15 de junho de 2021
CORAÇÃO: CASA DE DEUS
Finalmente, proponho contemplar o Coração Trespassado do Bom Pastor como chave interpretava para a religiosidade pós-moderna, um olhar para um futuro já presente.
Partimos de um dado inegável: a secularização está a avançar a passos largos sobretudo no hemisfério norte e as instituições religiosas estão a perder uso e influência. Os mais jovens têm menor aderência a formas organizadas de religiosidade: 27 por cento dos norte-americanos e 11 por cento dos europeus descrevem-se espirituais mas não religiosos, de acordo com um estudo do Pew Institute.
Somos agentes da pastoral. Vamos para o desemprego? Acho que não! Mas necessitamos de reciclar o serviço missionário: passar de uma abordagem institucional e estrutural à missão do coração através da mística do encontro. Uma mudança de época exige uma mudança no paradigma da missão.
Religião tem o étimo em religare (voltar a ligar, a atar, a unir) ou relegere (voltar a ler, revisitar). O prefixo RE pede uma atualização constante do ligar ou do ler.
A busca espiritual das novas gerações revela-se através estilos de vida mais harmoniosos. Os sinais dessa procura espiritual passam pela ecologia, meditação, ioga, retiros, harmonia com a criação: vidas ecologicamente sustentadas, ancoradas no vegetarianismo e no veganismo — que é uma forma radical do modo de vida vegetariano. Ambos são manifestação de uma compaixão integral pelas pessoas e pelos animais.
Por outro lado, a secularização não mata a fé, mas purifica-a, devolve-a ao essencial: a relação cordial com Deus, com os irmãos e com a natureza. É no coração que se encontra o epicentro da religião.
Jesus respondeu ao fariseu que procura uma síntese da fé que o essencial é amar a Deus com todo o coração, com toda a alma, com todo o entendimento e com toda a força e ao próximo como a si mesmo, citando os livros do Deuteronómio e do Levítico. Paulo é mais radical: «toda a Lei se cumpre plenamente nesta única palavra: Ama o teu próximo como a ti mesmo».
Lemos na profecia de Jeremias, capítulo 31, 31-34: «Dias virão em que firmarei uma nova aliança com a casa de Israel e a casa de Judá — oráculo do SENHOR. Não será como a aliança que estabeleci com seus pais, quando os tomei pela mão para os fazer sair da terra do Egipto, aliança que eles não cumpriram, embora Eu fosse o seu Deus — oráculo do SENHOR. Esta será a Aliança que estabelecerei, depois desses dias, com a casa de Israel — oráculo do SENHOR: Imprimirei a minha lei no seu íntimo e gravá-la-ei no seu coração. Serei o seu Deus e eles serão o meu povo. Ninguém ensinará mais o seu próximo ou o seu irmão, dizendo: 'Aprende a conhecer o SENHOR!' Pois todos me conhecerão, desde o maior ao mais pequeno, porque a todos perdoarei as suas faltas, e não mais lembrarei os seus pecados» oráculo do SENHOR».
A profecia de Jeremias anuncia a passagem de uma religião organizada — a religião empedernida, gravada na pedra, do templo e da casta sacerdotal, clerical — para uma relação cordial com Deus, tatuada no coração.
Nesta aliança nova e eterna «ninguém ensinará mais o seu próximo ou o seu irmão, dizendo: 'Aprende a conhecer o SENHOR!' Pois todos me conhecerão, desde o maior ao mais pequeno, porque a todos perdoarei as suas faltas, e não mais lembrarei os seus pecados», sublinha o versículo 34.
Talvez seja por isso que a cidade santa, a nova Jerusalém descida do céu, não tem templo: «Templo, não vi nenhum na cidade; pois o senhor Deus, o Todo-Poderoso, e o Cordeiro são o seu templo».
O rasgar de alto a baixo da cortina do Templo no momento em que Jesus entrega o espírito ao Pai tem esse mesmo significado: o mistério de Deus fica acessível a todos! Não há nem barreiras nem controladores do divino para mediar a relação entre Deus e o seu povo.
Paulo fala com frequência do cristão como a nova casa de Deus. «Não sabeis que sois templo de Deus e que o Espírito de Deus habita em vós?», pergunta aos cristãos de Corinto. Pedro diz que somos pedras de um edifício espiritual.
Por outro lado, Jesus fala à samaritana que «a água que Eu lhe der há de tornar-se nele em fonte de água que dá a vida eterna».
Daí que Etty Illesum, a jovem judia holandesa morta em Auschwitz, tenha escrito no seu diário: «Dentro de mim há um poço muito fundo. E lá dentro está Deus. Às vezes consigo lá chegar. Mas acontece mais frequentemente haver pedras e cascalho no poço, e aí Deus está soterrado. Então é preciso desenterrá-lo».
O Papa Francisco escreve no n.º 88 da Fratelli tutti: «A partir da intimidade de cada coração, o amor cria vínculos e amplia a existência, quando arranca a pessoa de si mesma para o outro. Feitos para o amor, existe em cada um de nós “uma espécie de lei de ‘êxtase’: sair de si mesmo para encontrar nos outros um acrescentamento de ser”. Por isso, “o homem deve conseguir um dia partir de si mesmo, deixar de procurar apoio em si mesmo, deixar-se levar”.»
É o amor que nos saca da zona de conforto e nos abre a Deus e aos outros, porque «Deus é amor», como não cessa de repetir João na primeira carta.
Daí que a secularização esteja a promover a religião do coração baseada numa espiritualidade pessoal, cordial. Que necessita de recuperar a dimensão comunitária.
Contemplar o Coração de Cristo leva-nos a sermos missionários de coração e com coração que revelam o Coração da Trindade Santíssima e são ponto de encontro com os corações de todos os homens e mulheres, com o grande coração do Universo.
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