27 de março de 2013

SEIS MILHÕES


Enquanto estava fora do gabinete para almoçar
alguém roubou seis milhões na minha gaveta!
A notícia foi dada pelo portal parisiense Sudan Tribune mas atravessou as páginas sociais à velocidade da luz: alguém roubou seis milhões de Libras sul-sudanesas e Dólares americanos – qualquer coisa como 1.2 milhões de Euros – do escritório do Presidente da República no fim-de-semana passado. A notícia foi dada por um colaborador do presidente que por razões óbvias falou sob anonimato. Ele disse que as autoridades queriam manter as investigações sob segredo para evitar embaraços maiores.

A minha primeira reação foi Isto não pode ser verdade! O Sudan Tribune é famoso por algumas cabalas! Mas lembrei-me da confidência de uma militar americana que estava a treinar os guerrilheiros convertidos em generais: ela disse-me que eles guardavam enormes somas de dinheiro em baús de metal e não faziam segredo disso porque não confiavam nem nos bancos nem no Estado.

Depois há a questão logística: seis milhões em notas de cem libras – a maior denominação em circulação– são sessenta mil notas. Se foram empacotadas em pacotes de cem dá seiscentos pacotes. O que na verdade não é assim tanto quando se tem um fim-de-semana para a operação de transferência de valores.

A confirmação apareceu na página do FaceBook do Ministro da Informação Barnaba Marial Benjamin - que também é o porta-voz do Governo. Sem se referir diretamente ao roubo disse que a segurança do presidente nunca esteve em perigo e apelou à calma porque as investigações já tinham começado para levar os culpados à justiça.

Claro que o roubo não deixa de levantar questões pertinentes: o que é que Salva Kiir Mayardit faz com tanto dinheiro no gabinete enquanto o Estado está fortemente condicionado por um orçamento de austeridade e muitos trabalhadores públicos estão com os salários em atraso? 
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PS: no fim do dia o Gabinete do Presidente imitou um comunicado a corrigir o montante roubado: 176.196 Libras sul-sudanesas e 14,000 Dólares americanos – qualquer coisa como 46 mil Euros - dinheiro destinado aos salários aos condutores e agentes de manutenção da presidência sem conta bancária!

24 de março de 2013

PEREGRINAÇÃO

Oitenta pessoas participam na peregrinação a Santa Cruz-Pan Nhom, organizada pelos Missionários Combonianos no âmbito do Ano da Fé. A maioria eram jovens das missões combonianas de Lomin, Tali, Mapuordit e Yirol, a comunidade anfitriã. Havia ainda uma dúzia de combonianas e combonianos mais um padre Fidei Donum da Coreia do Sul e um voluntário italiano.
Daniel Comboni mais cinco companheiros chegaram a Santa Cruz em Fevereiro de 1858, mas tiveram que abandonar o lugar 11 meses depois derrotados pela doença e morte.

A peregrinação começou a 12 de Março com a apresentação dos participantes e partilha de expectativas. Queríamos fazer memória de São Daniel Comboni e companheiros, celebrar o Ano da Fé e rezar pela eleição do novo papa que decorria no Vaticano e pela paz e reconciliação no Sudão do Sul.

No primeiro dia visitámos três capelas da paróquia de Santa Cruz de Yirol: Nyang, Nom Lau (um campo de retornados) e Biling. Nas duas primeiras rezámos juntos e o pároco, José Parladé, benzeu a estrutura da capela para os refugiados.

Em Biling fomos recebidos por mais de 1,000 pessoas. Imolaram um bode – que tivemos de saltar por cima à maneira Dinka de dar as boas-vindas – seguindo-se a recepção oficial debaixo de uma enorme árvore da família do mogno. As autoridades locais agradecerem a igreja e a escola primária com oito salas construída pelo padre Parladé e pediram a Deus que conservasse o comboniano espanhol por mais trinta anos. Também pediram um hospital, trabalho para as mulheres, um centro juvenil, um jardim infantil, poços… O único oficial que não pediu nada ofereceu talhões a quem quisesse construir casa em Biling. No final, almoçamos todos juntos e a equipa dos peregrinos jogou uma partida de futebol contra os locais e perdeu por quatro a dois. O dia encerrou com a eucaristia, o jantar e o visionamento de um filme sobre o patriarca José.

No segundo dia, depois da oração da manhã e do pequeno-almoço (chá e biscoitos), dirigimo-nos para Malek para rezar com a comunidade e fazer a celebração do perdão. A segunda paragem foi Lam Atot onde outro bode foi morto para dar as boas-vindas ao grupo.

Lam Atot é a comunidade mais distante da paróquia – a mais de hora e meia de carro – e só tem uma pequena estrutura de zinco e palha. A escola primária funciona debaixo das árvores. Depois do almoço, passámos a tarde a descansar e os mais jovens a jogar. O dia concluiu com a missa, janta e um filme sobre Jesus, em Dinka. De noite caíram umas pingas grossas que causaram algum alvoroço entre os peregrinos a dormir a céu aberto.

O terceiro dia começou às cinco da manhã: era o dia da caminhada para chegar a Pan Nhom e havia que começar cedo para não sermos derrotados pelo sol. Depois da oração da manhã e do pequeno-almoço, a caravana de dois camiões e quatro todo-o-terreno dirigiu-se para Pan Nhom. Primeiro problema: um pneu do camião de apoio foi cortado e o veículo ficou pelo caminho. Depois de uma hora de viagem – os guias diziam que 35 minutos chegavam – atingimos o fim da picada e ao princípio do pantanal. Deixámos os carros e começámos a jornada a pé. Os guias diziam que em duas horas estávamos em Pan Nhom mas quatro horas depois a caminhar sobre lama negra e pegadiça – que nos «roubava» o calçado – ou com a água pela cintura, chegámos ao segundo ponto de descanso – e ainda estávamos a quase duas horas do objectivo.

Era meio-dia e as contas eram fáceis de fazer: precisávamos de umas nove horas para chegar a Pan Nhom, estar lá um bocadinho e voltar aos carros – o que nos obrigava a caminhar no pântano durante a noite, comidos pelos mosquitos e sem luz para ver o caminho. E como a caminhada era supostamente curta não havia nem água nem comida. Quarenta e dois decidimos que era melhor ficar por onde estávamos. Trinta e oito, contudo, insistiram em chegar a Pan Nhom, incluindo o padre Michael Barton. 
Os que ficámos celebraram a Eucaristia debaixo de uma acácia. Na homilia falei de Santa Cruz e do sonho africano que virou pesadelo: o entusiasmo dos primeiros meses entre os dinkas e a derrota da malária. Mas também a capacidade de aprender com o fracasso e elaborar um plano global para a evangelização da África – que funcionou. Enfim, na vida não há becos sem saída nem experiências perdidas.

Depois da missa iniciamos o caminho de retorno: mais penoso e lento, porque as forças faltavam. Mas chegámos!

Para mim a caminhada de oito horas foi uma experiência de solidariedade e cuidado muito forte: jovens – moços e moças – preocupavam-se com os mais velhos, acompanham-nos, davam-nos a mão, uma palavra de encorajamento. Também foi bonito ver alguns pássaros e caminhar no Sudd, uma das zonas húmidas maiores do mundo, e sentir o silêncio cheio de vida. De animais grandes, só vimos os excrementos de um elefante.

Às oito e meia estávamos de volta a Yirol para descobrir que tínhamos um Papa novo que escolheu o nome de Francisco e veio da Argentina. Depois de um bom duche e da janta foi xixi-cama. O grupo que foi até Pan Nhom chegou às três da manhã.
A 15 de Março, aniversário de Daniel Comboni, encerrámos a peregrinação com uma missa de ação de graças por tudo ter corrido bem e pelo Papa Francisco. O ambiente era de festa apesar do cansaço. Uma peregrinação que se tornou parábola de vida.

10 de março de 2013

PEGADAS



Um grupo de mais de setenta pessoas junta-se na segunda-feira em Yirol, Estado de Lakes, no Sudão do Sul, para uma peregrinação a Santa Cruz, a missão a que Daniel Comboni mais cinco colegas do Instituto Mazza chegaram a 14 de Fevereiro de 1858. Um mês e meio depois, um dos membros da expedição morre e, a 15 de Janeiro de 1859, os sobreviventes, com grandes problemas de saúde, abandonam definitivamente a missão entre os Dinkas.
Não se sabe ao certo onde Santa Cruz era. Foi construía  na margem do Nilo Branco a 6º 40’ de Latitude Norte mas em 155 anos o rio mudou de curso. Há um lugar chamado Kenisa – Igreja, em árabe – que podia ser o lugar da missão mas o comboniano espanhol José Parladé está convencido depois de algumsa investigações junto da comunidade local que a missão seria em Pan Nhom, onde recentemente construiu uma capela.
A peregrinação a Santa Cruz sob o tema «Mil vidas para a missão… nas pegadas de São Daniel Comboni» insere-se no programa do Ano da Fé da Província comboniana do Sudão do Sul e os participantes – na maioria jovens – vêm das missões combonianas de Yirol, Mapuordit e Tali e também de Rumbek. Algumas missionárias e missionários também vão participar juntamente com os três pré-postulantes que começam a caminhada formativa em Abril.
A peregrinação é feita de camião – os primeiros dois dias – e a pé, o terceiro dia em que contamos dormir em Pan Nhom, ou Santa Cruz. Os peregrinos vão passar algum tempo a rezar e a conviver com os cristãos das capelas que se encontram a longo do percurso.
Os peregrinos vão rezar pela proteção, paz, justiça e reconciliação para o Sudão do Sul e do Sudão para um futuro comum e pacífico. Também vão rezar pelos 115 cardeais que vão escolher o novo papa.
A peregrinação a Santa Cruz foi planeada pela primeira vez em 2010 pelo falecido Bispo César Mazzolari de Rumbek – que queria erguer no local uma cruz comemorativa – mas foi adiada devido à insegurança provocada por rixas entre as comunidades Dinka e Nuer na zona.

4 de março de 2013

QUÉNIA DECIDE



A 4 de Março, o Quénia vai a eleições gerais. As últimas eleições em 2007 deixaram o país à beira da guerra civil. Em pouco mais de dois meses os conflitos em diversos pontos do país deixaram mais de 1300 mortos e quase 700.000 deslocados.
Cinco anos depois, pouco foi feito para reconciliar o país e ninguém foi declarado culpado por qualquer dos crimes cometidos. Por pressão internacional, o sistema eleitoral bem como a Comissão Eleitoral e leis eleitorais, consagradas na nova Constituição aprovada em 2010, foram passos significativos para que se possam realizar eleições justas, corretas e pacíficas!
Mas na mente da maioria dos quenianos e principalmente da grande maioria dos políticos, os velhos métodos de compra de votos, intimidações, violência e fraudes eleitorais continuam na ordem do dia, mormente nas zonas rurais.
Antevê-se uma segunda volta para a eleição presidencial.
Pela primeira vez, cada um dos pouco mais de 14 milhões de votantes registados são chamados a eleger de uma assentada seis cargos políticos: presidente, governador civil, senador, membro do parlamento de cada concelho, representante feminina na assembleia concelhia e concelheiro de cada aldeia na assembleia concelhia! Até agora os quenianos apenas elegiam o presidente do país e o membro parlamentar. Todos os outros cargos políticos governativos eram "distribuídos" pelas filiações e amizades políticas.
A grande questão que se põe neste momento é esta: estão os quenianos preparados para uma transição eleitoral tão complexa como esta? Certamente que não, especialmente nas zonas rurais! Educação cívica e eleitoral foi inexistente nas zonas rurais. Aparte de uma campanha de educação cívica e eleitoral mais ou menos elaborada através da TV, nada mais foi feito! A grande maioria dos quenianos a viver nas zonas rurais não tem acesso à TV. As rádios foram deixadas à sua própria iniciativa no que respeita a sensibilização e educação cívica eleitoral, o que degenerou, em vários casos, no apoio a determinados candidatos em base de escolha tribal. Muita da violência em 2007/2008 foi instigada pelas rádios locais com forte inspiração tribal.
Finalmente, e segundo as muitas e suspeitosas sondagens, o maior número de votos é entregue a dois candidatos: Uhuro Kenyata e Raila Odinga. O primeiro é filho do primeiro presidente do Quénia. Tanto ele como o seu vice-presidente estão acusados de crimes contra a humanidade no tribunal internacional de Haia, cometidos nas últimas eleições! O segundo candidato é o atual primeiro-ministro e concorre a presidente pela terceira vez. Pertence a uma família e tribo – os Luo - que nunca teve a presidência do país. Não é segredo nenhum para qualquer queniano atento que a administração americana e mesmo a EU preferem este candidato. Obviamente, os outros candidatos chamam a este apoio camuflado um novo colonialismo! Há aqui uma sede de poder nunca alcançado por esta tribo, o que nunca é um bom prenúncio.
As eleições primárias dos partidos para eleger os candidatos de cada partido aos vários cargos governativos foram marcados por violência, fraudes eleitorais e muita confusão nas nomeações. Tal facto prova que mesmo com leis novas e reformuladas de acordo com a nova Constituição, não são suficientes para evitar o caos! É preciso que as mentalidades mudem também, o que não é o facto para a grande maioria!
Em preparação para estas eleições o país testemunhou sinais preocupantes que também antecederam as últimas eleições em 2007: alterações à Constituição para acomodar interesses políticos, lutas tribais em pelo menos zonas zonas do país e que fizeram mais de 200 mortos, entre eles quase 50 polícias, assassinato de três políticos que pretendiam concorrer a postos governativos distritais e o caos já mencionado das eleições partidárias primárias.
Para que um candidato presidencial seja eleito na primeira volta, ele necessita de 50 porcento dos votos mais um. Este é um cenário pouco provável à primeira volta, pelo que se espera uma segunda volta dentro de 30 dias.
Aquilo que o mundo espera é que, seja qual for o resultado eleitoral, o descalabro das últimas eleições não se repita! É isso que vos convido a pedir comigo e com os 40 milhões de quenianos: eleições pacíficas, livres e verdadeiras!
Padre Filipe Resende
Missionário Comboniano
Kacheliba - Quénia