Encontrei-me com
sul-sudaneses pela primeira vez em 1999 nos desertos inóspitos que asfixiam
Cartum. Tinham fugido da guerra pela autodeterminação que grassava no Sul sem
dó nem piedade.
Um colega que sabia como
furar o bloqueio de postos de controlo da polícia à volta de Cartum, levou-me a
visitar os deslocados em Jabarona. Fiquei impressionado com a capacidade de
sofrimento e de resistência de gente votada ao desprezo porque eram negros –
escravos, como a elite árabe teima em lhes chamar.
Gente habituada às
florestas equatoriais, às planícies verdejantes e aos rios do Sul sobreviviam
num ermo sem fim de terra ressequida, perseguida pelos islamistas, mas sem
baixarem os braços.
Entretanto, em Dezembro
de 2006, a vida trouxe-me para Juba, a capital do Sul do Sudão, para integrar como
director de informação uma equipa de combonianas e combonianos encarregada de montar
a rede de rádios católica do Sudão.
O Sudão do Sul tem mais
de seis vezes o tamanho de Portugal. A população ronda os 8,3 milhões. Quase
cinquenta anos de guerras civis (1955-1972 e 1983-2005) mataram 2,5 milhões e
deslocaram mais de quatro milhões. Metade da população tem menos de 33 cêntimos
de Euro para gastar por dia. A guerra destruiu a rede de saúde e o sistema
escolar: três quartos são analfabetos.
O sul do São é território
fértil para um sem número de doenças endémicas: malária, tifo, cólera, kala
azar, febre-amarela, cegueira dos rios, meningite… A médica das consultas para
viajantes fez uma cara muito feia quando lhe indiquei no Atlas o meu destino
final.
Apesar de tudo, os Sudaneses
do Sul chamam à sua terra paraíso e lutaram meio século pelo direito à
autodeterminação.
Os povos do sul, um
mosaico de mais de sessenta tribos negras, cristãos e seguidores das religiões
tradicionais, não foram tidos nem achados quando a administração colonial
egípcio-britânica decidiu dar a independência ao país e entregaram o poder às
elites árabes e muçulmanas do Norte a 1 de Janeiro de 1956.
Finalmente a oportunidade
de marcarem encontro com a história e dizerem o que queriam como povo aconteceu
com o tratado de paz negociado entre o governo de Cartum e os rebeldes do SPLA
(o exercito de libertação do povo do Sudão) em 2005 que consagrou o direito ao
referendo de autodeterminação.
O plebiscito decorreu de
9 a 15 de Janeiro deste ano. O governo de Cartum usou todos os truques que
tinha na manga para descarrilar o processo, mas os sulistas cerraram fileiras e
defenderam com paciência e constância o direito ao voto. A comissão encarregada
da auscultação popular pôs o processo a funcionar em três meses e o referendo
foi proclamado como evento paradigmático pela ONU e pela comunidade
internacional pelo modo como decorreu.
O circo mediático foi
desmantelado em poucos: os jornalistas esperam sangue e morte – como aconteceu
nas eleições do Quénia – mas os sul-sudaneses mantiveram-se unidos e vigilantes
para defenderem o seu referendo.
Houve muita gente que
passou a noite inteira nos centros de voto em autêntica vigília. As filas eram
longas sob um sol escaldante e impiedoso, mas os cidadãos esperavam
pacientemente pela vez de escolher o seu destino comum com a devoção de quem
faz fila para a comunhão.
Depois de marcarem o
boletim com o dedo e de o dobrar, uns beijaram-no antes de o colocar na urna,
outros chamavam, havia quem dançasse e ululasse… Uma explosão de alegria com o
sentido de que finalmente se reencontraram com o seu futuro.
Mamã Rebecca Kadi
Loburang foi uma dessas pessoas Apesar dos seus lindos 115 anos de idade, ela
fez questão de votar. Vestiu-se de branco, qual noiva adornada para o grande
encontro, e pediu à família que a levasse à mesa de voto numa cadeira de rodas.
No final disse aos
jornalistas através da neta que veio votar pela independência porque queria
deixar um Sudão do Sul melhor e mais pacífico para as novas gerações!
Foi a aurora de
ressurreição no Sul do Sudão, uma paz de novo ameaçada pelas nuvens negras do
conflito por uma mão-cheia de senhores da guerra que preferem o poder ao bem
comum: desde o refendendo mais 800 pessoas foram mortas em conflitos
localizados e dezenas de milhares deslocadas.