18 de novembro de 2021

ETIÓPIA: PRIMEIRAS IMPRESSÕES









O avião aterrou no aeroporto de Adis Abeba — a Nova Flor — por volta das seis da manhã de 30 de Outubro. Na contagem etíope, era zero horas, o início do novo dia. Para mim é a hora zero de uma nova fase de serviço missionário comboniano, 21 anos depois da minha primeira estada na Etiópia.

As montanhas gastas e enrugadas que desenham a linha do horizonte do aeroporto, em cambiantes cinza e laranja, coloridas pelo sol nascente, afirmam que estou a pisar um país antigo, nobre, grandioso. Sagrado.

A cidade parece mais limpa, arrojada, maior. As construções de zinco entre o aeroporto e o centro deram lugar a grandes edifícios modernos, de muitos andares. As avenidas, mais largas e bem pavimentadas. O metro de superfície atravessa, em viaduto, a capital com duas linhas.

O primeiro-ministro Abiy Ahmed Ali dá, de sorriso rasgado, as boas-vindas de um póster gigante na empena de uma torre na Praça da Cruz, o centro da cidade, que também cresceu em altura com edifícios de linhas arquitectónicas ousadas.

Fui caminhar pelas ruas da cidade para a sentir. Um miúdo fixou-me com olhos grandes, ridentes e gritou «China!». Esperava ouvir «Frenji!», estrangeiro! A China está por detrás de boa parte do progresso da cidade e do país. A que custo, não sei! O trânsito, durante a semana, é caótico e o ar muito poluído.

Duas décadas passam depressa e deixam marcas indeléveis de mudança. Contudo, em Novembro de 2020 o país voltou à guerra no Estado do Tigray. Os tigrinos, a etnia que controlou o poder no país desde 1991 até 2018, pegaram em armas para obter mais autonomia do governo federal. Na capital, a guerra sente-se sobretudo através das filas longas para a compra de pão. E do estado de emergência desde o início de Novembro.

Vim para Qillenso, a 435 quilómetros a sul de Adis Abeba, a 5 de novembro, depois de iniciar o processo de legalização da minha estada no país.

A viagem revelou algumas novidades: os grandes bairros sociais na periferia da cidade com inúmeros autocarros para transportar os trabalhadores; a autoestrada entre a capital e Hawassa já tem uns 130 quilómetros — a portagem custa o equivalente a dois euros — e facilita imenso a viagem, tornando-a mais rápida e segura; no Vale de Rift há inúmeras estufas de plástico para o cultivo sobretudo de flores; nota-se um grande desenvolvimento do sector agrícola (muito trigo e tef já ceifados, plantações de vegetais e vinhas); vi mais igrejas ortodoxas ao longo da estrada em competição com as mesquitas; Langano, o lago de águas castanhas, é agora uma estância turística com muitos hotéis novos; Hawassa, a capital do Sul, cresceu muito e transformou-se numa cidade moderna, movimentada, asfaltada; a estrada para Neguele — que passa em Qillenso — está alcatroada até Kebre Menghist, a cidade a 30 quilómetros a sul da missão, que os gujis chamam de Adola, o lugar onde Deus criou as primeiras pessoas. O trabalho foi feito pelos chineses. Na parte sidamo há pontos bastante degradados a pedir intervenção urgente.

Chegamos a Qillenso à noite. Esperava-nos o padre Hippolyte Apedovi, um jovem comboniano do Togo há dois anos na Etiópia.

No sábado fiz o primeiro reconhecimento: a missão — que me acolheu há quase 30 anos — mudou muito. Tem eletricidade (quando há corrente). O sinal da rede móvel é fraco e os dados móveis só funcionam em Adola. A floresta foi devastada para dar lugar a campos de favas, ervilhas, cevada, trigo, milho, tef, café, couves, batatas. A colina, por cima da missão, é agora um eucaliptal. O campo de futebol foi aplanado pelos construtores da estrada. Temos uma pequena plantação de café. A TV via satélite, gratuita, apanha bem a CNN e a BBC de vez em quando.

A casa das irmãs está fechada. E o programa de promoção da mulher também. A clínica quase não funciona. Não há uma congregação com irmãs disponíveis para virem para Qillenso?

A escola, que antes tinha alunos da primeira à quarta classe, agora funciona da quinta à oitava. Tem 187 estudantes matriculados: 102 rapazes e 85 raparigas. As matrículas ainda não fecharam. Os catequistas vieram saudar-me. Alguns são dos meus tempos!

No sábado à tarde fomos a Adola, o novo centro pastoral da missão.

Fiquei impressionado com o desenvolvimento da cidade e, sobretudo, com a presença comboniana: uma biblioteca de apoio aos estudantes do secundário, uma igreja grande dedicada a São Daniel Comboni, um hostel para uma dúzia de alunas e alunos que precisam de apoio para estudar na cidade. Há nove capelas a funcionar na zona.

Celebramos a missa na capela de bambu com os utentes do hospício das irmãs de Madre Teresa, as Missionárias da Caridade: um oásis verde e tranquilo que acolhe bebés abandonados (uns 16), pessoas com doenças graves e terminais e distribui alimentos e remédios aos mais pobres. Cinco irmãs — quatro da Índia e uma da Roménia — encarnam a ternura de Deus por essa gente necessitada.

No domingo de manhã cedinho regressamos a Qillenso para a missa dominical às 9h00. A igrejinha da missão estava cheia.

As pessoas andam mais bem vestidas e parecem mais saudável (graças sobretudo à produção agrícola; antes cuidavam mais do gado que não dava rendimento, porque não o queriam vender). Os cânticos foram acompanhados por uma pequeno órgão eletrónico. Reconheci algumas pessoas idosas. Alguns jovens adultos disseram que jogámos futebol juntos (quando eram pequenos).

A eucaristia (de quase duas horas) terminou com a bênção de meia dúzia de estudantes que durante a semana iam fazer o exame de admissão à universidade. A maioria eram moças. Há 30 anos a carreira académica das meninas terminava para a maioria com a quarta classe. Agora já há jovens de Qillenso com curso superior.

Durante a semana visitamos a missão de Gosa, a uns 30 quilómetros a norte de Qillenso. O lugar onde antigamente só havia a missão cresceu muito. As irmãs e o pároco também partiram de lá e a missão é agoras uma capela de Qillenso. A clínica e a escola primária funcionam com pessoal local. Tem uma igreja nova, ampla. A floresta cedeu espaço à agricultura.

No fim de semana seguinte voltamos a Adola para a reunião dos catequistas da zona, para a missa dominical e para a assistência espiritual às irmãs.

A igreja nova e ampla, lindamente decorada, em anfiteatro, estava bem composta com jovens estudantes, na maioria. A aparelhagem de som de uma igreja protestante vizinha quase que nos abafava! Encontrei duas pessoas que me são muito queridas: Dabalá Elema — que nos ajudava nas traduções dos textos litúrgicos e dos Evangelhos para guji — e Uddessa Jarso — um adolescente que concertava as bolas de futebol e me ajudou na aprendizagem da língua. Ambos têm bons empregos, famílias bem estruturadas.

No domingo à tarde, presidi ao sepultamento de um bebé de quatro meses no cemitério do hospício das irmãs. Impressionou-me a multidão que se reuniu para apoiar à família devastada pela dor e rezar juntos naquele momento de dificuldade.

Em Adola, os ortodoxos começam a cantar e a rezar às 4h00 da manhã através do sistema de som das suas igrejas, em clara competição com os muçulmanos. A oração pode ir até às 10h00. Por isso, é preciso ir cedo para a cama — eu vou às 21h00 — para aproveitar o silêncio e dormir!

Em Adis Abeba, continuam a tratar dos papeis para oficializar a minha presença no país. E da carta de condução.

Por agora, ando às voltas com a língua guji. O meu organismo está a habituar-se de novo aos 2300 metros de altitude. Tempo de paciência e calma!

Aqui, em Qillenso, não se sente o ambiente de tensão provocado pelo levantamento dos tigrinos há um ano. A vida da aldeia decorre tranquila. A estrada regista grande movimento de pessoas e bens, até durante a noite. Em Adola, há recolher obrigatório desde as 19h00 às 5h30 da manhã.

1 comentário:

acg disse...

Gostei muito ler este primeiro relato, sobretudo a evolução desde há 21 anos. Sabia da guerra, admirei nos primeiros post nada referir, mas confirma, um dos grandes problemas com que se confrontam também os missionários. Como jornalista, o P.e Vieira dá-nos uma panorâmica de um país com uma história muito antiga, ainda me lembro da visita a Portugal de Haile Selassie, sinal do tempo que passou. É bom rever amigos, agora mais crescidos e, verifico, com uma vida bem melhor, enche-o de orgulho pelo que foi possível ajudar. Por cá o costume, não damos valor ao pai que temos, continuamos a tropeçar na ideologia em vez de todos nos unirmos para resolver os nossos problemas, uma contradição entre Etiópia e Portugal, ainda da que aí, de certa forma, também a guerra tal represente. Enfim, o mundo de pernas para o ar,
veremos o que nos trarão as eleições de 30 janeiro, se calhar mais do mesmo, luta política por lugares em vez de por um Portugal menos endividado. Outro paradoxo, o desemprego é baixo mas as empresas não têm gente para trabalhar, isto é, produzir riqueza para redistribuir pelos mais pobres. Desejo-lhe uma boa estadia e apostolado na alegria de quem escolheu a melhor profissão do mundo, trabalhar para o bem dos outros, sentido de vida que, estou certo, refletir-se-á. Cuidado com a anca, nada de pressas nem subir escadotes. Abraço amigo,
António Gouveia