando para trás, à distância, numa distância que parece significar que não são mais precisas, e Ele, como elas, só sabe amar acima de qualquer defeito e qualquer falha, com cada vez maior saudade. [...]. Deus, como as mães, corre os dias inteiros à janela e escuta. [...] A casa de Deus tem a chave do lado de fora, debaixo de um vaso. Toda a gente o sabe. É tique de todas as mães que dormem lá dentro vulneráveis q qualquer ladrão. [...] Exatamente como as mães, Deus cozinha os seus pratos favoritos e acredita que agora ficarão para sempre.»

Esta ideia de Deus como mãe não é estranha à Bíblia. Devido à nossa cultura, desenvolvemos muito o conceito de Deus-Pai e esquecemos o de Deus-Mãe. No livro do Deuteronómio lemos: «Desprezas a Rocha que te deu à luz, esqueces o Deus que te gerou» (Deuteronómio 31:18, na tradução da Bíblia de Jerusalém; a Bíblia dos Capuchinhos, traduz: «Desprezaste o Rochedo que te gerou, e esqueceste o Deus que te formou»).

O profeta Isaías também fala de Deus como mãe. No capítulo 49, Deus pergunta: «Acaso pode uma mulher esquecer-se do seu bebé, não ter carinho pelo fruto das suas entranhas?» E responde: «Ainda que ela se esquecesse dele, Eu nunca te esqueceria!».

No último capítulo do livro, Deus promete: «Como a mãe consola o seu filho, assim Eu vos consolarei».

O povo guji, com quem vivo, partilha a mesma intuição. Começa as orações tradicionais invocando «Deus nosso Pai, Deus nossa Mãe, Deus nosso Avô, Deus nossa Avó, Deus nosso Bisavô, que nos deu à luz!»

Eu aprendi a rezar com eles, a invocar Deus por. novos nomes. A missão é circular: evangelizamos e somos evangelizados. Anunciamos Deus e aprendemos novas formas de dizer Deus. 

Tomas Halik, teólogo checo que, juntamente com José Tolentino Mendonça, me inspira, escreve em O sonho de uma nova manhã, o seu livro mais recente, que «a evangelização sob a forma de inculturação pressupõe [...] também a disponibilidade para compreender a nossa própria fé de uma nova e mais profunda forma, num novo contexto cultural». O sublinhado é dele.

Voltando ao Deus na escuridão, Valter Hugo Mãe apresenta uma definição de oração interessante: rezamos para dizer a Deus aonde estamos. 

As rezas são uma espécie do transmissor que identifica os aviões e marcam a sua posição no céu: «Se Deus pudesse, escreveria a cada filho uma carta de amor para o convencer a vir em visita. Mas o paradeiro do filho só se descortina pela prece. Sem isso, Deus guarda as cartas que escreve sem ter para onde as enviar. Espera. No que à visão de seus filhos se refere, Deus espera na escuridão. Seu candeeiro é Seu nome na boca do filho.» 

Genial!

10 de dezembro de 2024

CELEBRAR A PADROEIRA





Qillenso – a missão entre o povo guji da Etiópia onde sirvo – foi estabelecida oficialmente em 1981, dedicada à Senhora das Dores. Entretanto, a festa da padroeira passou a ser comemorada a 8 de dezembro, Senhora da Imaculada Conceição. 

Oficialmente a paróquia continua dedicada à Senhora das Dores. Porém, a data da solenidade foi mudada por duas razões. 

Primeiro, setembro e outubro são, aqui, o ponto alto da estação das chuvas. Quando chove, chove mesmo e estorva a organização e as deslocações.

Depois, em setembro os produtos agrícolas – milho, café, repolho, cereais – estão a crescer. Em dezembro, em plena estação seca o tempo das colheitas dá muito mais de comer e dinheiro para comprar.

A festa deste ano celebrou-se no domingo, dia 8, mas os preparativos começaram nos dias anteriores. Os jovens ensaiaram a dramatização da parábola do filho pródigo e os coros deram lustro às atuações.

Na sexta, um grupo de mulheres lavou o chão e as cortinas da igreja. 

No sábado, as adolescentes assearam o templo depois da reunião semanal. 

Algumas mulheres, ajudadas pelo catequista Mi’essa e por um dos anciãos da comunidade, estiveram até às duas da manhã a migar couves e repolhos, a raspar cenoiras e a cozer pão – bolos de trigo de um palmo de diâmetro e dois dedos de altura – para o almoço da festa. Devido a um apagão de mais de 24 horas, as mulheres trabalhavam de pilhas amarradas à cabeça.

Para a festa paroquial, participaram representantes de quatro das cinco capelas do centro. De Gosa, a 35 quilómetros mais a norte, não é fácil arranjar transporte ao domingo. As Missionárias da Caridade, as Irmãs de Santa Teresa de Calcutá, também marcaram presença com um grupo de jovens de Adola, o centro citadino da missão.

A igreja, que é pequena, estava à pinha, com as crianças sentadas nos degraus do altar e o corredor central e outros espaços com bancos e cadeiras extra. Estava decorada com bandeirinhas no exterior e balões e ervas de junco no interior.

A missa estava marcada para as 9h30. Porém, começou uma hora depois. Como é uso, foi bem participada, cantada e dançada. Coube-me presidir, ladeado pelo pároco e pelo seminarista que vive connosco, os catequistas da zona e os acólitos.

Depois da eucaristia – que demorou mais de duas horas – os jovens apresentaram a encenação inculturada da parábola da misericórdia. A assembleia seguiu o drama muito atenta e gozosa!

Os coros atuaram depois: os três de Qillenso (mulheres casadas dirigidas por Mi’essa, jovens com alguns adultos penetras e adolescentes) e os das capelas. Todos trajados a preceito. Entre atuações foram leiloados os produtos levados para o ofertório: milho, café, manteiga, uma galinha...

Já passava das 15h00 quando fomos para o salão paroquial para o almoço. Um momento sempre alegre. A ementa foi simples, mas nutritiva: um bolo de pão com um prato de vegetais cozidos. A comida estava saborosa.

Depois veio o grande desafio de futebol entre a equipa de Qillenso e a seleção do resto das capelas. Um jogo bem disputado e aferroado: os da casa levaram os hóspedes de vencida. E também houve alguma briga de permeio. É costume!

Assim se celebrou a Senhora das Dores no dia da Senhora da Imaculada Conceição de Qillenso com uma mensagem fundamental: «Temos mãe!». A declaração que o papa Francisco repetiu, emocionado, em Fátima há sete anos e meio, durante a eucaristia do centenário das aparições. Ainda ressoa dentro de mim.

 

2 de dezembro de 2024

AZUL DO CÉU

Hoje o pintor encheu de anil
o céu por cima de mim.
Sem fiapo de nuvem

nem grão de poeira.
Um azul que envolve 
e devolve,
e enche o olhar de paz
e o coração!
Um céu que leva
para além dele,
atrás do horizonte:
cor de infinito 
sobre tela breve.
Este azul celeste,
da mana-saudade,
que também é dele,
fundo, altaneiro,
regressa-me ao dia primeiro 
quando a Voz criadora anelou:
"Faça-se luz!"
A luz? 
Azul anilado,
índigo!


15 de novembro de 2024

HAWASSA TEM NOVO BISPO


O Vicariato Apostólico de Hawassa, no Sul da Etiópia, já tem bispo nomeado depois de uma longa espera de quatro anos. 

A notícia apareceu hoje no Boletim da Sala de Imprensa do Vaticano e foi tornada pública na casa episcopal de Hawassa pelo Encarregado de Negócios da Nunciatura Apostólica de Adis-Abeba, Monsenhor Massimo Catterin.

Dom Gobezayehu Getachew Yilma é o Vigário Apostólico nomeado para Hawassa.

O novo prelado fará 46 anos a 4 de dezembro e pertence ao clero do Vicariato Apostólico de Meki. 

Nasceu em Dodola, na Zona de Bale, Estado Regional da Oromia, a 4 de dezembro de 1978.

Antes de ingressar no seminário estudou agronomia.

Foi ordenado padre em 2005.

É doutorado em Teologia na vertente da Doutrina Social da Igreja.

Até agora, desempenhava as funções de Vigário Delegado do Vicariato Apostólico de Meki e Diretor Executivo da Cáritas Diocesana.

A sua nomeação foi recebida com grande regozijo.

Há cerca de quatro anos que o Vicariato de Hawassa era administrado pelo P. Juan Núñez, comboniano espanhol que há um mês completou 80 anos.

Dom Gobezayehu é o quinto bispo de Hawassa, sucedendo a três combonianos e a um salesiano (todos italianos) que, há quatro anos, foi transferido para o Vicariato Apostólico de Gambella.

O Vicariato Apostólico de Hawassa cobre um território em forma de triângulo com mais de 100 mil quilómetros quadrados, evangelizando os grupos étnicos Sidama, Guji, Guedeo, Borana e Amaro.

É a maior jurisdição católica em termos de fiéis. Em dezembro de 2023 contava com quase 280 mil católicos registados.

A Prefeitura Apostólica de Hawassa, foi iniciada pelos Combonianos em 1969 com o território da antiga Prefeitura Apostólica de Neguele e parte da de Hosanna. 

Foi elevada a Vicariato Apostólico dez anos mais tarde.

Tem 22 paróquias-missões com 558 capelas, servidas por 49 padres, 22 diocesanos e 27 missionários (Combonianos, Espiritanos, Apóstolos de Jesus, Salesianos e Capuchinhos), oito irmãos, 69 irmãs, 109 catequistas a tempo inteiro e 531 em ocupação parcial. Também conta com uma congregação feminina local.

As suas 62 escolas da pré-primária até ao secundário são frequentadas por cerca de 24 mil alunos ensinados por 656 professores. 

O Vicariato tem 13 estabelecimentos de saúde, incluindo um hospital de saúde materno-infantil. 27 médicos e 120 enfermeiros atendem cerca de mil pacientes por dia.

A Igreja em Hawassa dá emprego a 762 trabalhadores nas diversas missões.

Chama-se Vicariato Apostólico a uma diocese sob a jurisdição do Dicastério para a Evangelização dos Povos. Tecnicamente, o prelado é o Bispo de Roma. Daí o título de Vigário Apostólico dado ao bispo local.

13 de novembro de 2024

O SÍNODO TERMINOU E VAI COMEÇAR

A XVI Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos «Para uma Igreja sinodal: comunhão, participação, missão» chegou ao fim depois de três anos de trabalhos intensos. O caminho sinodal começou a 9 de outubro de 2021 e cortou a meta a 27 de outubro de 2024. Agora começa a sua execução.

Foi um sínodo novel a muitos títulos. Sublinho alguns: começou com uma auscultação mundial sem precedentes; teve assembleias nacionais e continentais; decorreu não no anfiteatro do costume, mas no espaço raso da Sala Paulo VI; utilizou o método de trabalho de conversação no Espírito através de pequenos grupos; teve mulheres e homens não bispos a votarem; e Francisco anunciou que não vai escrever uma Exortação Apostólica pós-sinodal, atribuindo ao Documento Final autoridade própria.

O trecho conclusivo insere uma pequena citação da narrativa das aparições de Jesus Ressuscitado do Evangelho segundo São João (capítulos 20 e 21) na introdução, em cada uma suas das cinco partes e na conclusão.

O recurso leva-nos às origens da experiência cristã e da Igreja: o encontro com o Ressuscitado. Foi esse evento que transformou a vida de um punhado de discípulos aterrados e de portas trancadas num qualquer primeiro andar em Jerusalém em anunciadores intrépidos de que Jesus vive e é o Senhor do universo. É o encontro com o Senhor Ressuscitado que sustém a Igreja e cada um dos seus membros hoje e sempre na sua peregrinação através da história.

Documento Final marca um regresso em força ao Concílio Vaticano II e mormente à sua eclesiologia. A Constituição Dogmática Lumen Gentium (de 21 de novembro de 1964) sobre a Igreja é citada mais de quatro dezenas de vezes ao correr do texto. Outros sete documentos conciliares também são mencionados.

A palavra-chave do documento é relações/relação. Na versão portuguesa do Documento Final a palavra relações aparece 56 vezes desde o parágrafo 8 até à conclusão e o seu singular 24. Aliás, a Parte II do texto é intitulada «Conversão das relações».

«Ao longo de todo o caminho do Sínodo e em todas as latitudes, emergiu o apelo a uma Igreja mais capaz de alimentar as relações: com o Senhor, entre homens e mulheres, nas famílias, nas comunidades, entre todos os cristãos, entre grupos sociais, entre as religiões, com a criação», assinala o parágrafo 50.

A conclusão sublinha que «Espírito colocou no coração de cada ser humano o desejo de relações autênticas e de vínculos verdadeiros» (n.º 154).

Estamos perante a génesis de uma nova teologia da fé e da Igreja como entrelaçado de relações múltiplas e artesanais à volta do Ressuscitado? Uma Igreja sinodal é uma Igreja relacional.

O documento – que na tradução portuguesa tem menos de 27 mil palavras – está estruturado em 155 parágrafos. É mais teórico que o Relatório de Síntese da primeira sessão, que vinha recheado de propostas práticas e diversificadas.

Repete que a Igreja Sinodal assenta no tripé da comunhão, participação e missão, que a Igreja é uma comunhão harmónica de diferenças, que a formação permanente ao estilo do catecumenado é para todos e todos juntos: dos fiéis leigos aos bispos, e volta a falar da missão no digital.

Muitos dos temas mais quentes com a ordenação de mulheres diáconos, a instituição de novos ministérios e as mudanças no Direito Canónico para acomodar novas práticas sinodais foram confiados às respetivas comissões.

A África é mencionada duas vezes: quando o documento recorda que o SECAM, o Simpósio das Conferências Episcopais da África e Madagáscar, foi mandatado de discernir sobre o acompanhamento pastoral de pessoas em matrimónios poligâmicos (n.º 10), e quando o trabalho dos catequistas que «sempre estiveram à frente de comunidades sem presbíteros em muitas regiões de África» (n.º 76) é exemplo concreto do que é o ministério de coordenação de uma pequena comunidade eclesial.