29 de maio de 2020

AMAS-ME? SOU TEU AMIGO


O evangelho de João termina com uma desconversa intrigante entre Jesus e Pedro (que alguns tradutores passam por cima).

Na última aparição junto ao lago de Tiberíades, depois do pequeno almoço de pão e peixe grelhado que Jesus lhes preparou – que amigo cuidador, este perguntou a Pedro:

«Simão, filho de João, tu amas-me mais do que estes?» Pedro respondeu: «Sim, Senhor, Tu sabes que sou teu amigo» (João 21, 15).

Primeiro, Jesus, trata Pedro pelo seu nome civil, o nome antes da missão: Simão, filho de João. A ressurreição de Jesus marca também um novo começo, um novo chamamento para os discípulos.

Depois, Jesus pergunta se ele o ama e Pedro responde que é seu amigo. São duas coisas diferentes: amar e ser amigo.

Jesus fez esta pergunta a segunda vez e obteve a mesma resposta. Da terceira vez Jesus reajustou a pergunta:

«Simão, filho de João, tu és meu amigo?» (João 21, 17).

Dom António Couto, bispo de Lamego, tem uma explicação para este trocadilho entre amar e ser amigo no texto Entre a amizade e o amor:

Mas há mais ainda, sobre aquela praia do Mar da Galileia,
Um último confronto entre Jesus e Pedro,
Entre o amor novo de Jesus que abraça a todos,
E a amizade de Pedro circunscrita ao seu grupo de amigos.
Aí, Jesus interrogará Pedro sobre o amor novo,
E Pedro responderá que sim,
Que é amigo de Jesus.
Na verdade, Pedro continua a ler a sua vida
E o seu relacionamento com Jesus,
Dentro das fronteiras da amizade que une um grupo de amigos.
Falta ainda a Pedro entender a lição do amor novo de Jesus,
Que ama a todos,
Que é para todos,
E rebenta assim as fronteiras fechadas
De qualquer grupo de amigos.

Daniel Comboni escreve que é preciso conjugar o verbo amar no serviço missionário: «Deus está connosco, porque nós desejamos unicamente a sua glória. É hora de mover todos os corações do universo para amar a Deus, a Igreja, o seu chefe, as missões e sobretudo os mais abandonados» (Escritos 1655).

O evangelho termina com o dito de Jesus sobre a ancianidade: «quando envelheceres, estenderás as tuas mãos e outro te vestirá e levará para onde não queres». É a experiência de tantos idosos que não querem ir para os lares para não perderem a autonomia, o seu «cantinho».

Mas também indica que ao seguir Jesus, pomo-nos nas mãos uns dos outros, somos chamados a viver sobre o olhar misericordioso de Deus e dos irmãos. É impossível seguir Jesus por conta própria, fora da comunidade dos crentes.

24 de maio de 2020

IMPERATIVO MISSIONÁRIO


A ressurreição e a ascensão de Jesus ao céu são duas faces, duas fases do único processo da glorificação de Jesus como o Senhor do universo.

Mateus conta que os onze discípulos voltaram à Galileia para o monte que Jesus lhes indicou. Depois da ressurreição, os discípulos são chamados a voltar ao princípio, à Galileia onde começaram a seguir Jesus.

Voltam à Galileia não para reviverem a história do discipulado numa espécie de círculo fechado em retorno eterno, mas para serem enviados ao mundo inteiro para fazerem discípulos entre todas as nações.

Quando os discípulos viram Jesus, ajoelhara-se, adoraram-no. Ele é o Senhor glorioso, sentado ao lado do Pai. Contudo, alguns duvidaram. Este é um detalhe interessante: todos adoram o Senhor, mesmo que alguns continuem com dúvidas a resolver.

Tenho medo das pessoas que nunca duvidam, que não se interrogam, que têm tudo resolvido no seu coração…

No monte da Ascensão Jesus apresenta-se como Senhor glorificado com poder cósmico: «Foi-me dada toda a autoridade no céu e na terra».

A missão do Jesus histórico devido aos condicionalismos do tempo e do espaço foi sobretudo uma missão «às ovelhas pedidas da casa de Israel» como explica Mateus (15, 24).

Agora, glorificado, de volta ao Pai, manda os seus discípulos a todas as nações: «Ide, fazei discípulos de todos os povos, batizando-os em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo, ensinando-os a observar tudo quanto vos ordenei».

Alguns especialistas dizem que Mateus escreveu o seu evangelho para explicar o Grande Mandato de Jesus aos discípulos; outros, que estes dois versículos são a síntese em filigrana do Evangelho de Mateus.

O imperativo missionário de Jesus aos discípulos de ontem e de hoje conjuga-se através de dois verbos: ide e fazei. Dois verbos em voz ativa, que são a nascente do Instituto comboniano.

«O objetivo deste Instituto é o cumprimento do mandato dirigido por Cristo aos discípulos de pregar o Evangelho a todas as gentes; é a continuação do ministério apostólico, pelo qual todo o mundo participou dos inefáveis benefícios do Cristianismo» (Escritos 2647), escreve Comboni no Capítulo I das Regras de 1871 do Instituto das Missões para a Nigrícia.

IDE. O «ide» começa com um «vinde atrás de mim» (Mateus 4, 19), um tempo de discipulado, uma iniciação na qual Jesus partilha a sua experiência se Deus como Abba, Papá, e anuncia o seu reinado.

O «ide» é, primeiro, um sair de nós próprios, da autorreferencialidade, do individualismo narcisista globalizado, um autodescentrar-se para fazer de Jesus e dos outros o centro da vida. É sair da área de conforto.

O «ide» é afetivo para ser efetivo, mas também geográfico. Daí a insistência do Papa Francisco numa Igreja em saída para ir às periferias humanas.

FAZEI discípulos de todos os povos. O Senhor do universo envia os seus discípulos a facilitar a experiência de discipulado entre todas as nações. O tempo de Jesus dá lugar ao tempo dos discípulos, animados pelo Espírito Santo, que é o protagonista da missão.

Jesus fez o caminho da Galileia até Jerusalém com os seus discípulos como preparação para a missão global da Galileia a todas as nações através do batismo em nome da Trindade Santíssima e «ensinando-os a observar tudo quanto vos ordenei».

O método de Jesus não é um ensino teórico, uma doutrinação. Jesus partilha com os discípulos a sua experiência de Deus. A sua autoridade e a sua novidade vêm daí.

É esse o caminho do discípulo missionário: «O que existia desde o princípio, o que ouvimos, o que vimos com os nossos olhos, o que contemplámos e as nossas mãos tocaram relativamente ao Verbo da Vida, – de facto, a Vida manifestou-se; nós vimo-la, dela damos testemunho e anunciamo-vos a Vida eterna que estava junto do Pai e que se manifestou a nós – o que nós vimos e ouvimos, isso vos anunciamos», escreveu João no prólogo da primeira carta.

Jesus termina o mandato missionário com uma promessa: «E eis que Eu estarei convosco todos os dias, até à consumação dos tempos».

Jesus, Palavra encarnada, é o Emanuel, Deus connosco (Mateus 1, 23) como o anjo explicou na anunciação a José. 

O Senhor glorioso continua a ser o Emanuel com a Igreja em missão até ao fim dos tempos. Ele é o Senhor da Missão: ele chama, envia e vai com os seus discípulos missionários até ao fim do mundo, até ao fim dos tempos em modo de teletrabalho a partir do Pai.

Por isso, Comboni nunca abandonou a missão africana. Numa hora de aperto, escreveu ao reitor do Instituto em Verona: «agora cabe-me sofrer, mas Deus conceder-me-á a calma. Coragem, reciprocamente! O saber que não estou só na luta é um grande conforto. Além disso, Deus está connosco e abençoará a seu tempo os que nos perseguem» (Escritos 1086).

Termino esta reflexão com três notas.

1. Lucas escreve nos Atos dos Apóstolos que, depois da Ressurreição, Jesus apareceu durante 40 dias aos apóstolos falando-lhes do Reinado de Deus. Antes de subir aos céus, perguntaram-lhe se era agora que ia restaurar o reino de Israel. Jesus não se zangou com aquela gente dura de entendimento. Antes, enviou-lhes o Espírito Santo para serem suas testemunhas da Samaria até aos confins da terra.

O discipulado, o seguimento de Jesus, é um processo em curso, um trabalho em progresso, com construções e desconstruções, que dura a vida toda e toda a vida.

2. Lucas, no relato da ascensão, diz que Jesus se elevou à vista dos discípulos e uma nuvem escondeu-O dos seus olhos. Mas eles continuaram especados a olhar o céu. Apareceram dois anjos que lhes perguntaram: Galileus, porque olhais para o Céu? E explicaram: «Esse Jesus, que do meio de vós foi elevado para o Céu, virá do mesmo modo que o vistes ir para o céu».

Na transição do tempo de Jesus, a Palavra Encarnada, para o tempo do Espírito Santo e da Igreja, em tempo de mudança de era, somos tentados a ficar a contemplar o que passou com medo de encararmos olhos nos olhos, de frente o presente, a realidade nova que se nos oferece.

Os anjos desafiam os discípulos a deixar de olhar o céu para voltarem os olhos para a terra, para testemunhar a presença do Senhor ressuscitado através de vidas ressuscitadas pelo poder do Espírito Santo.

Paulo, na Carta aos cristãos de Éfeso, recorda que o espírito de sabedoria e de revelação que vem de Deus, ilumina sobretudo os olhos do nosso coração para entendermos a esperança a que fomos chamados. É esse olhar cordial que peço ao Senhor para todos.

3. A solenidade da Ascensão do Senhor é, há 54 anos, o Dia Mundial das Comunicações Sociais.

O Papa Francisco escolheu o tema «Para que possas contar e fixar na memória – a vida faz-se história» como resposta às narrativas alternativas que distorcem a realidade sobretudo nas redes sociais.

Partilho dois parágrafos:

«Na confusão das vozes e mensagens que nos rodeiam, temos necessidade duma narração humana, que nos fale de nós mesmos e da beleza que nos habita; uma narração que saiba olhar o mundo e os acontecimentos com ternura, conte a nossa participação num tecido vivo, revele o entrançado dos fios pelos quais estamos ligados uns aos outros».

«Frequentemente, nos «teares» da comunicação, em vez de narrações construtivas, que solidificam os laços sociais e o tecido cultural, produzem-se histórias devastadoras e provocatórias, que corroem e rompem os fios frágeis da convivência. Quando se misturam informações não verificadas, repetem discursos banais e falsamente persuasivos, se repercutem proclamações de ódio, está-se, não a tecer a história humana, mas a despojar o homem da sua dignidade».

O Papa pede de nós uma narrativa que faça memória «daquilo que somos aos olhos de Deus, testemunhar aquilo que o Espírito escreve nos corações, revelar a cada um que a sua história contém maravilhas estupendas».

É essa a nossa missão, hoje, com a ajuda do Espírito Santo: fazer memória das maravilhas que somos (Salmo 139), porque o Senhor fez maravilhas em nós, por nós e através de nós – como o fez com a nossa Mãe, a Virgem de Nazaré, e ajudar as irmãs e irmãos a fazerem o mesmo.

Amen!

19 de maio de 2020

BEIJO DE PAZ


Jesus ligou para sempre o serviço missionário com a empresa da paz.

Quando enviou os 72 dois a dois a preparar a sua visita a algumas localidades da Galileia, fez de cada discípulo um irenóforo, portador de paz.

«Em qualquer casa em que entrardes, dizei primeiro: 'A paz esteja nesta casa!' E, se lá houver um homem de paz, sobre ele repousará a vossa paz; se não, voltará para vós» (Lucas 10, 5-6), manda.

Antes, no Sermão do Monte, tinha abençoado os homens e mulheres fazedores da paz: «Felizes os pacificadores, porque serão chamados filhos de Deus» (Mateus 5, 9).

Daí que tenha deixado a sua paz como presente maior aos seus discípulos: «Deixo-vos a paz; dou-vos a minha paz. Não é como a dá o mundo, que Eu vo-la dou. Não se perturbe o vosso coração nem se acobarde» (João 14, 27).

E é de paz que fala a primeira saudação do Ressuscitado: «A paz esteja convosco» (João 20, 19).

Daniel Comboni viveu a missão como um serviço de paz e foi nestes termos que a explicou:
«Nós viemos aqui com o ósculo da paz, a fim de lhes trazer o maior bem que existe» (Escritos 297).

A paz é o método missionário que usa: «com o crucifixo ao peito e com a palavra de paz, amansam-se as bestas mais ferozes» (Escritos 297), sossega os pais da missão de Santa Cruz, no Sudão de então, um mês depois de lá ter chagado com três companheiros.

A paz vem da Cruz (Escritos 424) e é atributo de Deus, juntamente com a misericórdia (Escritos 694).

Além das palavras também também tem o olhar de paz (Escritos 896) para proclamar o Evangelho da paz e de todo o bem (Escritos 2540).

Comboni descreve o arco-íris como «sinal da paz e reconciliação entre a terra e o céu» (Escritos 4002).

Vai ficar tudo bem, porque o Senhor nos dá a sua paz e oferece a reconciliação com Ele, entre nós e com a com a criação inteira.

Um coração de paz para ti.

16 de maio de 2020

NO MESMO BARCO


«A PESTE», a ficção que Albert Camus escreveu sobre uma suposta epidemia que fechou a cidade portuária de Orão, na Argélia, impôs-se como leitura obrigatória em tempos de pandemia global.

«Estamos todos no mesmo barco» é o mantra do romance. Aparece por três vezes.

Mais do que no mesmo barco estamos todos na mesma tempestade. Alguns estão em iates enquanto outros bailam em «cascas de noz» ao sabor das correntes.

O romance descreve o confinamento imposto pela peste bubónica e depois pela pneumónica como exílio, solidão, saudade.

Há muitas cenas que nos são familiares: momentos especiais de oração - «a religião em tempo de peste não podia ser a religião quotidiana» –, praias fechadas, doentes sem visitas, valas comuns, hotéis vazios… «A peste mata prazeres», diz-se.

Interessante é o trabalho da sociedade civil que se organiza para ultrapassar a inércia das autoridades, «porque a compaixão é caminho da paz» e «um mundo sem amor é um mundo morto».

Há quem espere que o frio do inverno mate o bacilo e quem faça rios de dinheiro com a miséria alheia no contrabando de bens e pessoas.

O Dr. Bernard Rieux, o médico que dirigiu o combate à peste, escreveu a crónica da cerca sanitária «para não ser um daqueles que mantêm a sua paz, mas devia testemunhar em abono daquele povo atacado pela peste; para que alguma memória da injustiça e ultraje que receberam possa permanecer; e para afirmar simplesmente o que aprendemos em tempo de pestilência: que há mais coisas para admirar nos homens que para desprezar».

Camus tem uma escrita enxuta, cirúrgica, atraente. O filósofo existencialista franco-argelino escreveu a obra em 1947 como uma metáfora dos horrores da Segunda Guerra Mundial.

Recebeu o nobel da literatura em 1957.

14 de maio de 2020

AUTO DA FARSA NÃO PAGO, MAS JÁ PAGOU

Cena 1
Os mandões do burgo mais a oeste prantado incluem na folha de paga uma injeção de 850 milhões na veia do Mealheiro Novo feito de dívidas revelhas. Quando o tempo amadurece o CR7 das Massas transfere o guito.

Cena 2
A Reguila da Canhestra pergunta no Parlatório ao Primeiro Otimista se vai esgravatar as contas do Novo Mealheiro antes de entregar o carcanhol. Este, num encolhe de ombros a dizer «Já me lixaste», jura que sim.

Cena 3
O Primeiro em privado pede desculpa à Reguila porque afinal o bago já está no Mealheiro. Desculpe qualquer coisinha, mas não sabia o que o Massas fez. Este explica que o Governo paga e não bufa até o ábaco chegar aos 3,89 mil milhões, porque é o que está no papiro rabiscado com o pele vermelha Estrela Solitária.

Cena 4
O Primeiro e o Louro-Mor juntam-se na Fábrica dos Calhambeques, afagam-se mutuamente. O Mor manda bitaites ao Massas. Na Parlatório, há quem lhe queira a cabeça na caixa-forte.

Cena 5
O Primeiro e o Massas reúnem-se no breu do Jardim de São Bentinho, trocam ósculos de paz e juram amor para sempre.

FIM?
Até ver! Ter um «mão-de-vaca» em tempo de recuperação económica a mandar nas massas não dá jeitinho nenhum!

9 de maio de 2020

NOVA NORMALIDADE: E NA IGREJA?


«A religião em tempo de peste não podia ser a religião quotidiana». A observação é de Albert Camus em «A peste», a sua obra maior publicada em 1947, uma ficção sobre um surto de febre bubónica e pneumónica em Orão, cidade costeira da Argélia.

Os tempos de pandemia global que vivemos dão-lhe razão: as igrejas fecharam e a prática religiosa foi confinada ao meio familiar. Passou-se da Igreja das grandes multidões à Igreja doméstica, da família, a célula que é a base de tudo.

A frase de Camus bateu à minha porta juntamente com a carta que o teólogo checo Tómaš Halík escreveu ao Patriarca Ecuménico Bartolomeu de Constantinopla com uma reflexão muito atual e robusta examinando as implicações mais profundas de pandemia para a Igreja.

A editora Paulinas publicou a carta com o título O sinal das igrejas vazias – para um cristianismo que volta a partir. (A publicação em livro eletrónico pode ser descarregada gratuitamente aqui).

Halík escreve que o confinamento da prática da fé cristã é um teste importante: «creio que devíamos, sim, pôr à prova a veracidade das palavras de Jesus: “Onde estão dois ou três reunidos no meu nome, aí estou Eu no meio deles”.»

E nota: «podemos, naturalmente, aceitar esta Quaresma de igrejas vazias e silenciosas, simplesmente como uma breve medida temporária que, em breve, será esquecida».

Mas apresenta uma alternativa: «Mas também podemos aproveitá-la como Kairós: um momento oportuno para nos “fazermos ao largo” e procurar uma nova identidade para o Cristianismo, num mundo que muda radicalmente sob os nossos olhos».

Como vai ser a nova normalidade pós-pandémica na Igreja? Vamos retomar a vida eclesial onde ficou suspensa ou vamos explorar novos caminhos?

Halík nota que «talvez este tempo de edifícios eclesiais vazios ponha simbolicamente em evidência o vazio escondido nas Igrejas e o seu possível futuro – se não fizermos uma séria tentativa de mostrar ao mundo um rosto do Cristianismo completamente diferente». O itálico é dele.

Jesus pensou a Igreja em ponto pequeno. Fala dos seguidores como «pequeno rebanho» (Lucas 12, 32) e define-os no Sermão do Monte em dois termos essenciais: sal da terra (Mateus 5, 13) e luz do mundo (Mateus 5, 14). E compara o Reino de Deus ao fermento (Lucas 13, 21).

Três imagens que pedem moderação: sal a mais faz mal, luz a mais queima, fermento a mais estraga a massa.

O cristianismo passou de uma Igreja doméstica ou localizada (à volta da família e das famílias vizinhas) às grandes massas da cristandade. Passou de uma Via (Actos 9, 2), um caminho de vida, à religião cultual com ritos e rituais e os respetivos controles e controladores.

O Concílio Vaticano II recuperou a teologia da Igreja doméstica. Por outro lado, as comunidades eclesiais de base (na América Latina) e as pequenas comunidades cristãs (na África) são passos (criticados por tradicionalistas) para devolver a comunidade cristã ao essencial.

A pandemia fechou-nos em casa. Voltamos à liturgia doméstica com a ajuda da internet, da televisão, de subsídios vários, liturgia confinada às quatro paredes do lar, mas aberta ao mundo inteiro.

No fim de maio, quando as igrejas abrirem de novo as portas à liturgia coletiva, vai-se integrar a experiência de igreja ministerial, igreja de serviços múltiplos levados a cabo por pessoas diferentes, ou voltar ao clericalismo centralizador e controlador?

As missas ao ar livre – que a Conferência Episcopal Portuguesa sugere – serão parábola de uma igreja em saída do próprio confinamento físico, aberta às realidades humanas que a cercam?

As liturgias em formato reduzido para manter o distanciamento social e a cerca sanitária à volta de cada participante preconizam novos modos de celebrar a presença de Deus no meio do seu povo?

8 de maio de 2020

NADA TE PERTURBE


Durante a última ceia Jesus disse aos discípulos entristecidos: «Não se perturbe o vosso coração».

Repete-o a ti e a mim nos tempos conturbados que vivemos, perturbados pelo medo do novo coronavírus, da doença, da insegurança, da falta de emprego, da fome, da morte…

Fiz uma pesquisa no aplicativo da Bíblia dos Capuchinhos e descobri que o imperativo «não temais», «não tenhais medo» no singular e no plural aparece pelo menos 125 vezes na Bíblia do Livro do Génesis (15,1), o primeiro livro da Bíblia, ao Apocalipse (2.10), o último.

Não temas é o grande pregão que atravessa as Escrituras cristãs, o imperativo de Deus a cada um de nós, hoje.

Ter medo é um sentimento natural de autopreservação, uma espécie de preservativo que nos livra de situações perigosas, um grito de alarme, às armas.

O Dalai Lama e o Arcebispo Desmond Tutu publicaram um livro-entrevista sobre a alegria.

O líder espiritual tibetano diz: «Na verdade, o medo faz parte da natureza humana; é uma resposta natural que surge face ao perigo».

E tem um modo de ser trabalhado: «Com coragem, quando de facto surge o perigo, poderão ser mais destemidos, mais realistas. Por outro lado, se deixarem a vossa imaginação à solta, exacerbam a situação, o que gera mais medo».

Com coragem: agir com o coração a partir do Coração de Deus.

Coragem que Nelson Mandela também invoca: «Aprendi que a coragem não era a ausência de medo, mas o triunfo sobre ele. Senti medo mais vezes do que aquelas que consigo recordar, mas escondi-o sob a máscara da ousadia. O homem valente não é aquele que sente medo, mas aquele que conquista o medo».

Daniel Comboni também experimentou o medo. Dois meses antes de deixar Santa Cruz, a missão no Sudão onde havia chegado há nove meses, no meio de problemas que desafiavam os missionários, escreveu ao pai:

«A miséria humana esforça-se por nos tirar a paz do coração e a esperança de uma vida melhor; e nós, ao lado de J. C. crucificado, que padeceu por nós, exultamos no meio da má sorte, mantendo intacta essa paz preciosa que só ao pé da cruz e no pranto pode encontrar o verdadeiro servo de Deus.»

E remata: «Estamos no campo de batalha, repito, e é preciso lutar como valentes. Os grandes prémios e triunfos não se alcançam senão por meio de grandes fadigas, pesar e sofrimentos. Sirva-nos, pois, de acicate e de consolação a grandeza do prémio que nos espera no Céu e não nos perturbe nem atemorize a grandeza e dificuldade do combate.»

Mais tarde escreve que o medo não o afeta: «Comboni não tem medo de nada: nem das tormentas de Roma, nem dos temporais do Egipto, nem as nuvens de Verona. Tenho do meu lado os corações de Jesus e de Maria e isso me basta.»

É a fé que o sustenta: «a obra da conversão e regeneração dos negros será fundada, apesar de todos os obstáculos do inferno, porque a cabeça de Cristo é mais dura que a do Diabo. Coragem e Deus estará connosco.»

E aconselha os seus missionários a afinar pela mesma nota: «o verdadeiro apóstolo não deve ter medo de nenhuma dificuldade, nem sequer da morte. A cruz e o martírio são o seu triunfo.»

A confiança e a paz de coração que Comboni experimentou ao longo da sua vida tinham uma raiz mariana.

Ele vivia com três colegas numa aldeia da tribo dinca e queriam abrir uma missão entre o povo chiluque, mas o rei não deixou. Aliás, ameaçou os missionários.

Comboni escreve: «Nunca se pode ter medo quando vela por nós com piedoso afã Aquela que se denomina Rainha dos Apóstolos.»

E pergunta: «como estaria de braços cruzados a nossa Mãe e não havia de socorrer quatro filhos seus que procuram dá-la conhecer e amar por aquelas bárbaras gentes, entre as quais jamais brilhou a luz da verdade e nunca foi implantada a Cruz de seu divino Filho?».

Com Teresa de Ávila, rezamos os nossos medos em tempos de pandemia global: «Nada te perturbe, nada te espante, tudo passa. Deus não muda. A paciência tudo alcança. Quem a Deus tem nada lhe falta: só Deus basta!»

6 de maio de 2020

África: DESAFIOS DA COVID-19


A prevenção é a arma africana contra o novo coronavírus.
Em África, o primeiro caso positivo de covid-19 foi registado a 14 de Fevereiro de 2020 no Egipto num estrangeiro assintomático. A 20 de Abril, o novo coronavírus tinha chegado à maioria dos países africanos – excepto Lesoto e Comores – com 22 313 casos confirmados e 1124 vítimas mortais (dados oficiais da OMS). A África do Sul era o país com mais casos registados (3158), enquanto a Argélia arrolava o maior número de óbitos (375).

A maioria dos Estados africanos tem serviços de saúde muito frágeis e estruturas sanitárias pobres. Há hospitais que nem electricidade têm quanto mais ventiladores e oxigénio. Depois, o continente regista uma incidência alta de malária, sida e tuberculose e tem problemas de nutrição. Por isso, a palavra de ordem dos governos tem sido, desde o princípio, prevenir e prevenir com medidas bastante agressivas, incluindo o recolher obrigatório, impostas muitas vezes à bastonada e mesmo à bala pelas forças de segurança.

O missionário comboniano P.e Francisco Machado vive em Acra, a capital do Gana. Escreve que o Governo «está a enfrentar esta emergência causada pela covid-19 com cuidado e firmeza», decretando o estado de emergência nas três zonas mais povoadas do país.

As campanhas de prevenção incluem a lavagem das mãos e a distância social, que é difícil de manter sobretudo em bairros pobres sobrelotados. Por outro lado, muitas famílias sobrevivem por meio de negócios informais nos passeios das ruas e das estradas.

A resposta à pandemia tem sido coordenada pelo Centro de Controlo de Doenças da União Africana – que oferece assistência técnica e aconselhamento aos governos – e pelos blocos regionais. China e Cuba ajudam com pessoal de saúde e os Chineses com meios. Banco Mundial, Fundo Monetário Internacional e Banco de Desenvolvimento Africano financiam fundos de emergência. Há governos que fecharam totalmente as fronteiras dos seus países; outros colocaram em cerca sanitária as zonas mais atingidas. As escolas e espaços públicos também fecharam, mas no Burundi ainda se disputa o campeonato de futebol.

A economia africana, que registava uma vitalidade saudável, está a ressentir-se com a pandemia. Com um terço da humanidade entre portas e aviões em terra, o consumo diminuiu bastante e as indústrias das flores, pescas, agricultura, mineração e turismo não têm mercado nem conseguem escoar a produção.

Os meios de comunicação social e sobretudo os telemóveis estão na linha da frente no combate do novo coronavírus com campanhas de prevenção e de informação contra notícias falsas. No Uganda, algumas vendedoras da capital usam o aplicativo Market Green para fornecer clientes de casa a casa para evitar contacto social. Na Nigéria, o ensino é feito via rádio.

Os dirigentes religiosos fecharam igrejas e mesquitas e organizam campanhas de jejum e oração em família, recorrendo às transmissões na Internet. Contudo, protestos violentos obrigaram o presidente da Tanzânia a manter as mesquitas abertas. Na Gâmbia e na Nigéria, os planos para a peregrinação a Meca estão suspensos.

A África tem uma população muito jovem e o clima geralmente é bastante quente. Espera-se que estes dois factores sirvam de travão ao novo coronavírus no continente.

5 de maio de 2020

PRESENTE LINDO


Os judeus sentiram alguma dificuldade em «encaixar» Jesus nas suas expetativas. Num dezembro frio, enquanto Jesus aquecia o corpo a caminhar no Pórtico de Salomão, uma das divisões do grandioso templo de Jerusalém, atiram-lhe: «Até quando nos manterás em suspenso? Se Tu és o Cristo, diz-nos com clareza».

Jesus pede que reparem nas obras que faz em nome do seu Pai. Explica que não acreditam nele, porque não são «das suas ovelhas». E aclara que foi o Pai que lhe deu as ovelhas.

Jesus não vê os seus seguidores como um rebanho, uma nebulosa, um coletivo, mas como ovelhas singulares, concretas que são um presente que o Pai lhe fez.

Tu e eu somos um presente lindo que Deus fez a Jesus e que Jesus – que não é soberbo – partilha: faz-nos presentes uns para os outros.

Quando olhas alguém nos olhos estás a contemplar um presente lindo que Jesus te deu.

Há algumas pessoas que me tratam por anjo. Amigo, amado, bom: são alguns dos adjetivos que ajuntam. Confesso que sinto algum incómodo ao ser tratado assim. Não me considero nada angelical. Mas aprendi a aceitar esse tratamento como um carinho de Deus.

Anjo vem do verbo grego enviar.

Cada pessoa é um enviado de Deus, seu embaixador, é um anjo, presente lindo que Deus nos dá porque nos ama assim. Não somos ilhas, somos pertença uns dos outros.

A nossa beleza e a nossa fragilidade encontram-se nesta imagem.

Os anjos normalmente são pintados com duas asas. As asas que o Senhor me deu para ser seu anjo lindo são a graça e a misericórdia. Sem elas não vou a lado nenhum… Não voo na ternura de Deus.

Agradece à Trindade boa por nos oferecer uns aos outros como presença da ternura de Deus, sacramento do carinho que tem por cada uma e um de nós, que tem pelo Filho a ponto de fazer de cada pessoa um presente lindo.

4 de maio de 2020

BOM E BELO


A beleza, tal como a bondade, é caminho seguro para Deus.

O P. Adelino Ascenso, superior geral da Sociedade Missionária da Boa Nova e missionário no Japão, escreveu a tese de doutoramento sobre a teodiceia transcultural na obra literária de Shūsaku Endō, um novelista católico japonês que aprecio.

A dada altura, sublinha a dificuldade de anunciar Jesus Cristo numa cultura que não acomoda uma ética pessoal.

Fiquei a remoer este desafio desde que li a excelente dissertação: como anunciar o evangelho numa cultura sem balizas éticas pessoais? É uma questão muito atual. No ocidente, as referências éticas externas ou desapareceram ou estão a esfumar-se: cada pessoa é a sua própria referência moral.

Por outro lado, dados sociológicos descrevem a beleza e a comodidade como grandes linhas que guiam as escolhas da juventude de hoje.

Há uma alternativa ao bem e ao bom como imperativo ético de um itinerário para chegar a Deus? Há sim! A beleza é uma alternativa viável. Vejamos!

Jesus, no capítulo décimo do Evangelho de João, fala de si próprio como o bom pastor. O texto grego usa o adjetivo kálos. Tanto pode ser traduzido por bom como por belo. Aliás, como Tov, o adjetivo correspondente em hebraico. Daí que hoje seja corrente hoje falar de Jesus como pastor bom e belo.

Kálos, bom e belo, indica que a ética (bondade) e a estética (beleza) se equivalem e completam como itinerários pessoais e comunitários para chegar a Deus, para recuperar o sentido de Deus, hoje.

Paulo escreve aos Romanos que o que de Deus pode ser conhecido, nomeadamente o seu eterno poder e a sua divindade, está presente nas suas obras desde a criação do mundo (1, 19).

No mesmo sentido, o Papa Francisco fala da natureza na encíclica Louvado sejas sobre a nossa casa comum como «um livro esplêndido onde Deus nos fala e transmite algo da sua beleza e bondade» (nº 12).

Este é também o pensar do fundador dos Missionários Combonianos. Daniel Comboni esteve na África pela primeira vez entre fevereiro de 1858 e janeiro de 1859. Numa longa carta ao pai escreve a beleza extasiante da viagem Nilo Branco acima de Cartum até Santa Cruz, no Sudão.

A dada altura descreve o espetáculo ímpar de milhares de belas aves íbis a observar, tranquilas, das copas das árvores a passagem do barco dos missionários. E remata: «aquilo foi um motivo para exaltar a grandeza de Deus que com tanta sabedoria e poder pensa também nesses animais».

A beleza como catecismo está sobejamente ilustrada na história da arte cristã.

Para facilitar o encontro das novas gerações com o Senhor da Vida pede-se menos julgar e mais contemplar: a troca do olhar utilitário e moral pelo místico para explorar o imperativo estético como percurso teológico e caminho seguro para Deus.

O Principezinho explicou à raposa que tinha um segredo: «só se vê bem com o coração. O essencial é invisível aos olhos».

Gosto muito de caminhar e fiz com a minha sobrinha mais nova todos os percursos pedestres do rio Bestança, na vertente norte da Serra do Montemuro.

Quanto chegávamos a um daqueles pontos de beleza extrema eu dizia: «Tininha, glória ao Pai e ao Filho e ao Espírito Santo». Ela respondia com o resto da pequena oração. A Trindade santa extasia-nos com a beleza da sua criação.

Foi com o olhar do coração que Francisco de Assis escreveu o Cântico das criaturas e agradece pelo irmão sol, belo e radiante, com grande esplendor: imagem do Altíssimo.

O anúncio cristão precisa de novas roupagens quando a espiritualidade pessoal é mais importante que o culto comunitário e a juventude tem dificuldade em entender um discurso sobre Deus construído sobre obrigações e interditos.

A beleza, o imperativo estético, também é GPS para os caminhos de Jesus, o pastor bom e belo.

3 de maio de 2020

PALAVRA + PORTA + VIDA


O QUARTO DOMINGO DA PÁSCOA chama-se do Bom Pastor, porque a liturgia nos serve o capítulo décimo de São João – intitulado Jesus, porta e bom pastor – em três porções.

Hoje saboreamos os primeiros 10 versículos.

Jesus começa por explicar que há duas maneiras de entrar no redil das ovelhas: o pastor entra pela porta enquanto o ladrão sobe por outro lado. Está a dar uma alfinetada aos fariseus que lideravam o povo de Deus como salteadores ou como mercenários.

Jesus explica que há uma ligação afetiva entre o pastor e o rebanho: as ovelhas conhecem a voz do pastor e o pastor sabe o nome de cada ovelha.

Nós, o rebanho do Senhor, conhecemos a voz de Jesus através dos Evangelhos. Ele conhece cada um de nós pelo nome, sabe quem somos e do que precisamos. Não somos rebanho. Somos ovelhas, às vezes carneiros também, com nomes próprios, pessoas únicas.

O bom pastor é o último a sair do redil e o primeiro a abrir caminho. Não deixa ninguém para trás e arrepia caminho, caminha connosco à nossa frente, mas quando é preciso também está ao nosso lado.

Depois, Jesus proclama: «Eu sou a porta das ovelhas».

Uma porta franqueada, escancarada para dentro e para fora em circulação livre. Jesus não encurrala ninguém: acolhe quem entra e despede-se de quem quer mudar de aprisco. Respeita a liberdade de cada ovelha.

E repete: «Eu sou a porta: se alguém entrar através de mim será salvo; entrará e sairá e encontrará pastagem. Eu vim para que tenham vida e a tenham em abundância».

Por natureza torço o nariz a espiritualidades de negação com asceses exageradas. Há-as e respeito quem as pratica. Mas eu prefiro viver bem a vida, com gosto e alegria, na totalidade para poder dar vida, mais e melhor.

Ninguém tira água de um poço seco!

O Papa Francisco inicia a exortação apostólica Cristo vive que escreveu para os jovens e para todo o povo de Deus com as palavras: «Cristo vive e quer-te vivo».

Quando andava na catequese, era costume neste dia organizar-se uma homenagem ao senhor abade no salão paroquial. Afinal, ele é o nosso pastor segundo o coração de Deus.

Havia o costume de lhe oferecermos um ramalhete espiritual feito de orações, jaculatórias, visitas ao Santíssimo e sacrifícios e outros ingredientes que não recordo.

Hoje o que os párocos precisam é da nossa amizade e do nosso carinho para continuarem a dispensar a vida que Jesus dá com alegria e com vida.