27 de abril de 2020
PALMAS PARA SAÚDE, EDUCAÇÃO
A saúde e a educação, os setores profissionais que o Governo mais antagonizou na legislatura anterior, estão a dar uma resposta generosa e dedicada à pandemia que nos aflige nestes dias de prova.
São as minhas heroínas e os meus heróis!
Médicos, enfermeiros e outros profissionais do setor encaram o coronavírus olhos nos olhos. Com dedicação generosa e abnegada mantêm-se na linha da frente do combate à pandemia à custa da própria saúde e arriscando a vida.
Não desarmaram nem se retiraram mesmo quando os meios de proteção escasseavam, apesar de os líderes o negarem num ato de malabarismo político estulto.
Mexe muito comigo ver enfermeiras e médicos, enfermeiros e médicas, a sair dos longos processos de cura da Covid19 e voltarem com ânimo redobrado à luta pela saúde e bem-estar dos «seus» pacientes.
Os professores também tiveram de requalificar os seus métodos de ensino literalmente da noite para o dia.
Primeiro, através de mensagens eletrónicas e telefonemas; depois através de plataformas de videoconferência e de outros meios que aprenderam a usar durante as férias da Páscoa.
Outros, enfrentam a frieza das câmaras para ensinar os alunos através da telescola.
Agora, não basta o Governo incensar o profissionalismo destes dois setores fundamentais para a nossa sociedade.
O Governo tem de meter a carteira onde tem a boca seguindo a liderança de algumas instituições do setor privado que estão a reconhecer a excelência da dedicação dos seus funcionários com prémios monetários.
O pessoal de saúde corre riscos enormes e trabalha até à exaustão com horas extraordinárias acumuladas nos cuidados intensivos, nos diagnósticos e na tele-saúde.
Merecem ser reconhecidos com um subsídio de risco e verem o trabalho extra pago para não ir parar ao buraco negro que é banco das horas.
Os professores estão a trabalhar de casa. O teletrabalho custa dados nos telemóveis, energia elétrica, tempo de vida dos computadores e dos telemóveis. Os alunos e os encarregados da educação telefonam a qualquer hora para tirar dúvidas ou para matar a solidão.
Também eles merecem uma gratificação pela dedicação, empenho, requalificação e despesas extraordinárias que os seus orçamentos estão a suportar a favor do Estado.
Quando isto terminar, o Governo vai ter a obrigação ética de se sentar à mesa com os representantes destes dois setores-chave para a vida e bem-estar do país e atender às suas queixas, que são reais, não são queixinhas.
Assim faz sentido bater palmas e proferir discursos de louvor.
26 de abril de 2020
CAMINHAR COM O RESSUSCITADO
A narrativa da aparição de Jesus aos discípulos de Emaús (24, 13-35) é um ícone do caminho pessoal formado por percursos diversos que cada discípulo missionário é chamado a fazer com o Senhor ressuscitado na companhia de outros crentes. Um ícone que quero comentar amparado pelo testemunho de São Daniel Comboni (1831-1881)
1. A caminho
Cléofas e (muito provavelmente) a sua esposa estavam a caminho de Emaús, uma povoação a 60 estádios de Jerusalém, cerca de doze quilómetros. Conversavam e debatiam o que havia acontecido a Jesus: a sua prisão, condenação, morte, sepultura e o boato impossível de que Ele estava vivo! Estavam desiludidos: esperavam que Jesus resgatasse Israel das mãos dos romanos e ficaram espantados com a fala das mulheres que encontraram o sepulcro vazio.
Jesus encontra-se com eles no caminho da desilusão e do regresso pesaroso à vidinha do dia-a-dia. Acerta o passo pelo caminhar desiludido do casal. Faz perguntas sobre as palavras desassossegadas que trocam. A missão faz-se em saída, porque o Senhor saiu para salvar o seu povo (Habacuc 3, 13).
Comboni recorda-nos que a nossa vida – tal como a missão – é única e complexa, poliédrica: «O missionário deve estar disposto a tudo: à alegria e à tristeza, à vida e à morte, ao abraço e à despedida. E a tudo isso estou disposto também eu».
2. As Escrituras
O casal conta ao forasteiro tudo sobre a execução de Jesus de Nazaré, «profeta poderoso em obras e palavras diante de Deus e de todo o povo». Jesus explicou-lhes o que a Ele dizia respeito nas Escrituras por inteiro, de Moisés aos profetas.
A Palavra de Deus é o GPS, a chave de leitura, interpretação e discernimento de tudo o que vivemos. O mapa encriptado que nos leva ao Tesouro, à Pérola maior que procuramos e que vale mais que todo o resto.
Comboni anuncia a força da Palavra encarnada: «Para curar estas feridas abertas da humanidade, esta estridente injustiça, há apenas um meio: estabelecer nessas regiões a fé católica e pregar nelas o Evangelho de Jesus Cristo, que ensina a igualdade de todos, escravos e livres e que trouxe à Terra para todos a liberdade de filhos de Deus».
3. Partir o pão
Quando o casal chegou à sua aldeia – digo casal, porque tinham casa posta em Emaús e no tempo de Jesus não havia uniões homo – o forasteiro «fez menção de seguir adiante». Eles deram-lhe hospitalidade: «Fica connosco, porque é tarde e o dia já está a declinar».
O ressuscitado aceita o abrigo. Reclina-se com eles à mesa, toma o pão, abençoa-o, parte-o e dá-lho: os gestos que conjugam a Eucaristia no presente e revelam o Senhor vivo.
Diz Lucas: «Abriram-se-lhes os olhos e reconheceram-no». É na Palavra e na Eucaristia que encontramos diariamente o Senhor ressuscitado: são a comida para o nosso caminhar.
Comboni é um missionário eucarístico. Um dia o barco Stella matutina ficou encalhado num banco de areia no Nilo Branco em grande perigo. O missionário encontrou na Eucaristia a força para aquele aperto: «Pela manhã celebrou-se missa. Oh, que doce foi naquela difícil circunstância ter entre as mãos o Senhor de todos os rios e de todas as tribos da terra e pedir-lhe por nós e por nossas necessidades, pelos que estavam em perigo junto a nós, por vós, pelos que não o conhecem, por todo o mundo!».
4. As mulheres
Os Evangelhos são unânimes num facto: as mulheres foram as primeiras testemunhas da ressurreição. Paulo, contudo, ao descrever as aparições do Ressuscitado, ignora este dado (1 Coríntios 15, 5-8).
As mulheres tiveram um papel preponderante no ministério de Jesus. Marcos diz que Jesus apareceu primeiro a Maria de Magdala e depois a dois discípulos que iam a caminho do campo, mas os companheiros, que viviam em luto e pranto, não acreditam (Marcos 16, 9-13): a dor turba-nos o olhar da fé.
Hoje, a presença das mulheres é aceite mais pelo lado da utilidade que por causa do génio do feminino.
Comboni reconhece o serviço único da missionária na África: «O omnipotente ministério da mulher do Evangelho e da irmã da caridade é o escudo, a força e a garantia do ministério do missionário».
5. Corações em fogo
Depois de reconhecerem o Senhor através do gesto eucarístico, comentam um para o outro: «Não nos ardia o nosso coração quando Ele no caminho nos falava, quando nos abria as Escrituras?».
O coração – mais que a cabeça – é o lugar do encontro com o Ressuscitado. Na Bíblia, pensamos com o coração e amamos com as entranhas. Metanoia, a palavra grega para conversão, mudança, convida-nos a ir para lá da mente.
Para Comboni, o coração é a porta da missão. Escreve no Plano para a Regeneração da África: «[o católico] levado pelo ímpeto daquela caridade que se acendeu com divina chama aos pés do Gólgota e, saída do lado do Crucificado, para abraçar toda a família humana, sentiu que o seu coração palpitava mais fortemente; e uma força divina pareceu empurrá-lo para aquelas bárbaras terras, para apertar entre os seus braços e dar um ósculo de paz e de amor àqueles infelizes irmãos seus.»
6. Regressaram a Jerusalém
Depois, «levantando-se, nessa mesma hora voltaram para Jerusalém». O encontro com o Senhor ressuscitado na Palavra e no partir do Pão devolve os discípulos à comunidade dos crentes e à missão. A urgência é enorme a ponto de arriscarem voltar a fazer uma dúzia de quilómetros de noite – um perigo – para a partilha dialógica das experiências do Ressuscitado.
O ritual da missa, na edição típica latina, termina com as palavras «Ite missa est»; «Ide, é a missa». A missa continua depois da missa, a missa envia em missão.
Esta é também a experiência de Comboni: «Estas práticas ordinárias de piedade realizadas em comum mantêm muito bem o espírito dos membros da missão, fortalecendo-os e tornando-os capazes de suportar com ânimo alegre os grandes sofrimentos, os incómodos, as difíceis e perigosas viagens e as cruzes inevitáveis em tão árduo e laborioso apostolado».
A missão parte do encontro com o Senhor ressuscitado nos caminhos da vida, na escuta da Palavra e na partilha do Pão. Desenvolve-se no testemunho comunitário de que o Senhor está vivo e quer-nos vivos e felizes, das mar
25 de abril de 2020
25 DE ABRIL: ANO 46
Há 46 anos estava na Maia, no Seminário dos Combonianos. Tinha 14 anos e frequentava o 4.º ano do liceu. As aulas eram internas e os professores vinham quase todos de fora.
Durante a aula de Geografia – possivelmente a primeira do dia para a minha turma, o professor António Marques perguntou se alguém tinha um rádio a pilhas. Tinha ouvido rumores sobre um levantamento militar em Lisboa.
Um colega foi buscar o aparelho e seguimos o que se passava na capital através da voz do locutor de serviço não sei de que estação em vez da Geografia. Não me recordo como foi o resto daquela quinta-feira.
46 anos depois, celebro o 25 de abril de novo na Maia pela primeira vez. Em casa, confinado, a cantar Grândola vila morena logo de manhãzinha. Também postei a senha da revolução na voz inimitável da Amália – que o Zeca Afonso me perdoe a irreverência.
Recordei também o megacomício que o PS organizou no antigo Estádio das Antas. Não me recordo da data. Os seminaristas fomos autorizados a participar e fomos e viemos a pé. Nessa altura o PS afirmava-se como partido marxista, num pano em letras garrafais no relvado do estádio.
Também fomos a pé ao aeroporto de Pedras Rubras num Primeiro de Maio ver a chegada do Ministro do Trabalho. Éramos novos, os transportes eram caros e as pernas não protestavam.
Em outubro de 1974, fomos frequentar o Liceu da Maia. Recordo as reuniões gerais de alunos – as famosas RGA – e greves. Alguns professores eram muito ativos em matéria de política. Recordo ainda um concerto que Manuel Freire deu no átrio da escola com a sua viola. A Pedra filosofal ficou tatuada na minha memória.
O 25 de Abril foi uma bênção para os Missionários Combonianos.
Dom Manuel Vieira Pinto, bispo de Nampula (Moçambique) e as combonianas e combonianas a trabalhar na diocese escreveram, assinaram e publicaram o documento Um imperativo de consciência a 12 de fevereiro de 1974 a denunciar o sistema colonial.
Uma dúzia de missionários foram expulsos de Moçambique; alguns foram maltratados em manifestações organizadas pela PIDE. O regime fascista preparava a expulsão de todos os combonianos estrangeiros de Portugal e a nacionalização das obras do Instituto. Seria o golpe de misericórdia na província portuguesa.
Nesse 25 de Abril o superior provincial tinha agendada uma reunião com o seu conselho em Coimbra para colocar as propriedades do Instituto à guarda de um bispo. Não pôde passar da saída de Lisboa: a Revolução dos cravos estava em andamento. A autoestrada estava fechada.
Os combonianos continuaram em Portugal e voltaram a Moçambique. E 46 anos depois, celebro o 25 de Abril onde estava nesse dia memorável. Muito mais velho mas com a mesma emoção.
22 de abril de 2020
PALAVRAS DE VIDA
O Livro dos Atos dos Apóstolos conta que, depois de libertar os apóstolos da cadeia pública em Jerusalém, lhes ordenou: «Ide apresentar-vos no templo, a anunciar ao povo todas estas palavras de vida» (Atos 5, 20).
É interessante notar que o mesmo pediu São Daniel Comboni aos bispos participantes no Concílio Vaticano I em nome dos africanos: «Hoje, nas pessoas dos seus próprios pastores, devotíssimos a seu chefe supremo, cada um espera dele e de vós, com devoção e alegria, palavras de vida e de felicidade eterna junto com todos os seus outros irmãos que se fizeram cristãos antes deles.»
Que palavras de vida e de felicidade são estas que somos chamados a proclamar?
Jesus diz a Nicodemos: «Tanto amou Deus o mundo, que lhe entregou o seu Filho Unigénito, a fim de que todo o que nele crê não se perca, mas tenha a vida eterna
E acrescenta: «De facto, Deus não enviou o seu Filho ao mundo para condenar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por Ele» (João 3, 16-17).
Estas são as palavras de vida que temos de anunciar.
Somos chamados a anunciar com a nossa vida e com a nossa palavra o amor incondicional, ilimitado, sem contrapartidas do Deus-Amor por cada pessoa. A Trindade Santíssima, no seu amor transbordante, tem um plano, um desenho de salvação para as pessoas e para todo o cosmos.
São João Paulo II diz o mesmo por outras palavras: ««O homem é amado por Deus! Este é o mais simples e o mais comovente anúncio de que a Igreja é devedora ao homem. A palavra e a vida de cada cristão podem e devem fazer ecoar este anúncio: Deus ama-te, Cristo veio por ti, para ti Cristo é “Caminho, Verdade, Vida” (João 14, 6)!».
Este anúncio, estas palavras de vida são muito importantes em tempos de pandemia. Há por aí profetas da ira de Deus a blasfemar que o novo coronavírus é castigo de Deus pelas nossas maldades.
Deus não castiga, Deus ama, quer a salvação, o bem-estar de todos. Por isso nos deu Jesus.
Deus não nos dá na cabeça; a Trindade santíssima abraça cada um de nós na sua misericórdia.
Esta proclamação de vida e de alegria faz-se em parceria com a Trindade, de cuja missão participamos. É um partenariado, um trabalho em rede.
Era assim que São Daniel Comboni entendia o seu serviço missionário na África Central: «Vamos regar com nossos suores, com a água da vida eterna, aquelas áridas e abrasadas regiões, as quais farão brotar para o Criador um novo povo de fiéis adoradores».
Suor misturado com a água santa do batismo.
20 de abril de 2020
CORONAVÍRUS NA RD DO CONGO
Com o fim da epidemia de Ébola, o Coronavírus entrou na RD do Congo através de pessoas vindas de outros países. O primeiro caso registado foi num cidadão vindo da Bélgica no dia 10 de março.
Aqui as pessoas ainda não acreditam nas consequências do vírus e não seguem as regras de confinamento impostas pelo governo.
Em Kinshasa – com 12 milhões de habitantes, onde as pessoas vivem do dia-a-dia – a vida continua como nada esteja a acontecer, pois as pessoas precisam de comer. Se não morrem da epidemia morrem de fome.
O país regista 327 pessoas infetadas, 25 mortos e 26 pessoas curadas. Mas aqui as informações são pouco fiáveis.
Além de Kinshasa há cinco províncias infetadas com um morto.
Em Kisangani onde me encontro, oficialmente ainda não há nenhum caso. Apesar de as escolas e igrejas estarem fechadas, a vida na praça pública continua como se nada esteja a acontecer.
O Governo fechou todas vias de comunicação terrestres, aéreas e fluviais, exceto para bens essenciais. Nos estabelecimentos públicos é obrigatório lavar as mãos antes de entrar, mas é uma regra que não é observada na maior parte dos casos.
As pessoas procuram curar a Covid 19 com receitas locais, que em alguns casos já provocaram mortes.
Faleceu um bispo, tio do presidente com Covid 19.
No entanto, no Nordeste do país os massacres continuam na sua forma mais cruel.
Zé Arieira, Kisangani
CORONAVÍRUS NAS FILIPINAS
As Filipinas estão há um mês em isolamento/confinamento o qual se ira prolongar por mais duas semanas até finais de abril. Não há transportes públicos, só uma pessoa por família pode sair à rua para fazer compras com um salvo-conduto e lojas e comércio de rua estão fechados. Supermercados estão, porém, abertos.
Com casos a aumentar de dia para dia – neste momento há 6,459 pessoas infetadas 428 já morreram devido ao coronavírus – as autoridades repetem a ameaça de um isolamento abrangendo todo o país. Até agora só a região norte, que inclui a capital Manila, está sob quarentena.
Numa das suas comunicações ao país, o Presidente da nação, Rodrigo Duterte, sugeriu que o levantamento das restrições só acontecerá quando a vacina contra o coronavírus estiver disponível, uma ameaça que o público em geral não leva a sério, conhecendo o seu estilo desarticulado e desajeitado de falar em público.
A metrópole de Manila tem 13 milhões de habitantes e é um verdadeiro quebra-cabeças impor o confinamento das populações muitas das quais vivem em bairros de lata. A estas pessoas que deixaram os seus trabalhos por causa do confinamento, o governo prometeu ajuda em géneros alimentares e dinheiro. Até agora, esta ajuda tem sido escassa e irrisória – dois quilos de arroz e comida enlatada por cada família.
Já houve desacatos com pessoas a queixarem-se de fome. A resposta musculada das forças de segurança contra as populações enfraquecidas gerou uma onda de protesto em sectores da sociedade. O Presidente falando ao país sobre este incidente ordenou à polícia que atirasse a matar a quem causar desacatos.
São estes os métodos que as autoridades filipinas usam para com os mais fracos em tempos de desgraça social.
P. Antonio Carlos, Filipinas
18 de abril de 2020
IDE, PROCLAMAI
No registo de Marcos, esta é a frase de abertura do discurso de despedida de Jesus (Marcos 16, 15-18), depois de ter dado na cabeça dos Onze porque não acreditaram em Madalena e nos dois caminheiros de Emaús «pela sua falta de fé e dureza de coração».
Apetece-me refletir sobre esta frase fundamental da gramática da vida cristã, o testamento e a vontade última do Senhor Jesus com três histórias.
1. A catedral católica de Nairobi, no Quénia, tem nos altares laterais uma pintura de São Daniel Comboni e de São José Maria Escrivá, a olharem um para o outro.
Uma vez, sentado naquele templo, pus-me a imaginar o que dois santos tão diferentes diriam um ao outro durante o silêncio da noite.
De certeza que falam da obra de Deus. Um século antes de Escrivá ter fundado a Opus Dei já Comboni usava a expressão para designar o seu trabalho apostólico no coração da África. Aliás, ele usa o termo no singular e no plural 106 vezes.
Em julho de 1868 escreve a um amigo: «estou feliz por ver que a cruz de Jesus Cristo me cerca e agradeço ao bom Deus pelos espinhos com que aflige a minha existência. Isto conforta-me e dá-me mais ânimo que todas as riquezas da terra, porque são sinal do amor divino e de que a obra na qual trabalhamos é uma obra de Deus».
A missão não é pessoal e intransmissível, uma escolha individual. É imperativo divino na participação da única missão de Deus. Deus é missão, a trindade é amor em saída. Daí que o Papa repita até à exaustão que não fazemos missão, mas somos uma missão de encarnar aqui e agora uma palavra ou um gesto de Jesus.
2. Quando vivia na Etiópia fiz amizade com Abba Higram, o pároco ortodoxo da cidade de Solammo, perto da missão onde vivia.
Um dia perguntei-lhe: «Abba, porque não vai pelos matos a anunciar o Evangelho como os católicos e os protestantes fazemos?». Ele respondeu que não era preciso sair da igreja porque cada vez que celebrava a missa anunciava a Palavra aos quatro ventos.
Os ortodoxos têm a tradição de ler quatro textos bíblicos virados para os quatro pontos cardeais. O Evangelho, a leitura mais importante, é lido para leste.
Jesus diz: «Ide e proclamai». Obriga-nos a sair da nossa zona de conforto, do sofá do quotidiano ao encontro das periferias.
3. Quando estávamos a rever a tradução dos quatro evangelhos em guji feita pelos missionários antepassados demo-nos conta que em vez de «todas as criaturas» tinham traduzido por «todos os homens».
Somos demasiado antropocêntricos no nosso modo de pensar. Jesus manda que proclamemos o Evangelho a todas as criaturas. A nossa missão tem de ser ecológica.
O Papa Francisco pede na encíclica Louvado sejas (nº 214) que «nos nossos Seminários e Casas Religiosas de Formação, se eduque para uma austeridade responsável, a grata contemplação do mundo, o cuidado da fragilidade dos pobres e do meio ambiente».
O anúncio ecológico tem três dimensões: sobriedade feliz, olhar contemplativo sobre a criação e cuidado dos pobres e da casa comum.
Na narrativa bíblica da criação há uma tensão que importa sublinhar: no primeiro relato (o mais recente) Deus ordena a Adão e Eva que cresçam, se multipliquem, encham e submetam a terra. No segundo relato, o mais antigo, manda cultivar e guardar o jardim.
O mandato missionário de Jesus obriga-nos a uma ecologia integral cuidadora. Quando vivia na Etiópia e me cruzava com uma serpente perguntava-me: como posso anunciar o Evangelho a esta bicha? Deixando-a ir em paz!
17 de abril de 2020
ÉTICA REPUBLICANA
As autoridades civis agradeceram, compungidas, compostas, aos cristãos por terem aceitado celebrar a Páscoa, sua festa maior, a mãe de todas as celebrações, em casa, através dos meios de comunicação social, sem cerimónias nas igrejas nem visita pascal aos lares.
Postura e lágrimas de crocodilo!
Logo depois decidem que o 25 de abril e o primeiro de maio vão ter celebrações públicas condignas na casa da democracia e nas ruas de Portugal em pleno estado de emergência.
O recato que agradeceram aos cristãos na sua Páscoa porque não o seguiram eles próprios: deputados e membros do Governo?
É altura de dizer: bem prega o político Tomás, olha para o que ele diz, não olhes para o que ele faz.
E nós, cidadãos cristãos, assistimos serenos a mais um tiro no pé da ética republicana: exigem dos outros o que eles não querem fazer. Quando exercemos o direito à indignação que até o próprio Jesus praticou (Marcos 10. 14)? Ser obediente é diferente de ser rebanho.
Em estado de emergência devido à pandemia que não escolhe pessoas - o novo coronavirús é muito democrático e ataca a todos, fazia todo o sentido que o estado tivesse sentido de Estado e promovesse ele próprio uma celebração recatada, em casa, através dos meios de comunicação social.
Até porque a família, que é a Igreja doméstica, também é o Estado doméstico.
Não acharam assim… Depois queixam-se que os populistas ganham terreno! Dão-lhe a praça de mão beijada...
Não acharam assim… Depois queixam-se que os populistas ganham terreno! Dão-lhe a praça de mão beijada...
16 de abril de 2020
PAZ CONTIGO
«A paz esteja convosco!» No dizer de Lucas (24, 36) estas foram as primeiras palavras do Senhor ressuscitado aos discípulos fechados pelo medo na sala de cima em Jerusalém.
Em aramaico, a língua que Jesus falava, a saudação soava mais ou menos assim: «Shlomo 'aleykhun».
O ressuscitado também diz a ti, a mim, a nós, fechados em quarentena, trintena, vintena ou quinzena: «A paz esteja convosco!» mesmo que, como os discípulos, sintamos espanto, medo, perturbação, admiração ou o choque da alegria.
João nota que, do discurso de despedida durante a última ceia, Jesus disse aos discípulos: «Deixo-vos a paz, dou-vos a minha paz; Eu não vo-la dou como a dá o mundo» (João 14, 27).
A paz de Jesus não é imposta pela força: isso chama-se subjugação; não é imposta pelo medo: isso chama-se dissuasão; não é produto de drogas: isso chama-se alienação.
A paz que Jesus dá é harmonia, integração, aceitação, pacificação de espantos, medos, perturbações.
A paz de Jesus é bem-estar, estar bem com Deus, com os outros, com a natureza, comigo mesmo.
A paz de Jesus é conjuntiva (é isto e aquilo), integradora, integral, holística em vez de ser disjuntiva (ou isto ou aquilo), fragmentada, compartimentada.
É ser em vez de fazer.
Que a paz de Jesus esteja sempre contigo.
Em aramaico, a língua que Jesus falava, a saudação soava mais ou menos assim: «Shlomo 'aleykhun».
O ressuscitado também diz a ti, a mim, a nós, fechados em quarentena, trintena, vintena ou quinzena: «A paz esteja convosco!» mesmo que, como os discípulos, sintamos espanto, medo, perturbação, admiração ou o choque da alegria.
João nota que, do discurso de despedida durante a última ceia, Jesus disse aos discípulos: «Deixo-vos a paz, dou-vos a minha paz; Eu não vo-la dou como a dá o mundo» (João 14, 27).
A paz de Jesus não é imposta pela força: isso chama-se subjugação; não é imposta pelo medo: isso chama-se dissuasão; não é produto de drogas: isso chama-se alienação.
A paz que Jesus dá é harmonia, integração, aceitação, pacificação de espantos, medos, perturbações.
A paz de Jesus é bem-estar, estar bem com Deus, com os outros, com a natureza, comigo mesmo.
A paz de Jesus é conjuntiva (é isto e aquilo), integradora, integral, holística em vez de ser disjuntiva (ou isto ou aquilo), fragmentada, compartimentada.
É ser em vez de fazer.
Que a paz de Jesus esteja sempre contigo.
14 de abril de 2020
HÁ TANTO NUM NOME
João conta no seu evangelho (20, 11-18) que, na manhã do domingo de Páscoa, Maria Madalena foi chorar para junto do sepulcro vazio de Jesus.
Como é preciso chorar perdas, penas, ausências…
De dentro do sepulcro dois anjos perguntaram-lhe: «Mulher, porque choras?».
Maria respondeu: «Tiraram o meu Senhor e não sei onde o puseram».
Além de chorar é essencial contar, nomear as nossas lágrimas. É parte do processo de luto.
O Senhor ressuscitado junta-se a ela e também quer saber as razões de tanto chorar.
Maria confunde-o com o jardineiro e diz: «Senhor, se foste Tu que o levaste, diz-me onde o puseste, e eu irei buscá-lo».
Jesus respondeu: Maria! E ela disse: Rabúni, que significa mestre em hebraico.
Depois, Maria foi anunciar aos discípulos: «Vi o Senhor». Ela é a apóstola dos apóstolos, festa que celebramos a 22 de julho.
Este diálogo icónico fez-me pensar no tanto que há num simples nome.
Não foi o falar de Jesus que abriu o coração a Maria, mas a forma, o carinho, a ternura com que Ele pronunciou o nome.
Num nome há, antes de mais, identidade. Chamo-me José!
E também há afetos: chamo-me José porque o meu padrinho também assim é chamado. Também me chamam Zé, Mchizé, Joe, Joito…
Também há história: o povo guji da Etiópia – com quem vive oito anos e para onde espero voltar quando isto passar – dá o nome aos filhos de acordo com as circunstâncias do nascimento.
Dois exemplos: Luku, galinha, é o nome de uma menina que nasceu ao amanhecer; Lole, lutador, é como se vai chamar um rapaz que deu à mãe uma gravidez difícil.
Entre nós, é possível ligar alguns nomes próprios com telenovelas ou modas datadas.
Depois, os amigos e os enamorados têm uma forma terna e única de dizer os nomes especiais que dão às pessoas especiais, às vezes até secretos!
Dizer o nome de uma pessoa é também ter poder sobre ela. Daí que os hebreus quando nas Escrituras veem Yahweh (o tetragrama, as quatro consoantes que representam o nome de Deus) escrito dizem Adonai (Senhor) porque o nome de Deus é inefável.
Invocamos nomes para pedirmos auxílio. E podíamos ir por aí adiante.
Daniel Comboni também explorou os diversos sentidos que um simples nome tem.
No plana afetivo, escreveu à Condessa Ludmila de Carpenha: «Eu sempre me lembro de si e trago o seu venerando nome e a sua imagem gravados no coração». É lindo ler isto.
Sobre a história de um nome, explica por quê batizou a ex-escrava chamada Mahbuba com o nome de Maria: «Quisemos pôr-lhe tal nome para consagrara à Mãe divina da nossa obra essa primeira flor da mesma».
Finalmente, escreve uma nota muita apropriada para os dias de pandemia que vivemos sobre a invocação Nossa Senhora do Sagrado Coração de Jesus: «é um nome que faz brilhar a bondade de Coração de Jesus Cristo nestes tempos calamitosos para iluminar e consolar a todos, confortar a quantos a Ela acorrem». É sim!
Amen.
13 de abril de 2020
Etiópia: PÁSCOA DIFERENTE
A todos e todas desejo uma Santa e Feliz Páscoa!
Esta será uma Páscoa diferente. Para dizer a verdade, todas as Páscoas são diferentes, ainda que para os nossos olhos e coração, por vezes adormecidos, tudo pareça igual.
O Covid-19 mudou a nossa vida, fez-nos recordar de que somos pó e em pó nos tornaremos. Uma fragilidade que não nos retira dignidade, mas que nos permite aumentar a esperança e a fé em Deus. Afinal a morte não é mais que uma passagem, como nos ensina Jesus com a Sua vida.
Tenho rezado (mais que o normal). Rezo pela minha família tão longe; pelos amigos, que estão bem presentes na mente e no coração; por todo o mundo dilacerado por esta doença. Parecendo pouco, a minha pobre oração é tudo o que vos posso oferecer neste momento.
Também nós na missão, estamos em quarentena. Todas as atividades foram suspensas. Já existe alguma informação sobre procedimentos de higiene, porém, a realidade aqui é completamente diferente da nossa.
Iniciámos agora o Estado de emergência. Será impossível realizar confinamento como em Portugal: se não morrem de Covid-19, podem morrer de fome, por falta de alimentos, de trabalho ou de dinheiro. Se não morrerem de Covid-19 ou de fome, morrem vítimas de guerras étnicas como tem acontecido aqui.
Tem morrido imensa gente nos últimos dias. As pessoas vivem com medo, os nossos gumuz evitam sair à rua ou fugiram para as aldeias do interior ou para a floresta. Vivemos numa cidade pertencente ao estado de Benishangul-Gumuz mas os gumuz não são a maioria nesta cidade e existe o desejo, para muitos, de que não vivam nesta cidade, de que não possam ir à escola (há um mês entraram na escola e tentaram matar três jovens gumuz).
A pertença étnica ainda é muito forte na Etiópia. Esta realidade fere-me o coração. É uma realidade que me ultrapassa. Tenho esperança que a normalidade regresse. Na cidade, a maioria das lojas estão fechadas.
Seja aqui, seja em Portugal, na Europa e em todo o mundo, estamos todos a viver a Paixão e Morte de Jesus na nossa vida, na nossa carne! Espero que também possamos viver todos a Sua Ressurreição no nosso coração.
Obrigado a todos e todas pelas mensagens de carinho e preocupação! Obrigado pela amizade!
Uma vez mais vos desejo uma Santa Páscoa para vós e toda a família.
Este amigo que vos quer,
Pedro Nascimento
Gilgel Belez - Etiópia
12 de abril de 2020
PÁSCOA CASEIRA
©Beta Almendra
Este ano a Páscoa é diferente: a ressurreição do Senhor é celebrada entre muros como tem sido a nossa vida, longe de tanta gente com quem gostaríamos de partilhar a oração e o pão.
Há uma semana que trago esta frase comigo: «em tua casa farei a Páscoa com os meus discípulos» (Mateus 26, 18). Foi o recado que Jesus mandou a um certo homem da cidade de Jerusalém.
Por um lado, o desejo de Jesus sublinha a dimensão caseira, doméstica da Igreja: estamos fechados por causa do coronavírus, mas o Senhor está a celebrar a sua Páscoa com cada família, com cada um de nós.
Depois, esta frase foi um convite para trazer no meu coração durante as celebrações do Tríduo Pascal, todas as pessoas que gostariam de participar na liturgia pascal e não puderam. Por isso, na missa da Ressurreição do Senhor havia mais três velinhas sobre o altar: eram vocês!
A celebração da ressurreição do Senhor em plena crise pandémica dá aos dias que vivemos uma amplitude maior, um olhar diferente, uma esperança fundamentada.
Paulo escreveu ao amigo Timóteo: «Nosso Salvador Cristo Jesus aniquilou a morte e trouxe à luz a vida e a imortalidade».
Jesus morreu, foi sepultado, mas o Pai ressuscitou-O dos mortos. Jesus venceu a morte. O coronavírus também vai ser vencido.
Por outro lado, o Senhor ressuscitado tem corpo glorioso, diferente, mas mantém as chagas da sua paixão. Vamos sair desta crise diferentes, melhores, marcados pelo que temos vivido em semanas e semanas de reclusão.
Que essas marcas sejam sinais de vitória, como as chagas de Jesus: de vitória sobre nós próprios, os nossos medos, os nossos egoísmos, o consumismo não necessário, através de uma vida mais tranquila, mais ecológica, mais simples, cheia da paz e alegria do Senhor Ressuscitado.
Em Cinfães, na visita pascal, usamos uma saudação de que gosto muito: «Neste dia de festa alegremo-nos no Senhor: aleluia, aleluia; Cristo ressuscitou: aleluia, aleluia!»
Alegra-te! É a própria natureza, exuberante em primavera espantosa, quem to diz! Celebra a presença de Jesus vivo e ressuscitado na tua família, na tua vida, na tua vizinhança.
Que a Sua Paz seja a tua!
11 de abril de 2020
E DESCEU AOS INFERNOS
O Sábado Santo em termos de liturgia é uma espécie de dia-zero: faz-se silêncio, em modo de repouso. Um compasso de espera, expetante, à espera do recomeçar.
O evangelho de Lucas termina a descrição do sepultamento de Jesus com uma nota curta: «Ao regressarem prepararam aromas e perfumes, e no sábado repousaram, segundo o mandamento» (23, 56).
O Símbolo (ou Credo) dos Apóstolos – o credo mais pequenino – proclama que Jesus «foi crucificado, morto e sepultado; desceu à mansão dos mortos». Outra tradução possível é que Jesus desceu aos infernos.
Numa homilia do século IV o pregador explica o Sábado Santo: «Um grande silêncio reina sobre a terra. Um grande silêncio e uma grande solidão. Um grande silêncio, porque o Rei está dormindo; a terra estremeceu e ficou silenciosa, porque o Deus feito homem adormeceu e acordou os que dormiam há séculos. Deus morreu na carne e despertou a mansão dos mortos».
O que faz Jesus na sua descida aos infernos? «Ele vai antes de tudo à procura de Adão, nosso primeiro pai, a ovelha perdida. Faz questão de visitar os que estão mergulhados nas trevas e na sombra da morte. Deus e seu Filho vão ao encontro de Adão e Eva cativos, agora libertos dos sofrimentos».
E continua: «O Senhor entrou onde eles estavam, levando em suas mãos a arma da cruz vitoriosa. Quando Adão, nosso primeiro pai, o viu, exclamou para todos os demais, batendo no peito e cheio de admiração: “O meu Senhor está no meio de nós”. E Cristo respondeu a Adão: “E com teu espírito”. E tomando-o pela mão, disse: “Acorda, tu que dormes, levanta-te dentre os mortos, e Cristo te iluminará”.»
Na arte, esta descida aos infernos, é representada com Jesus a dar a mão aos mortos e a tirá-los de lá com Eva e Adão à cabeça. Um ícone da ternura de Deus que nunca nos abandona apesar dos seus silêncios…
No silêncio deste sábado, nos teus silêncios estende a mão a Jesus que vive e te quer viva, vivo! Ele também te leva contigo na sua ressurreição dos mortos.
Ele está connosco, tumulados em apartamentos ou casas, com medo, solidão, fome, insegurança; desesperados porque a primavera puxa-nos para fora e as autoridades mandam-nos para dentro; Ele está connosco no leito, ligados a ventiladores, agonizantes; Ele está com as vítimas do COVID-19.
Ele está sempre connosco, e repete: «Não tenhas medo! Eu sou o Primeiro e o Último; aquele que vive. Estive morto; mas, como vês, estou vivo pelos séculos dos séculos e tenho as chaves da Morte e do Abismo!» (Apocalipse 1, 17-18).
10 de abril de 2020
ENTRE JARDINS
A celebração da Paixão do Senhor, cada Sexta-feira Santa, recorda os últimos dois dias de Jesus segundo o Evangelho de São João (18, 1 – 19, 42).
A narrativa começa assim: «Jesus saiu com os seus discípulos para o outro lado da torrente do Cédron, onde havia um jardim, no qual entraram Ele e os seus discípulos».
E termina assim: «Ora, no lugar onde tinha sido crucificado, havia um jardim, e no jardim um sepulcro novo, no qual ainda ninguém tinha sido posto. Foi aí, por causa da Preparação dos judeus, porque o sepulcro ficava perto, que puseram Jesus».
A paixão e morte de Jesus passaram-se entre dois jardins: o das Oliveiras e o do Gólgota. Esta é uma imagem que me impressionou!
Em tempos de pandemia, tumulados em nossas casas, estamos no meio de um jardim que nunca esteve tão vivo, tão florido.
Com os aviões em terra, os carros nas garagens e as fábricas maioritariamente fechadas nunca o ar esteve tão limpo e o chilrear dos pássaros tão glorioso!
Obrigados a abrandar, a parar, pelo novo coronavírus, nunca a Primavera se insinuou tão vigorosa ao nosso olhar!
O livro do Génesis explica que o jardim foi plantado por Deus (2, 8) e cabe-nos cultivá-lo e cuidar dele (2, 15); o Cântico dos Cânticos, na sua linguagem apaixonada e arrebatada, descreve a amada como um jardim fechado (4, 12); Jeremias vê a alma dos retornados do exílio como um jardim bem regado (31, 12); Ezequiel profetiza a restauração de Israel como transformação de terra devastada em jardim do Éden (36, 35).
Quando isto tudo passar, quando sairmos dos nossos túmulos, quando fizermos Páscoa, temos de rever o conceito de salvação e mudar comportamentos, rever formas de vida tão insustentáveis.
Estamos demasiado centrados em nós mesmos, mas a Bíblia é clara: a salvação é cósmica. O Salmo 36 canta que o Senhor salva homens e animais (versículo 7); Jesus envia-nos a anunciar o Evangelho à criação inteira (Marcos 16, 15). Como podemos proclamar a salvação ao meio ambiente tão maltratado?
O mistério pascal de Jesus acontece entre jardins, a nossa páscoa deste ano é no meio do jardim primaverado da criação.
Quando sairmos do túmulo das nossas casas e voltarmos a ser totalmente viventes vamos ter de rever o modo como cultivamos e cuidamos do jardim da criação, ser mais ecológicos nas nossas opções de vida.
HINO À CRUZ
O Salvador do mundo realizou as suas maravilhosas conquistas de almas
com a força desta cruz que fez cair o paganismo,
derrubou os templos profanos, transtornou as potências do Inferno
e se fez altar não de um único templo, mas altar de todo o mundo.
Esta cruz, que empreendeu o seu caminho do alto do Gólgota
e que encheu o universo da sua força,
nos templos recebeu adoração e nas cidades a maior veneração;
é respeitada como distintivo nas bandeiras
e invocado sobre os majestosos mastros das naves.
Deu à fronte sacerdotal a consagração
e à dos monarcas uma coroação sagrada.
Sobre o peito dos heróis comunicou entusiasmo.
Terra, mar e céu reconhecem a Cruz e em toda a parte se lhe prestam honras.
Entre as dores e os espinhos nasceu e cresceu a obra da redenção
e, por isso, apresenta um desenvolvimento admirável
e um futuro alentador e feliz.
A cruz tem a força de transformar a África Central em terra de bênção e de salvação.
Dela brota uma força que é doce e que não mata,
que renova as almas e desce sobre elas como um rocio restaurador;
dela brota uma grande força, sim,
porque o Nazareno, levantado na árvore da cruz,
estendida uma mão para Oriente e a outra para Ocidente,
recolheu todos os seus eleitos no seio da Igreja;
e com as suas mãos trespassadas sacudiu, qual outro Sansão, as colunas do templo,
onde desde havia tantos séculos se prestava adoração ao poder do mal.
Sobre aquelas ruínas Ele arvorou a cruz maravilhosa que tudo atrai para si:
«Quando for levantado da terra, atrairei todas as coisas para mim!».
† Daniel Comboni
9 de abril de 2020
AMOR BRUTAL
O evangelista São João começa a narrativa da paixão, morte e ressurreição do Senhor com uma frase arrepiante: «Tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até ao fim» (João 13, 1).
Há outras traduções para sublinhar o amor final de Jesus por nós: «até ao extremo», «até à consumação».
O amor de Jesus não é um amor meloso, cor-de-rosa com música ambiente. É vermelho de sangue, de entrega incondicional gritada em abandono total. Um amor final, extremo, consumado e consumido.
É este amor brutal que explica os acontecimentos que rememoramos, revivemos no tríduo pascal: a instituição da Eucaristia e do sacerdócio ministerial e a agonia do Senhor (Quinta-feira Santa), o seu processo, condenação, paixão, morte e sepultamento (Sexta-feira Santa) e a sua ressurreição dos mortos (vigília do Domingo de Páscoa).
Hoje recordamos a última ceia do Senhor, celebrada no salão de cima de uma casa emprestada em Jerusalém.
Durante a ceia, Jesus partilha o pão e o vinho, o seu Corpo e Sangue, com o mandamento de o fazer em sua memória, ritualizado na celebração eucarística.
João, setenta anos depois do mistério pascal do Senhor, em vez disso recordou o lava-pés. Jesus faz aos discípulos o serviço de um escravo – ou de uma mulher ou esposa nalgumas culturas.
Pedro não acha piada: não quer que Jesus lhe lave os pés – somos tão autossuficientes e custa-nos tanto reconhecer que precisamos uns dos outros! – e depois quer banhinho completo.
Jesus explicou o seu ato: «Dei-vos o exemplo, para que, assim como Eu vos fiz, vós façais também» (João 13, 15).
O nosso ser cristão passa pela lavagem dos pés uns aos outros. Somos lavadores de pés!
Este ano ficamos em casa, não podemos ir à igreja às cerimónias. Nas celebrações que os padres hoje fazem em privado ou com uma assistência reduzida a duas ou três pessoas não vai haver o lava-pés?
Vai sim! O pessoal de saúde e de emergência médica a tratar as vítimas da pandemia, os bombeiros, os farmacêuticos, as pessoas que mantêm os serviços de abastecimento a funcionar, que arriscam contaminação, estão a repetir o gesto de Jesus, estão a lavar-nos os pés!
São eles nesta Quinta-feira Santa que fazem o rito do lava-pés não em representação litúrgica, mas realmente, ao vivo e em direto. Para elas e eles vai todo o meu afeto!
Uma última nota. João escreve que estando à mesa, Jesus tirou as vestes e tomando uma toalha, atou-a à cintura e secou com ela os pés dos discípulos. No fim, voltou a colocar as vestes por cima da toalha.
A toalha, um pano ou avental de linho grosseiro, foi o único paramento que Jesus usou. Não tinha nem rendinhas nem debruados a ouro, só o cheiro e a humidade dos pés dos discípulos. E Jesus foi com esse paramento para a sua paixão.
7 de abril de 2020
BALADAS DO SOFREDOR
O Livro da Consolação da profecia de Isaías contém quatro poemas chamados cânticos do servo do Senhor: 42, 1-7; 49, 1-6; 50, 4-9; e 52, 13 – 53, 12). Estes textos são usados na primeira leitura da liturgia de segunda, terça, quarta e sexta-feira santa.
Quem é o servo sofredor cantado nas quatro baladas? O segundo cântico chama-lhe Israel. Pode tratar-se tanto de um indivíduo ou do povo. A tradição cristã identifica Jesus com o servo.
O primeiro cântico apresenta o servo como o eleito e preferido de Deus com quem anda de mão dada. O servo é não-violento e cheio do espírito do Senhor para levar justiça e luz às nações.
O segundo cântico diz que o servo foi chamado e apetrechado por Deus para restaurar as tribos de Jacob, reunir os dispersos de Israel e ser luz das nações. O servo queixa-se de algum cansaço e desilusão com o seu trabalho.
O terceiro cântico apresenta o servo como ouvidor e anunciador das palavras de alento de Deus aos desanimados. Um anúncio de risco porque pode despertar violência em quem ouve, mas o auxílio do Senhor está à mão.
Finalmente, o quarto cântico parece o guião da paixão de Jesus: fala do servo sofrido, desfigurado, sem beleza, carregador das nossas dores que nos cura pelas suas chagas, o Cordeiro ferido e imolado pelos nossos pecados. Mas verá a luz e justificará a muitos e «ficará satisfeito com a experiência que teve».
Mel Gibson abre o seu filme «A paixão de Cristo» com a citação «fomos curados pelas suas chagas» (Isaías 53, 5) que Pedro introduziu nas Escrituras cristãs usando a segunda pessoa do plural «Pelas suas chagas fostes curados» (1Pedro 2, 24).
Aliás, Pedro inicia o cântico em que insere a citação de Isaías com esta exortação aos escravos: «Cristo também padeceu por vós, deixando-vos o exemplo, para que sigais os seus passos» (1Pedro 2, 21».
Esta é a chave de leitura que proponho nesta estação de sofrimentos indizíveis de pandemia: Jesus cura-nos através das suas chagas; as nossas próprias chagas também podem servir de remédio para outras pessoas. Depende do que fazemos com o nosso sofrimento, sobretudo numa cultura que o nega e esconde.
Daniel Comboni teve uma vida muito dorida devido às dificuldades da missão africana no século XIX e também por causa das más línguas.
Uma semana antes de morrer escreveu: «Que aconteça tudo o quer Deus quiser. Deus nunca abandona quem nele confia. Ele é o protector da inocência e o vingador da justiça. Eu sou feliz na cruz, que levada de boa vontade por amor de Deus gera o triunfo e a vida eterna».
5 de abril de 2020
NÃO SOU EU, SENHOR, POIS NÃO?
Edvard Munch -
Golgotha (1900)
A tragédia da Paixão de Jesus está cheia de emoções: tristeza profunda, escândalo, angústia, violência, humilhação, choro, arrependimento, desespero, admiração, inveja, pesadelos, escárnio, blasfémias, insultos, medo, vigília…
E também de atores.
Judas é o primeiro a entrar em cena: entrega Jesus aos chefes religiosos por 30 moedas de prata (o preço de um escravo); atraiçoa-o com um beijo efusivo, o gesto de amizade, intimidade; arrepende-se porque reconhece a inocência de Jesus: devolve o dinheiro, mas os chefes religiosos não voltam atrás e enforca-se. Os estrangeiros ficaram com cemitério próprio com o dinheiro da traição.
Jesus é a personagem central: sabe que o seu tempo está próximo e quer fazer a Páscoa com os discípulos. Ele é o Cordeiro pascal: «Tomei, comei, este é o meu corpo; bebei todos, pois este é o meu sangue da aliança». No Jardim das Oliveiras reza: «Meu Pai, se não é possível apartar este cálice sem que eu o beba, faça-se a tua vontade». Na Cruz reza o abandono de Deus.
Pedro, o fanfarrão, diz que nada em Jesus os escandalizará, que irá com ele até à morte; tenta proteger Jesus à espadada e desconhece-o para safar a pele. Mas chora amargamente a sua negação.
Os chefes religiosos acusam Jesus de querer acabar com a religião – disse que podia destruir o templo e reconstruí-lo em três dia – mas acabam por acusá-lo por blasfémia. Os chefes religiosos são também a última tentação de Jesus: desafiam-no a usar o poder que Deus lhe deu para se salvar a si mesmo.
Pilatos é o governador romano. Sabe que os chefes religiosos acusam Jesus por inveja e quer protegê-lo. Assina a sentença de morte de Jesus com um lavar de mãos não por causa do coronavírus, mas porque não assume o que faz. Depois de a mulher o ter avisado que teve um pesadelo por causa «desse justo».
Há o coro da multidão que atua conforme as emoções: tanta aclama Jesus com alegria como o prende, humilha e troca por um salteador, pedindo a sua morte, e blasfemam contra o Crucidicado.
Simão de Cirene entra na tragédia de Jesus à força: obrigaram-no a levar a cruz de Jesus. É um estrangeiro, um africano de Cirene, na Líbia de hoje.
O Centurião romano, que chefia a segurança da execução de Jesus, quando o viu morrer e a terra tremer devolvendo à vida muitos santos tumulados, amedrontado, diz: «Verdadeiramente este era Filho de Deus».
As mulheres que acompanharam Jesus desde a Galileia, observam de longe. Os discípulos levam sumiço. As duas Marias velam o túmulo de Jesus.
José de Arimateia, homem rico, é o único homem discípulo a dizer presente depois da morte de Jesus: pede o seu corpo e dá-lhe uma sepultura condigna num sepulcro novo.
Quando Jesus, na ceia pascal, avisou que ia ser traído, cada discípulo - incluindo Judas - perguntou: «Não sou eu, Senhor, pois não?». Com que personagem ou personagens te identificas?
Deixo-te uma chave de leitura: «Tend[e] sempre os olhos fixos em Jesus Cristo, amando-o ternamente e procurando entender cada vez melhor o que significa um Deus morto na cruz pela salvação das almas» (São Daniel Comboni).
2 de abril de 2020
«OFERECEMOS O NOSSO VENTILADOR»
«Nós, os velhos, devemos pensar que a nossa situação é igual à dos outros e se alguma coisa há é a obrigação suplementar de dizer aos outros que isto já aconteceu, que se ultrapassou, que vai ser ultrapassado; que nós, os velhos, temos que ter capacidade de dar exemplo: não sairmos e mais, quando chegarmos ao hospital se for necessário oferecemos o nosso ventilador ao homem que tiver mulher e filhos».
A afirmação é de António Ramalho Eanes em entrevista à Fátima Campos Ferreira no programa «Estado de emergência» ontem à noite na RTP 1 e causou algum sururu nas redes sociais.
A entrevista está disponível na RTP Play e pode ser vista aqui.
O General Eanes faz uma análise de estadista com formação militar, de humanista, uma lição prática para os políticos mais jovens e aspirantes. Deixo aqui um sumário.
O ex-Presidente da República recorda que é urgente voltar a ser humildes e encontrar na intercomunicação autêntica o remédio para a fragilidade. «Perdemos a humildade e o sentido de corresponsabilidade», nota.
Defende que a globalização trouxe mais interdependência e menos solidariedade, que falta solidariedade entre estados.
Aceita que o medo é razoável, mas tem de ser ultrapassado.
Sublinha que «o amor é sempre indispensável».
Diz que na primeira linha de combate ao coronavírus devem estar os políticos e as forças públicas (incluindo os militares que têm de ser mais usados) e na segunda linha os hospitais e o pessoal de saúde.
Sublinha que a Europa é o centro da crise epidémica porque se esqueceu que o futuro exige respostas estratégicas e não se prestou atenção aos avisos da ONU e do Banco Mundial.
Preconiza uma nova reflexão sobre os sistemas políticos e sobre o homem, «porque o homem se tornou tão egoísta»; repensar o estado e as suas funções, não o estado mínimo mas «o estado necessário» que olha para além das eleições.
Recorda que o confinamento é antissocial e pode levar a situações complicadas que necessitam de apoio psiquiátrico e psicológico.
Uma crise é também uma oportunidade: «Estou convencido que esta crise é um momento de silêncio, de reflexão, é um momento de comunhão. E, se não for assim, estamos a perder uma oportunidade única que, ao fim e ao cabo, nos é oferecida com um dramatismo único, com dor, com desgosto».
1 de abril de 2020
TECNOLOGIA VERDE
Africana avança solução biotecnológica.
Quando visitei a barragem de Jinja, no Uganda, à saída do Nilo Branco do lago Vitória, fiquei espantado com o espesso manto florido de jacintos-de-água em que se transformou a albufeira. Até me apeteceu caminhar sobre o lago!
O jacinto-de-água (Eichhornia crassipes) é natural da bacia do Amazonas, no Brasil. Por ser uma planta exótica com uma linda flor lilás, viajou para os cinco continentes via jardins botânicos e indústrias decorativas. A planta flutuante converteu-se numa praga global e põe em causa o equilíbrio ecológico de muitas bacias hidrológicas e lagos nos cinco continentes, incluindo Portugal (como é o caso do rio Sorraia). Em pequenas quantidades funciona como purificador da água doce, mas, como se multiplica desmesuradamente, afecta seriamente os ecossistemas aquáticos por não permitir a oxigenação da água, matando os peixes e a vida subaquática, entope canais de navegação e irrigação e causa avarias nas hidroeléctricas.
O crescimento super-rápido dificulta o seu controlo, que pode ser mecânico, químico ou biológico. Além da ornamentação, o jacinto-de-água é usado em forragem para animais, estrume e biocombustíveis.
A crise ecológica representou uma oportunidade para Mariama Mamane. A engenheira ambiental, de 29 anos, do Burquina Faso, ganhou o prémio Jovens Campeões da Terra 2017 da UNEP, o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente. O seu projecto Jacigreen propunha transformar os jacintos em fonte sustentável de energia e de adubos orgânicos e lançar as bases para uma economia verde que combata as alterações climáticas e garanta a segurança alimentar.
Com os 15 mil dólares do prémio, comprou materiais para montar uma unidade-protótipo e testar as suas ideias. Agora produz fertilizantes e biogás com as plantas que sufocam cursos de água em mais de 40 países da África e noutros continentes. O processo é simples: as plantas são cortadas, fermentadas e transformadas em composto para a agricultura. O gás metano libertado no processo é armazenado e usado na produção de energia eléctrica.
«O nosso objectivo é fornecer soluções para famílias que não têm acesso à electricidade e usam madeira. O biogás pode reduzir a deflorestação e a invasão do deserto nas comunidades. O nosso objectivo também é chegar ao número máximo de agricultores para reduzir o uso de fertilizantes químicos, construindo um ecossistema flexível e produtos mais saudáveis para os consumidores», explicou Mariama numa entrevista recente à UNEP.
E tem um sonho: produzir em 2021 biogás suficiente para fornecer electricidade a 500 habitações e fertilizante biológico a mais de 1000 agricultores.
A jovem engenheira explicou que para pôr em prática o projecto teve de importar tecnologia da China e da Alemanha e fazer de pedreiro a picheleiro para desenvolver a unidade-protótipo. As dificuldades, contudo, não a desencorajaram, antes lhe deram mais energia para crescer na carreira profissional.
Para Mariama, que quer inspirar outras jovens a lutar por um futuro melhor, o jacinto-de-água transformou-se de praga ecológica grave em oportunidade para o desenvolvimento sustentável e amigo do ambiente num país com problemas de segurança alimentar e energia.