16 de julho de 2019

DA «NOIVA DAS AREIAS»


                                                                                              
Caro/a amigo/a

Já passaram 21 dias desde que cheguei à minha nova missão de El Obeid. Tinha prometido escrever-te mas, ao mesmo tempo, queria fazê-lo só quando tivesse melhores notícias para te dar. Além disso, desde que cheguei aqui não houve, absolutamente, possibilidade de internet. As autoridades apoiam a junta militar de Cartum que cortou todo o tipo e forma de comunicação. Tudo isso tem favorecido o atraso desta minha carta.

Situada na zona central do Sudão, El Obeid é uma cidade histórica conhecida pelo sugestivo e engraçado apelido de arussat el rimal, a noiva das areias. Mas nestes últimos tempos, esse belo título pouco tem de condizente e harmonioso com a realidade. Os carros armados, espalhados pelas ruas da cidade fazem parte do cenário do dia-a-dia. O estado de alerta é permanente por parte dos soldados que procuram evitar inoportunos e suspeitosos ajuntamentos de pessoas. É comum encontrar um piquete militar também à porta das padarias e nas bombas de combustível, onde se formam longas filas durante todo o dia. E não é raro acontecer que o pão e o combustível acabem antes de chegar a nossa vez! Por outro lado, por mais controlo ameaçador que as milícias imponham sobre tudo e todos, os rumorejos e murmúrios não deixam de se ouvir aqui e além: «Afinal, estamos muito pior do que antes… desde há mais de meio ano que andamos nisto.»

Mas é na populosa capital do país que reside a maior expectativa. À entrada do mercado ouvem-se conversas com esperança. Um jovem vestido à europeia diz para quem está à sua volta: «Estou muito optimista com o que irá acontecer amanhã em Cartum, na grande demonstração/greve da desobediência civil».

«Vai ser um verdadeiro sucesso», confirmou a vendedeira de tremoços, aí ao meu lado. E, com orgulho e brio, continuou: «Essa manifestação em pleno centro de Cartum vai ser uma marcha milionária; são palavras da minha filha que acaba de me telefonar de lá. E disse-me também que ela e os colegas de trabalho não vão faltar nessa grande demonstração». Depois, voltou-se para mim: «E tu, khauaja (estrangeiro), que dizes? Não tenhas medo, os soldados estão do outro lado do mercado, não nos ouvem». O riso, sem disfarce, de quem ouviu a tão animada tremoceira dispensou a resposta que me ficou no pensamento: a esperança não desiste, a democracia já vem perto.

Todavia, não há só notícias tristes. Certamente, a melhor notícia é aquela em que também eu estou incluído: Jesus Cristo e a sua igreja estão no meio deste povo, onde os cristãos são uma minoria. Mas não insignificante. E eu sou muito feliz por poder partilhar a minha vida com esta gente de costumes, crenças e religiões tão variadas. Uma das coisas que me impressiona é que encontro bastante frequentemente duas religiões (o cristianismo e islão) que convivem de forma pacífica nos vários membros de uma mesma família. Isso estimula o meu contacto com este povo e facilita o diálogo inter-religioso. Outro aspecto a ter muito em conta neste meio ambiente é o trabalho missionário no apostolado com os refugiados, na sua maioria cristãos que chegam do Sul do Sudão, nosso país vizinho, ameaçados com problemas de conflitos armados.

Eu não me considero novo no Sudão, onde passei 27 anos como missionário. No entanto, a arussat el rimal (a noiva das areias) e as suas gentes maioritariamente de etnia Nuba é para mim uma área com desafios muito peculiares. Como membro novo que sou da comunidade comboniana com residência nesta cidade, dou graças a Deus pelos meus três colegas (dois italianos e um congolês) que não se poupam em trabalhos para me introduzir em cheio em todos os sectores do trabalho missionário a desenvolver nestes lugares tão necessitados de evangelização.
Feliz da Costa Martins 
Missionário comboniano em El Obeid, Sudão

NB: Como diz a canção «Eu tenho uma carta escrita, não tenho por quem na mande». Na verdade, esta minha carta já estava uns longos dias à espera… mas a internet só chegou hoje (dia 12 julho). E, então, pois aí vai.

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