14 de junho de 2021
CORAÇÃO: TERRITÓRIO DA MISSÃO
Até à encíclica Evangelii nuntiandi a missão ad gentes tem uma identidade geográfica muito forte. O ad gentes físico é o âmbito da missão.
São João Paulo II, na Redemptoris missio, escreve que há «uma única missão igual em todo o lugar» (32) e «a missão ad gentes, devido ao mandato universal de Cristo, não tem fronteiras. Apesar disso, é possível identificar vários âmbitos, em que ela se concretiza, para ficarmos com um quadro real da situação».
Os âmbitos que o Papa polaco introduz são (a) territoriais; (b) mundos e fenómenos sociais novos — que incluem as grandes cidades, a juventude, os emigrantes e refugiados e as situações de pobreza; e (c) os novos areópagos das áreas culturais — em que se destacam os meios de comunicação social, as questões de JPIC (Justiça, Paz e Integridade da Criação), e os mundos da cultura, da pesquisa científica e das relações internacionais.
Por outro lado, escreveu na Christifideles laici, a exortação apostólica sobre vocação e missão dos leigos na igreja e no mundo de dezembro de 1988, que «o homem é amado por Deus! Este é o mais simples e o mais comovente anúncio de que a Igreja é devedora ao homem. A palavra e a vida de cada cristão podem e devem fazer ecoar este anúncio: Deus ama-te, Cristo veio por ti, para ti Cristo é “Caminho, Verdade, Vida”.»
Esta síntese revoluciona o conteúdo do anúncio: passa do querigma (Jesus nasceu, viveu e morreu por nós, o Pai ressuscitou-o e quem acreditar nele e se converter tem a vida eterna) para o amor fontal: Deus ama-te.
Na mesma linha, o Papa Francisco escreveu na Evangelii gaudium: «Hoje que a Igreja deseja viver uma profunda renovação missionária, há uma forma de pregação que nos compete a todos como tarefa diária: é cada um levar o Evangelho às pessoas com quem se encontra, tanto aos mais íntimos como aos desconhecidos. É a pregação informal que se pode realizar durante uma conversa, e é também a que realiza um missionário quando visita um lar. Ser discípulo significa ter a disposição permanente de levar aos outros o amor de Jesus; e isto sucede espontaneamente em qualquer lugar: na rua, na praça, no trabalho, num caminho».
O anúncio do amor é sobretudo um diálogo de corações. Daí que a Conferência Episcopal Portuguesa tenha recordado na nota pastoral Tudo, todos e sempre em missão a anunciar o Ano Missionário de 2018-2019 que o coração é, de facto, mais que a geografia, o território da missão.
«Do encontro com a Pessoa de Jesus Cristo nasce a Missão que não se baseia em ideias nem em territórios, mas “parte do coração” e dirige-se ao coração, uma vez que são “os corações os verdadeiros destinatários da atividade missionária do Povo de Deus”.», os bispos escrevem.
O Papa Francisco vai na mesma linha quando regista na Mensagem para o Dia Mundial das Comunicações Sociais de 2021 que «a boa nova do Evangelho difundiu-se pelo mundo, graças a encontros pessoa a pessoa, coração a coração: homens e mulheres que aceitaram o mesmo convite – «vem e verás –, conquistados por um «extra» de humanidade que transparecia brilhou no olhar, na palavra e nos gestos de pessoas que testemunhavam Jesus Cristo».
O escritor católico japonês Shusaku Endo, no seu romance Silêncio, recria algumas cartas do P. Sebastião Rodrigues supostamente escritas de Macau em 1640 enquanto o jesuíta português aguarda, ansioso, com um colega, o barco que os levará clandestinos ao Japão para ajudar os católicos barbaramente perseguidos pelas autoridades e descobrir o que verdadeiramente se passou com o P. Cristóvão Ferreira, antigo formador que diziam ter apostatado. A obra é um verdadeiro tratado de missiologia.
Na primeira carta, o missionário português escreve: «Cinco dias mais tarde e soará a hora da partida. Nenhuma outra bagagem levaremos para o Japão além do coração».
Sendo o coração o território da missão, o coração é também o meio da evangelização. Contemplar o Bom Pastor do Coração Trespassado é aprender dele a amar até ao fim, até à consumação. Aprender sobretudo a compaixão, esse comover-se até às entranhas, esse «tripar» — como propõe D. António Couto — que era a reação visceral de Jesus perante os males que afligiam os seus ouvintes.
Jesus Cristo não é uma ideia, é um amor que se vive e se partilha. Na antropologia bíblica pensamos com o coração e amamos com as entranhas. Para sermos missionários com coração temos que passar da razão para o coração. Somos racionalistas por (de)formação e muitas vezes tentamos camuflar os sentimentos.
Para sermos missionários com coração temos de perder o medo do risco de amar e ser amados. Eu entendi plenamente a força da expressão Deus ama-me quando fiz a experiência de um amor reciprocado.
O Papa Francisco transformou a ternura na quarta virtude teologal. Temos que desenvolver o hemisfério direito do nosso cérebro para sermos mais afetivos em vez de querermos ser mais efetivos.
Francisco escreve na Laudato Si’ que devemos «ouvir tanto o clamor da terra como o clamor dos pobres».
Este ouvir holístico faz de nós missionários da ecologia integral. Os nossos antepassados desmatavam e caçavam por necessidade — alguns faziam-no pelo prazer dúbio de matar. Hoje, somos chamados a cuidar da casa comum e de todos os seus habitantes através de vidas mais sóbrias e sustentáveis, reduzindo o consumo e aumentando a reciclagem e separação de resíduos.
O Vaticano lançou no final de maio a Plataforma de ação Laudato si’ com um percurso de sete anos para atualizar a aplicação da encíclica que fez cinco anos.
Diz: «a Adoção de Estilos de Vida Sustentáveis se baseia na ideia de suficiência e de promover a sobriedade no uso dos recursos e de energia. As ações podem incluir a redução do desperdício e a reciclagem, a adoção de hábitos alimentares sustentáveis (optando por uma alimentação à base de plantas e reduzir o consumo de carne), maior uso de transporte público, mobilidade ativa (caminhada, bicicleta) e evitar itens de uso único (por exemplo, plástico, etc.)».
Alguns gestos missionários concretos: reciclar as cápsulas do café — são muito práticas, mas também poluentes — separando a borra do plástico ou alumínio; comprar a granel (em em vez de pequenas embalagens), comer menos carne e mais leguminosas…
A missão é uma torrente de amorosidade do coração da Trindade para o coração da Criação inteira através dos nossos corações.
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