2 de dezembro de 2025

A FORÇA DA GERAÇÃO Z


Madagáscar tem novo chefe de Estado desde Outubro, depois de o presidente Andry Rajoelina fugir do país após três semanas de manifestações sobretudo de jovens da Geração Z, os nativos digitais nascidos entre 1997 e 2012. O coronel Michael Randrianirina é o novo líder do país-ilha do Índico. Os cortes prolongados de água e de eletricidade foram o rastilho que desencadeou o grande levantamento juvenil que fez pelo menos 22 mortes e mais de uma centena de feridos. Dom Benjamin Ramaroson, arcebispo de Antsiranana, explicou ao portal ACI África que «os jovens, desarmados, queriam reivindicar os seus direitos fundamentais, mas a repressão foi muito dura».

A Geração Z africana representa 40 por cento da população – cerca de 600 milhões de jovens – e vive no espaço digital, usando-o para comunicar e se organizar. Viu-se em Madagáscar como se tinha visto no Quénia e em Marrocos. E depois na Tanzânia.

Em Junho de 2024, o presidente William Ruto do Quénia introduziu no Parlamento um projeto de lei para aumentar o IVA sobre bens essenciais e cortar nos subsídios aos combustíveis. Os jovens foram para a rua lutar contra a proposta. As forças da ordem reprimiram os manifestantes com violência e dezenas foram mortos. No final, o presidente teve de fazer marcha-atrás. Em Julho deste ano, a Geração Z regressou às ruas contra o governo de Ruto no 35.º aniversário da marcha Saba Saba do movimento pró-democracia. Exigiam melhores condições de vida e mais transparência nas contas públicas. A comissão queniana de direitos humanos registou 31 mortes, 107 feridos e mais de 500 detenções.

Em Marrocos, os jovens, organizados sob o coletivo GenZ 212 – o número do indicativo telefónico internacional do país –, protestaram contra os gastos do Governo com as infraestruturas para o mundial de futebol de 2030 (que o país organiza com Portugal e Espanha), e a falta de investimentos na saúde e na educação e queriam a demissão do primeiro-ministro. As manifestações foram brutalmente reprimidas pela polícia.

Na Tanzânia, nas eleições presidenciais de 29 de Outubro, os nativos digitais também estiveram particularmente ativos, sobretudo depois de a comissão eleitoral ter declarado vencedora a incumbente Samia Suluhu Hassan com quase 98 por cento dos votos. A União Africana denunciou o ato eleitoral como não conforme com os padrões democráticos internacionais. As autoridades usaram de força letal contra os manifestantes e ocultaram os mortos. Mais de uma centena foram levados a tribunal acusados de tentar obstruir o ato eleitoral.

A Geração Z africana é uma geração que se faz ouvir, militante, corajosa, ciosa dos seus direitos. Uma força com que os políticos têm de se haver. A rápida expansão e a grande acessibilidade da rede digital facilitam a sua intervenção. Daí que, quando há agitação social, os governos tendam a desligar a internet ou, pelo menos, as redes sociais.

28 de novembro de 2025

A NOIVA RESPLANDECENTE


— O meu marido vai deixar-me trabalhar e conduzir! — disse-nos, com um sorriso rasgado, a jovem noiva beduína.

Está envolta no seu longo vestido rosa pálido, ricamente debruado, tão leve que parecia flutuar com o vento do deserto.

Ela terminou o curso de enfermagem com as melhores notas. Várias clínicas já lhe ofereceram emprego.

Alguns meses atrás, rompeu outro noivado — mesmo depois da festa — ao descobrir que o futuro marido não a deixaria exercer a profissão. 

— Estudei tanto para ficar em casa? Não! — disse, firme, apoiada pelo carinho da mãe, a sua aliada mais fiel.

Hoje celebrámos o seu novo noivado, numa pequena aldeia beduína situada numa montanha do deserto da Cisjordânia, nos territórios palestinianos ocupados.

A noiva, que esteve connosco nos acampamentos de verão e no projeto de bordado Fili di Pace (Fios de paz), brilha como um fio luminoso entre tantas mulheres.

A festa decorre ao ar livre, no deserto, entre montanhas e colinas douradas pelo pôr do sol, no topo onde fica a sua aldeia. 

—O meu filho vai buscá-las. Deixem o carro lá em baixo! — disse-nos a mãe. 

O caminho é íngreme, uma verdadeira aventura: doze pessoas amontoadas num jipe, saltando entre pedras e curvas, roçando o abismo com o coração a bater forte sob o céu estrelado.

No topo, a noite é iluminada com luzes, cantos e risos. 

Quase todos os rostos nos são familiares. 

Dança-se, conversa-se, abraçam-se famílias que tiveram que deixar as suas aldeias por medo e que aqui encontraram um lar. 

As crianças correm para nos cumprimentar, as mães abraçam-nos com carinho. Aqueles que ainda não nos conhecem ficam surpreendidos com tanta familiaridade.

As missionárias somos as únicas não palestinianas. 

E ela, a noiva, está resplandecente. Os seus olhos refletem a promessa de um futuro aberto, onde a sua inteligência e o seu desejo de servir vão abrir novos caminhos para tantas raparigas beduínas.

A vida não é fácil! Mas continuam a encontrar-se, a dançar, a celebrar. Porque, apesar de tudo, a vida insiste, floresce no meio do deserto — e elas, com uma força suave e obstinada, escolhem não desistir, levantar os olhos, abrir caminhos e viver.

Ir Cecília Sierra

Missionária Comboniana no Deserto da Cisjordânia

19 de novembro de 2025

TUDO É CAMINHO


Deitei-lhe a mão. Hoje! Finalmente. Para os caminhantes tudo é caminho é a criação mais nova de José Tolentino Mendonça. 

Traz na capa estampado um barbusano. Planta perene e altaneira da Floresta Laurissilva da Madeira. De tronco denso, resistente. Um símbolo apropriado do homem, poeta, pensador, místico, mestre que nasceu na Pérola do Atlântico há sessenta anos.

Nasce de chofre como o riacho que brota de uma fraga rasgada na montanha! Sem introdução nem prefácio. Nem tão pouco posfácio. Capítulo segue capítulo. Sem páginas nem grandes espaços em branco. Cento e oitenta páginas com cinquenta e duas reflexões breves. Variadas. Profundas. Desafiantes. Inspiradas. Inspiradoras...

A sabedoria do invisível e do indizível destilada em letras e espaços. Porque «a sabedoria é amar tudo»! 

Um desafio a viver no real, a contemplar o real tal e qual. Sem frases feitas ou de efeito pirotécnico.

Um ótimo presente de Natal. Com certeza!

8 de novembro de 2025

NATAL: TUDO ESTÁ PRONTO


Agulha e linha dançam entre os dedos das mulheres beduínas no deserto da Cisjordânia. Traçam pequenos sinais de luz com o bordado tradicional palestiniano: cartões de natal que contam a beleza e a fragilidade desta terra amada —a cabana aberta para o céu, as estrelas que guiam, as ovelhas, os camelos e os burros que acompanham o mistério do nascimento de Jesus. 

O Natal aproxima-se, e nas pobres cabanas de zinco do deserto as mulheres bordam sem parar com mãos pacientes e corações cheios de esperança.

Na Cisjordânia, onde o conflito e a insegurança marcam o dia-a-dia, onde a ameaça de expulsão pesa sobre o único lugar a que chamam de casa, elas continuam a criar, acreditar e esperar.

Com dedicação, preparam também enfeites para a árvore de natal: não bolas metálicas, frias, mas criações vivas, tecidas com cor, paciência e dignidade.

Imagine uma árvore na sua casa ou na sua igreja, adornada com estes bordados! Sinais silenciosos de uma solidariedade que une os corações além de qualquer distância.

E enquanto preparam pequenos saquinhos, delicados como confetes, tornam-se mensageiras de paz e partilha.

Tudo está pronto...

Neste Natal, voltemos o nosso olhar para a Terra Santa e o seu povo: para fazer renascer a esperança, abrir o coração à solidariedade e reconhecer nas «manjedouras» de hoje os lugares onde Deus se faz próximo, na simplicidade e na ternura desarmada de quem vive nas margens da vida.

«Entrar em contacto com os pobres e os impotentes é uma forma fundamental de encontrar o Senhor da história», recorda o Papa Leão XIV.

Há alguns meses, levámos uma máquina de costura nova para a pequena aldeia beduína e eu disse, quase sem pensar: «E se eles os atacarem novamente, o que acontecerá à máquina?»

Uma das mulheres, mãe de seis filhos — três dos quais com menos de onze anos — respondeu-me com uma calma que partiu o meu coração: «Quando os virmos chegar, vou correr para a salvar».

Esta manhã, outro grupo de colonos chegou antes do amanhecer e destruiu com uma máquina escavadora a casa de uma família da aldeia. 

«Esta noite não vamos conseguir dormir», dizem as mulheres, enquanto recebem linhas e tecidos para bordar. 

Trabalham contra o tempo, entre o medo e a esperança, sabendo que qualquer dia pode ser a sua vez.

No entanto, continuam a bordar. 

Decorações para as árvores de natal, postais com Maria, José e o Menino Jesus — que também nasceu aqui, nesta terra ferida, à noite, vulnerável.

A pergunta delas é urgente: «Podemos ficar, pelo menos, até ao Natal?»

Ir. Cecília Sierra

Missionária Comboniana no Deserto da Cisjordânia

 

Se quiseres celebrar um natal solidário e comprar alguns dos produtos bordados pelas beduínas do Deserto de Judá deixa o teu contacto nos comentários. Obrigado! Shukran!

7 de novembro de 2025

NEM CHICOS-ESPERTOS NEM MORCÕES


O evangelho de hoje é tirado de Lucas (16, 1-8). Jesus conta aos discípulos – e, por meio deles, a nós também – uma das parábolas mais desconcertantes que criou.

Era uma vez um administrador que foi denunciado por desperdiçar os bens à sua guarda. Quando o patrão o chamou para fechar as contas, ele pôs-se a matutar: «Vou perder o emprego. E agora? Não tenho forças para trabalhar nem coragem para mendigar!»

Então, gizou uma estratégia para ganhar a hospitalidade dos devedores. Chamou-os um a um para restruturar as dívidas. O primeiro devia cem talhas de azeite. Ele cortou o débito para cinquenta. Ao que devia cem medidas de trigo, fez um desconto de vinte por cento.

No fundo, o que o administrador fez foi obrigar o homem rico a respeitar a Lei que proibia a usura, empréstimos com juros. No tempo de Jesus era costume cobrar cem por cento nos empréstimos de azeite e vinte e cinco por cento nos de trigo.

No fim, o credor elogia a esperteza do administrador desonesto no trato com os seus semelhantes.

A parábola parece advogar a corrupção como modo de vida. Mas não!

Primeiro, diz que só há um Senhor e que nós somos todos administradores. O que temos não é nosso: foi-nos confiado. Às vezes esbanjamos... O Senhor chamar-nos-á a contas!

Depois, a chave de leitura é esta: no trato com os nossos semelhantes não precisamos de ser morcões. Nem tão pouco chicos-espertos. Somos filhos da luz! Precisamos de atuar com esperteza, usar a cabeça, pensar como resolver as situações, discernir. 

Deixemos que a luz de Deus ilumine as nossas relações interpessoais, combatendo a mundanidade – como tantas vezes nos convidou o saudoso Papa Francisco.

4 de novembro de 2025

A MODA DOS CORREDORES


Cheguei à Etiópia na manhã de 9 de Janeiro de 1993. Adis Abeba, Nova Flor, como foi rebatizada – os Oromos, esses continuam a chamar-lhe Finfinne – era uma mistura promíscua do velho e do novo, do belo e do feio. O Hilton convivia com casebres feitos de barro, madeira, plásticos ou zinco. Era assim por toda a cidade. As ruas, a pedir há muito nova camada de asfalto para tapar os buracos, eram disputadas por veículos, peões e grandes filas de burros de carga, com gado a pastar placidamente nas rotundas e alamedas. O Governo tinha gastado três décadas a lutar contra os separatistas da Eritreia e a guerra e a corrupção sorveram os dinheiros públicos.

Hoje, Adis – como afetuosamente lhe chamamos – é uma metrópole moderna, cheia de altos edifícios de desenhos arrojados, grandes avenidas à mistura com alguns bairros-de-lata. Transformou-se num estaleiro onde grandes construções nascem um pouco por toda a cidade como cogumelos depois das primeiras chuvas.

O executivo municipal da capital, entretanto, lançou o Projeto de Desenvolvimento do Corredor – assim, no singular – em Fevereiro de 2024, uma iniciativa de transformação urbana para melhorar a mobilidade e segurança, infraestruturas e espaços públicos.

Começou com cinco corredores no centro da cidade. Alargaram as faixas de rodagem e sobretudo os passeios para peões e ciclistas. Construíram fontes luminosas e espaços verdes. Colocaram candeeiros vistosos e árvores nos separadores centrais. Na segunda fase, lançada oito meses depois, a edilidade vai fazer mais oito corredores novos com uma intervenção de 132 quilómetros. Contudo, para alargar vias e passeios, são demolidas lojas, habitações e outras construções sem consultas adequadas ou compensação. Normalmente, as estruturas a destruir são marcadas com um X e os ocupantes têm alguns dias para as desocupar.

O projeto capitalino foi alargado a mais de seis dezenas de centros urbanos e chegou inclusive a Adola, a capital administrativa e sagrada do povo Guji, com quem vivo, a mais de 460 quilómetros da capital. O município exige a demolição do muro da frente da igreja e da biblioteca pública católica e a sua reedificação alguns metros mais atrás, ameaçando com multa se não o fizermos. Uma empresa começou por pedir oitenta mil birr (cerca de 460 euros), seis meses de salário de um professor, para fazer a demolição.

A Amnistia Internacional acusa as autoridades de violar os direitos humanos dos despejados por falta de consultas públicas e planeamento jurídico antes das demolições e pediu uma «pausa imediata» no projeto. O impacto social e psicológico nos residentes obrigados a mudar imediatamente de casa e de lugar também é enorme. Em Jimma, uma cidade no Oeste do país, 15 mil pessoas foram desalojadas por via dos corredores. Depois, pelo menos nalgumas zonas da capital, à noite os corredores estão bem iluminados e com belas fontes decorativas a funcionar, cenário para selfies, enquanto no bairro ao lado não há nem água nas torneiras nem luz. O progresso é bem-vindo, mas com respeito pelos cidadãos e seus direitos.

30 de outubro de 2025

ROSTOS DA ESPERANÇA


Pela primeira vez, um grupo de mulheres beduínas palestinianas encontrou-se diante de tantos homens que não eram de sua família nem partilhavam a sua língua, a sua fé ou a sua terra. Tudo parecia separá-las… e, no entanto, algo invisível e profundo as uniu.

Na humilde cabana de chapas e zinco — transformada em sala de encontro e coração da aldeia beduína de Abu Nawar —, prepararam-se com cuidado para o tão esperado momento. 

— São da Igreja! — dissemos-lhes. — Vêm como peregrinos da paz. 

E elas, com uma mistura de timidez e dignidade, abriram a sua casa e o seu coração para acolher mais de trinta bispos e outras pessoas das dioceses da Lombardia, na Itália, que chegaram a esta terra ferida e sagrada «em peregrinação de paz e esperança universal, para expressar solidariedade, proximidade e apoio às comunidades atravessadas por conflitos e tensões».

Os aromas do café acabado de fazer e do chá de ervas misturavam-se com o ar quente do deserto. Jamila, a anfitriã, organizava com paciência as vizinhas: cada uma trazia o café preparado na própria casa, como se, com cada xícara, oferecesse uma bênção. Os aromas do café acabado de fazer e do chá de ervas misturavam-se com o ar quente do deserto. Jamila, a anfitriã, organizava com paciência as vizinhas: cada uma trazia o café preparado na própria casa, como se, com cada xícara, oferecesse uma bênção.

Pela primeira vez, como concessão à tradição, as mulheres deixaram-se ver, partilhando o mesmo espaço com homens estranhos. Com mãos firmes e olhares suaves, mostraram os seus bordados tradicionais: fios coloridos que contam a sua história, a sua resistência, a sua beleza.

São cerca de vinte e cinco mulheres — avós, mães, jovens — unidas pelo desejo de preservar a arte das antepassadas e de tecer com as próprias mãos um futuro mais digno. Após semanas de aprendizagem, algumas receberam naquele dia o primeiro pagamento.

— É o primeiro dinheiro que ganho com meu próprio trabalho. Sinto-me tão feliz! — diz Rimal, com brilho nos olhos. — Sonhava ser enfermeira, mas tive de abandonar a escola. Caminhávamos horas para chegar, às vezes sem comer. Desde a guerra, tudo parou… Mas ainda sonho. Adoro inglês e quero escrever um livro. Tenho tantas histórias para contar!

O pequeno salão comunitário encheu-se de risos, olhares e gratidão. As mulheres ofereceram a cada bispo um simples cartão de Natal, feito por outras beduínas que não puderam estar presentes.

— O que estão a cantar? — perguntou, curiosa, Naufa, ao ouvir os bispos entoarem O sole mio.

— Que bonito... Que voltem outra vez! — repetia, emocionada.

No fim, o silêncio desceu como um manto. Os bispos, guiados pelo arcebispo, ergueram as mãos para abençoar. E sob o céu imenso do deserto, a presença de Deus foi sentida próxima, envolvendo a todas e a todos — cristãos, muçulmanos, crentes e buscadores — num mesmo abraço.

No meio da pobreza e da incerteza, onde tantas fronteiras dividem, as mulheres beduínas teceram, com sua hospitalidade, uma pequena profecia:

  • que, mesmo na terra árida, prenhe de conflito e de dor, a vida floresce;
  • que, mesmo na hostilidade, a paz pode nascer;
  • que Deus, o Único, de todos e todas, continua a infundir o seu sopro de vida neste deserto, tecendo entre nós e connosco Fios de Paz.

Ir Cecília Sierra

Missionária Comboniana no Deserto da Judeia 

16 de outubro de 2025

OS PRESENTES DA MISSÃO


O serviço missionário é uma tarefa e também um grande presente de Deus. Melhor, um ror de presentes! O Senhor da Missão, que chama e envia, também abençoa.

A missão deu-me...

Alguém me perguntou o que é que a missão me deu em 44 anos de vida missionária comboniana. Uma pergunta simples que me obrigou a fazer memória das muitas bênçãos que recebi por aceitar ser discípulo missionário de Jesus ao jeito de São Daniel Comboni.

Uma família muito alargada. Jesus promete a quem deixar os afetos e as raízes por causa dele uma recompensa cem vezes maior aqui e, depois, a vida eterna. Ele é um cavalheiro e honra a sua palavra! Deixei Cinfães, a família e os amigos para seguir Jesus como missionário comboniano. Estudei a teologia na Inglaterra (quatro anos) e trabalhei na Etiópia (doze anos) e no Sudão do Sul (mais sete). Também passei nove meses no México em formação permanente. Agora tenho uma família alargadíssima, espalhada pela Europa, África e América. Gente que são meus pais, irmãos e amigos. As redes sociais ajudar a mantem a comunicação com as pessoas que trago no coração como prenda de Jesus. 

Um povo novo. A missão deu-me um povo novo com quem vivo uma relação esponsal, aceitando as suas luzes e sombras. No dia 16 de janeiro de 1993 cheguei à missão de Qillenso, no seio do povo guji do sul da Etiópia, pelas mãos do saudoso P. Ivo do Vale. Até esse dia, não sabia que havia um povo que se chamava guji que pertence à grande família oromo. Entretanto, aprendi a sua língua, as expressões da sua cultura, a sua cozinha, as tradições. Também ganhei algumas peças de vestuário típicas dos homens gujis. Esta é a terra sagrada que calco descalçado do meu próprio etnocentrismo. A aprendizagem de provérbios e de algumas estórias abriu-me a uma sabedoria nova, complemento das referências que pautavam o meu sistema de valores. 

Novos modos de dizer Deus. Nós os portugueses temos as nossas maneiras de dizer Deus, de rezar, de crer – que variam de norte a sul. O povo guji também tem uma maneira tradicional de invocar o Todo-Poderoso. Nas orações próprias da cultura, invocam Deus como nosso pai e nossa mãe, nosso avô e nossa avó, nosso bisavô, aquele que nos deu à luz. É uma fórmula que codifica uma convicção não só bíblica, mas que foi encriptada por outros povos: viemos de Deus. Como disse São Paulo no Areópago de Atenas, «é nele, realmente, que vivemos, nos movemos e existimos». É interessante ouvir dizer que o silêncio atravessa Deus e que o amor seco (o amor sem obras) aleija! No Sudão do Sul, as pessoas tinham o hábito de dizer constantemente «Allah karim», «Deus é generoso» em árabe, outra invocação que juntei à minha ladainha dos nomes de Deus. A missão também é oração. Jesus iniciou as pessoas numa nova relação com Deus, chamando-lhe Abba, Papá. O missionário reza com a gente e ao seu jeito, facilitando e iniciando a experiência de Deus na escola de Jesus.

Uma nova vivência do tempo. O tempo – com o espaço – afiguram-se-nos como um conceito absoluto. Contudo, na Etiópia descobri que não há nada mais relativo do que a vivência do próprio tempo. Os etíopes contam o tempo usando um calendário diferente: estamos em 2018 desde o dia 11 de setembro, o primeiro dia de Meskerem, o mês que abre o ano etíope que tem 13 meses: 12 de 30 dias e um – Pagumê – de cinco ou seis, se o ano for bissexto. As zero horas são não à meia-noite, mas às seis da manhã. Depois, o Natal celebra-se a 7 de janeiro e a Epifania a 19; a Páscoa só de vez em quando coincide com a data do calendário universal como em 2025. A Assunção é a 22 de agosto e a Santa Cruz a 27 de setembro. Também aprendi que o tempo não se conta, mas faz-se através de encontros interpessoais e que a luminosidade é a forma natural de determinar as horas do dia. O relógio de pulso, esse é uma pulseira cara! Se o dia estiver enevoado, as horas são percebidas de uma forma diferente.

Mística do quotidiano. Na Etiópia, o dia-a-dia transcorre calmamente. Aprender o tempo é também desacelerar o viver. Nos primeiros oito anos, o serviço missionário era sobretudo feito a pé. Agora o asfalto já chegou ao território da missão e, onde não o há, as picadas são suficientemente largas para um carro passar. Vivendo devagar, caminhando pela floresta, voltei a tomar consciência do entorno: os pássaros e os seus chilreios felizes, os raios de sol a brincar com a neblina matinal por entre os ramos das árvores seculares, orquídeas selvagens, flores pequeninas a pintar o verde do chão... Recuperei a mística do quotidiano e até voltei a escrever versos.

Experiência profissional única. Em Portugal, exerci o meu serviço missionário sobretudo através do jornalismo, integrando a redação das revistas combonianas Além-Mar e Audácia durante uma dúzia de anos. O governo geral do Instituto comboniano convidou-me a integrar como diretor de informação a equipa de duas missionárias e um missionário encarregada de estabelecer a Rede de Rádios Católica no Sudão do Sul. Apesar da falta de meios técnicos, dos tiros na noite e de um clima abrasador, foi uma experiência profissional única. Comecei na Rádio Bakhita, em Juba. Quando as outras sete emissoras FM no Sudão do Sul e uma nos Montes Nubas, no Sudão, e mais uma estação dos Salesianos entraram em funcionamento montei uma redação própria com mais dois jornalistas. Foi um tempo exigente – preparar profissionais da informação e reportar o diário de um país a nascer, com alguns mal-entendidos com as autoridades à mistura – mas também muito proveitoso.

 

A missão dá à Igreja...

Outra pergunta: o que é que a missão dá à Igreja? A resposta engloba prendas múltiplas.

Identidade. A missão devolve a identidade à Igreja. A Igreja é missão. Jesus instituiu-a não para ser um clube isotérico de redimidos. Ele enviou-a aos confins do mundo, aos confins da vida para anunciar a Boa Nova do Reino de Justiça, Paz e Alegria já presente no meio de nós. A Igreja sem missão não é Igreja.

Partilha. O cardeal Luis Antonio Tagle, que chefia o Dicastério para a Evangelização – o ministério vaticano da missão, foi bispo da diocese filipina de Imus. Tinha muito poucos padres, mas quis partilhar alguns com a missão. Os conselheiros não estavam de acordo, mas eles partiram. E a diocese foi abençoada com uma abundância de vocações. A missão explica a matemática de Deus: para multiplicar é preciso dividir. A partilha é o caminho para a revitalização e renovação das Igrejas mais antigas.

Energia. A Igreja universal é a comunhão de todas as Igrejas particulares ou locais. As Igrejas jovens energizam as Igrejas mais antigas – mais exaustas, dão-lhes irmãs e padres para as servir nos diversos ministérios – calcula-se que cerca de quatro centenas de sacerdotes estrangeiros servem a Igreja em Portugal – no meio da seca vocacional extrema em que vivemos. A alegria com que as Igrejas mais jovens celebram a liturgia e a vida é estímulo às Igrejas mais antigas para balançar as normas litúrgicas com a criatividade do Espírito Santo que (co)move as comunidades. E recorda que a fé viva não é só cerebral (de ideias) ou cordial (de intimismos), mas que envolve o corpo inteiro: é palavra, música, dança, silêncio. As comunidades mais antigas estão mirradas e precisam da energia celebrativa das comunidades jovens que ensinam que todas as situações são boas e próprias para celebrar: a vida e a morte, a alegria e a tristeza. Celebrar juntos num ato de solidariedade efetiva e afetiva.

Hospitalidade. A hospitalidade é um preceito no Sul global. Nas comunidades do Norte impera mais a desconfiança. Proclamar Deus como o Pai comum é acolher a todos – mesmo os estranhos – como irmãos comuns. A hospitalidade mantém as comunidades acolhedoras e abertas às necessidades dos mais pobres e necessitados. E também se aprende. Nas minhas andanças pelas veredas do território guji, em novembro e dezembro, tempo da abundância de milho, se passasse por um miúdo a comer uma espiga cozida ou assada enquanto guardava o gado, ele imediatamente a partia e partilhava comigo. Eu sabia que até à noite não ia ter mais nada que comer, mas seria muito malcriado se não aceitasse a sua hospitalidade generosa. A hospitalidade faz-se e aceita-se. É um ato de humildade e de humanidade, é dizer que não sou autossuficiente, que o outro dá sentido à minha identidade.

9 de outubro de 2025

POBRE, EU TE AMEI


Aí está o primeiro grande documento de Leão XIV que também é o último de Francisco. O papa americano explica que o papa argentino tinha em mãos uma exortação apostólica sobre o cuidado da Igreja pelos pobres e com os pobres que ele assumiu, completou e hoje publica. Os Agostinhos, a que o papa Leão pertence, são uma congregação mendicante como os Franciscanos e Dominicanos, entre outras.

Chama-se DILEXI TE, «Eu te amei», e versa sobre o amor para com os pobres no seguimento de DILEXIT NOS, «Amou-nos» a exortação de Francisco sobre o amor humano e divino do Coração de Jesus.

A exortação apostólica escrita a quatro mãos é um documento curto que começa e acaba com as palavras «Eu te amei» tiradas do Apocalipse de São João (3, 9), o último livro da Bíblia. Tem 121 parágrafos e 130 notas. As citações que apoiam o texto remetem sobretudo para o magistério de Francisco.

O documento pontifício abre com uma curta introdução de três parágrafos e desenvolve o tema em cinco capítulos: Algumas palavras indispensáveis; Deus escolhe os pobres; Uma Igreja para os pobres; Uma história que continua; e, Um permanente desafio.

Deixa uma pergunta fundamental: «Muitas vezes pergunto-me, quando há tanta clareza nas Sagradas Escrituras a respeito dos pobres, por que razão muitos continuam a pensar que podem deixar de prestar atenção aos pobres» (nº 23).

 

Algumas pérolas

De uma leitura rápida do texto, respiguei algumas passagens-chave:

Os pobres são o caminho de santificação para os cristãos (cf. nº 3);

«Nos pobres, Ele [Jesus] ainda tem algo a dizer-nos» (nº 5);

«No rosto ferido dos pobres encontramos impresso o sofrimento dos inocentes e, portanto, o próprio sofrimento de Cristo» (nº 9);

«O serviço da caridade [é] o núcleo incandescente da missão eclesial» (nº 15);

«Ele [Jesus} apresenta-se ao mundo não só como Messias pobre, mas também como Messias dos pobres e para os pobres» (nº 19);

«A caridade é uma força que muda a realidade, um autêntico poder histórico de transformação» (nº 91);

«Torna-se normal ignorar os pobres e viver como se eles não existissem. Apresenta-se como uma escolha razoável organizar a economia exigindo sacrifícios ao povo, para atingir certos objetivos que interessam aos poderosos. Entretanto, para os pobres restam apenas promessas de “gotas” que cairão, até que uma nova crise global os conduza de volta à situação na qual estavam anteriormente. É uma verdadeira alienação que leva a encontrar apenas desculpas teóricas e não a tentar resolver hoje os problemas concretos daqueles que sofrem» (nº 93);

«Mesmo correndo o risco de parecer “estúpidos”, é tarefa de todos os membros do Povo de Deus fazer ouvir, ainda que de maneiras diferentes, uma voz que desperte, denuncie e se exponha. As estruturas de injustiça devem ser reconhecidas e destruídas com a força do bem, através da mudança de mentalidades e também, com a ajuda da ciência e da técnica, através do desenvolvimento de políticas eficazes na transformação da sociedade. É preciso recordar sempre que a proposta do Evangelho não é apenas a de uma relação individual e íntima com o Senhor» (nº 97).

«O cuidado com os pobres faz parte da grande Tradição da Igreja, como um farol de luz que, a partir do Evangelho, iluminou os corações e os passos dos cristãos de todos os tempos. Portanto, devemos sentir a urgência de convidar todos a entrar neste rio de luz e vida que provém do reconhecimento de Cristo no rosto dos necessitados e dos sofredores. O amor pelos pobres é um elemento essencial da história de Deus connosco e irrompe do próprio coração da Igreja como um apelo contínuo ao coração dos cristãos, tanto das suas comunidades, como de cada um individualmente» (nº 103).

«Com frequência, o bem-estar torna-nos cegos, a ponto de pensarmos que a nossa felicidade só pode ser alcançada se conseguirmos viver sem os outros. Nesse sentido, os pobres podem ser para nós como mestres silenciosos, reconduzindo o nosso orgulho e a nossa arrogância a uma conveniente humildade» (nº 108).

«Para nós, cristãos, a questão dos pobres remete-nos à essência da nossa fé. A opção preferencial pelos pobres, ou seja, o amor que a Igreja tem por eles, como ensinava São João Paulo II, “é decisivo e pertence à sua constante tradição, impele-a a dirigir-se ao mundo no qual, apesar do progresso técnico-económico, a pobreza ameaça assumir formas gigantescas”. A realidade é que, para os cristãos, os pobres não são uma categoria sociológica, mas a própria carne de Cristo. Com efeito, não basta limitar-se a enunciar de modo genérico a doutrina da encarnação de Deus. Para entrar verdadeiramente neste mistério, é preciso especificar que o Senhor se faz carne que tem fome e sede, que está doente e na prisão» (nº 110).

«Por vezes, em alguns movimentos ou grupos cristãos, nota-se a falta ou mesmo a ausência de compromisso pelo bem comum da sociedade e, em particular, pela defesa e promoção dos mais fracos e desfavorecidos. A este respeito, é preciso recordar que a religião, especialmente a cristã, não pode ser confinada à esfera privada, como se os fiéis não devessem interessar-se também pelos problemas relacionados com a sociedade civil e pelos acontecimentos que dizem respeito aos cidadãos» (nº 112).

«Convém dizer uma última palavra sobre a esmola, que hoje não goza de boa fama, frequentemente nem mesmo entre os cristãos. Não só é raramente praticada, como às vezes é até desprezada» (nº 115).

«O amor e as convicções mais profundas devem ser alimentados, e isso faz-se com gestos. Permanecer no mundo das ideias e das discussões, sem gestos pessoais, frequentes e sinceros, será a ruína dos nossos sonhos mais preciosos. Por esta simples razão, como cristãos, não renunciamos à esmola. Um gesto que pode ser feito de várias maneiras, e podemos tentar fazer de forma mais eficaz, mas que deve ser feito. E será sempre melhor fazer alguma coisa do que não fazer nada. Em todo o caso, tocar-nos-á o coração. Não será a solução para a pobreza no mundo, que deve ser procurada com inteligência, tenacidade e compromisso social. Mas precisamos de praticar a esmola para tocar a carne sofredora dos pobres» (nº 119)

«O amor cristão supera todas as barreiras, aproxima os que estão distantes, une os estranhos, torna familiares os inimigos, atravessa abismos humanamente insuperáveis, entra nos meandros mais recônditos da sociedade. Por sua natureza, o amor cristão é profético, realiza milagres, não tem limites: é para o impossível. O amor é sobretudo uma forma de conceber a vida, um modo de a viver. Assim, uma Igreja que não coloca limites ao amor, que não conhece inimigos a combater, mas apenas homens e mulheres a amar, é a Igreja de que o mundo hoje precisa» (nº 120).

«Quer através do vosso trabalho, quer através do vosso empenho em mudar as estruturas sociais injustas, quer através daquele gesto de ajuda simples, muito pessoal e próximo, será possível que aquele pobre sinta serem para ele as palavras de Jesus: “Eu te amei”» (Ap 3, 9).

8 de outubro de 2025

7 DE OUTUBRO: FIOS DE PAZ NO DESERTO

O 7 de outubro pesa na memória dos povos, especialmente na Terra Santa. Enquanto o mundo observa com ansiedade e dor os ecos da guerra e sonha com a paz, numa pequena aldeia no deserto da Cisjordânia floresce algo diferente: a esperança, bordada por mãos beduínas.

Nesse mesmo dia, um grupo de mulheres — avós, mães e jovens estudantes — reúne-se na creche da aldeia, transformada em ateliê e espaço de encontro. Com linhas e agulhas, elas aprendem, ensinam, partilham. 

O bordado palestiniano — arte milenar, memória viva, símbolo de identidade e resistência — volta a ganhar vida entre os seus dedos.

— Posso convidar outra pessoa? Hoje ela não pôde vir... — pergunta alguém. 

Outra mostra, orgulhosa, o seu primeiro desenho. 

Elas riem, animam-se, prometem avançar juntas. 

Em um mês, dizem, todas bordarão com desembaraço. 

Quem sabe mais, ensina; quem aprende, agradece.

Recebem agulhas, linhas, padrões e uma pequena bolsa como quem recebe uma semente. 

Cada ponto bordado é um gesto de esperança; cada reunião, um ato de solidariedade.

Enquanto o mundo recorda a ferida, elas tecem o futuro com fios de paz. 

No meio do deserto da Cisjordânia, o 7 de outubro deixa de ser apenas um dia de dor: torna-se um canto de resistência criativa, um amanhecer de vida que renasce entre as mãos.

Ir Cecília Sierra, 

Missionária Comboniana na Cisjordânia 

5 de outubro de 2025

ETIÓPIA: MISSIONÁRIAS DA CARIDADE CELEBRAM 25 ANOS EM ADOLA







As Missionárias da Caridade celebraram hoje a presença de um quarto de século em Adola. Em amárico, a capital administrativa e cidade santa do povo Guji, chama-se Kibre Menguist.

O P. Eliseo Citton – missionário comboniano da província italiana que trabalhou com o povo guji – presidiu à Eucaristia, que foi concelebrada pelos párocos de Qillenso (de que Adola faz parte) e de Soddu Abala, assistidos por um diácono capuchinho.

A missa jubilar foi muito participada por católicos das duas paróquias, uma verdadeira celebração cheia de vida e cor. 

As autoridades locais também marcaram presença.

No fim da missa, os participantes visitaram algumas instalações, sobretudo onde os pacientes estão internados.

Os jovens prepararam um drama e algumas danças típicas para animar a ocasião.

Depois, os participantes ofereceram presentes às irmãs, agradecendo os 25 anos de serviço missionário sobretudo aos mais pobres entre os pobres em Adola e Soddu Abala.

Os festejos concluíram com um almoço partilhado que incluiu o bolo de aniversário.

As Missionárias da Caridade – as irmãs fundadas por Santa Teresa de Calcutá – chegaram a Adola no ano 2000.

Começaram por viver em três contentores. Entretanto, o espaço expandiu-se e agora conta com um hospício com internamentos diferenciados para homens e mulheres, cozinhas e lavandaria, armazéns, um jardim infantil e uma escola de corte e costura, uma quinta e a casa da comunidade.

Dom João Migliorati, bispo de Hawassa, também construiu uma casa no espaço com vista à criação da diocese de Adola, que – projeto que, com a sua morte, foi congelado. A diocese de Hawassa é maior que Portugal.

As irmãs estão a construir um novo edifício para a escolinha e capela para os utentes. A capela original, tecida com canas-da-índia em estilo tradicional, foi destruída pelas térmitas. 

No hospício, internam pessoas com deficiência ou com doenças crónicas sem possibilidade de serem cuidadas em família (como a sida) e doentes terminais. Tratam também casos de malnutrição – sobretudo entre crianças e mulheres – e de tuberculose, servindo ao todo mais de 160 utentes. Também têm um berçário para bebés rejeitados.

As irmãs têm uma quinta que produz carne, vegetais, cereais e frutas para alimentar os internados.

O infantário oferece a primeira experiência de escolarização a cerca de duas centenas de crianças, sobretudo pobres.

As missionárias, além da assistência sanitária aos doentes e do ensino na pré-escola e na escola de corte e costura, também colaboram na pastoral em Adola e Soddu Abala.

Preparam crianças e jovens para a primeira comunhão e para o crisma e animam o grupo juvenil que reúne cada domingo à tarde no recinto da comunidade.

Aos sábados, os padres de Qillenso celebram a missa vespertina com os internados. É sempre uma festa!

O cemitério católico de Adola encontra-se no terreno das irmãs.

A presença das Missionárias da Caridade é uma bênção de Deus para os doentes, sobretudo crónicos e terminais, e para as duas paróquias com que colaboram na evangelização das crianças, dos jovens e das mulheres.

1 de outubro de 2025

TRANSIÇÃO ENERGÉTICA


Os bispos africanos denunciaram recentemente que «as alterações climáticas podem expor mais de 100 milhões das pessoas mais pobres de África a secas, inundações e calor extremos até 2030». É trágico que os mais empobrecidos do continente que menos contribuiu para a pegada global de carbono e que mais energias renováveis usa estejam a pagar a fatura do aquecimento global causado pela queima de combustíveis fósseis.

De facto, enquanto a América produz só 12,4 por cento da eletricidade que consome através das energias renováveis, a Europa 15,3 por cento e a Ásia 16,8 por cento, a África gera mais de metade eletricidade recorrendo a fontes limpas e contribui com apenas três por cento para as emissões globais de CO2. Por outro lado, 18 por cento da população mundial vive em África, mas só consome seis por cento da energia global. Mais de metade da população do continente ainda não tem acesso à corrente elétrica.

O continente, contudo, tem grandes alternativas para fazer a transição energética de combustíveis fósseis para energias limpas. Detém 60 por cento da capacidade solar mundial e um potencial de cerca de 59 mil gigawatts de energia eólica. A África do Sul, por exemplo, está a evoluir do carvão para o óleo e o gás como primeiro passo para a descarbonização. O País do Arco-Íris é o líder absoluto na produção elétrica com energias solar e eólica no continente. A Etiópia também tem investido na descarbonização. Em 2024, o Governo proibiu a importação de veículos com motores atmosféricos. A mudança para veículos elétricos, contudo, traz algumas dificuldades: a tecnologia é mais cara e desvaloriza-se rapidamente, a distribuição da eletricidade é errática e os mecânicos com conhecimentos técnicos são muito poucos. Além disso, o país inaugurou em Setembro, no Nilo Azul, a Barragem da Grande Renascença Etíope, a maior hidroelétrica do continente, capaz de gerar 5,15 gigawatts. E instalou o quinto maior parque eólico do continente.

Apesar de os custos de produção das energias solar e eólica e de as baterias terem embaratecido significativamente, a transição energética na África tem de fazer face a vários desafios, sendo o primeiro o do financiamento. A produção de energia solar em África é sete vezes mais cara e ao continente só chega três por cento do investimento global nas energias limpas, muito aquém dos 200 mil milhões de dólares anuais necessários. A vulnerabilidade política do continente assusta os investidores privados e a rede de distribuição de energia elétrica é obsoleta.

Contudo, a iniciativa Missão 300 quer ligar 300 milhões de africanos à rede elétrica nos próximos cinco anos, porque a eletricidade melhora a economia, produz segurança, promove a qualidade de vida e revoluciona a agricultura. 

A produção solar de pequena escala com tecnologias simples e baratas é uma alternativa local a ter em conta porque, além de gerar eletricidade, cria emprego com a instalação e manutenção dos sistemas de distribuição. E o continente precisa de parar de cozinhar a carvão.

22 de setembro de 2025

ELA NÃO DESISTE


Tem olhos vivos e uma energia contagiante. É jovem, tem apenas 21 anos, mãe de duas meninas e grávida da terceira. É uma das líderes mais ativas da sua comunidade beduína, no meio do deserto escaldante da Cisjordânia, na Terra Santa. 

Incerteza. Num território onde a terra é disputada e os direitos são negados, elas persistem, invisíveis, mas indispensáveis.

Escrevemos no grupo do WhatsApp da comunidade:

—Podemos visitá-las hoje?

—A que horas? —respondeu imediatamente.

—Tem consulta médica?

—Não. Venham. Mas, se possível, antes do meio-dia.

E assim foi. 

Chegámos. O sol escalda. Elas estão à nossa espera. Reunidas sob a tenda de lona aberta, onde o vento sopra livremente, misturando poeira e areia. 

Sentámo-nos no chão, como sempre. 

Algumas costuram à máquina, outras bordam, aprendem a fazer bolsinhas, porta-chaves, separadores. Algumas tentam pela primeira vez. Ela, como sempre, orienta-as.

Mesmo com o corpo cansado, não deixa de estar presente.

— Não dói?

— Não muito! — responde, levantando-se com esforço.

— Dói?

— É que já está quase... — responde, com um meio sorriso, como a pedir desculpa por não estar tão atenta como sempre.

Porque geralmente é ela quem organiza, faz as contas, medeia os desacordos. Ela é ponte, bússola, calma. 

Não terminou a escola, embora fosse a melhor da turma. Estudar mais significava ir para Jericó ou Anata, e o pai não deixou. 

Casou-se jovem. Mas nunca deixou de aprender. Nem de liderar.

As suas filhas olham para ela como um farol. A mais nova, de dois anos e meio, é uma centelha de inteligência. 

Sempre limpas, bem vestidas, dignas. Gostam de dançar, participar, perguntar. Como a mãe.

Quando outra comunidade não consegue completar um pedido, ela e as suas respondem. Com precisão, com dedicação. 

Elas aprendem, ensinam, resistem. 

Abrindo caminho. Porque ela não desiste. Porque a vida não desiste. Ela é esta terra: ferida, em parto, resistindo.

Mas por dentro, a vida insiste. A esperança empurra. E nada pode detê-la.

Ir Cecília Sierra,

Missionária Comboniana no Deserto da Judeia

11 de setembro de 2025

DOZE PILARES PASTORAIS


O SECAM – Simpósio das Conferências Episcopais da África e Madagáscar – celebrou a vigésima assembleia plenária em Kigali, a capital do Ruanda, de 30 de Julho a 4 de Agosto sob o tema «Cristo, fonte de esperança, reconciliação e paz: a visão da Igreja-Família de Deus em África para os próximos 25 anos (2025-2050)».

Participaram 13 cardeais, uma centena de bispos e dezenas de padres, religiosas, religiosos e leigos, além de representantes dos parceiros da SECAM e das conferências episcopais da Ásia, América Latina, Europa e Estados Unidos da América. O núncio apostólico no Ruanda também esteve presente. O primeiro-ministro do país anfitrião discursou no plenário. O Papa Leão XIV enviou uma mensagem rogando que a Assembleia Plenária «destaque a importância de promover uma experiência intensa do amor de Deus que desperta nos corações a esperança segura da salvação de Cristo».

O presidente do SECAM, cardeal Fridolin Ambongo, arcebispo de Kinshasa (RD do Congo), afirmou no discurso de abertura que «o período de 2022-2025 destacou a resiliência, o desenvolvimento estratégico e a crescente maturidade eclesial do SECAM». De facto, é na África que a Igreja Católica mais cresce. Os fiéis são 281 milhões, quase um quarto da Igreja universal. O SECAM agrega 540 dioceses, 758 bispos, cerca de 50 mil padres e 80 mil religiosas e religiosos.

Os participantes escreveram no comunicado final que «a Igreja-Família de Deus na África e nas suas ilhas propõe uma visão para os próximos 25 anos, uma visão enraizada em Cristo, nossa Esperança, e estruturada em torno de doze pilares». Que são: evangelização; uma Igreja autossuficiente; família, modelo de liderança; formação sobre discipulado missionário e sinodalidade; cuidado da Criação; juventude e renovação da Igreja; justiça, paz e desenvolvimento integral; ecumenismo e diálogo inter-religioso; missão no espaço digital; a saúde do Povo de Deus; vida litúrgica na Igreja em África; Igreja e política.

O documento abrangente e visionário tem 27 páginas e ignora o ministério da mulher, o pilar basilar da vida e da Igreja em África, embora o mencione aqui e ali. A plenária aprovou ainda seis propostas pastorais de acompanhamento de pessoas em união polígama preparadas por um grupo de teólogos a pedido da primeira sessão do Sínodo dos Bispos sobre a Sinodalidade.

O padre Don Bosco Onyalla, editor-chefe de aciafrica.org, cobriu o evento para o portal católico de notícias com sede em Nairobi, Quénia. «A variedade de delegados convidados para a Assembleia Plenária proporcionou uma excelente mistura. Embora a Assembleia Plenária fosse para bispos africanos, o facto de a liderança do SECAM ter convidado alguns profissionais, incluindo clérigos, religiosos e religiosas e leigos, refletiu de forma excelente como a Igreja está verdadeiramente constituída», disse à Além-Mar.

A Igreja Católica em África preparou um roteiro excelente para os próximos 25 anos. Agora, parafraseando o poeta andaluz Antonio Machado, o caminho faz-se caminhando!