Faz dois meses que os pais partiram: o Ti Amadeu depois do meio-dia de domingo, 10 de dezembro, a Ti Livina depois das 04h00 de segunda, 11.
Tinha falado com eles por vídeo-chamada na sexta-feira anterior e estavam tão bem. O pai recuperava de uma infecção no hospital de Penafiel e falou da alta iminente. Entretanto, A mãe foi levada para o São João, no Porto, no dia 9, para exames depois de uma queda em casa.
O coração do pai, depois de 89 anos de trabalhos e canseiras, entrou em falência. Conforme ele piorava em Penafiel a mãe — que não acusou nenhuma lesão da queda — começou a piorar de uma pneumonia que contraiu durante o breve internamento hospitalar. Parecia que, apesar da distância entre Penafiel e o Porto, os dois comunicavam entre si. Depois de 66 anos de casados nem a morte os separou. A mãe acabou transferida para Penafiel pouco antes de falecer.
Durante o velório e nos dias que se seguiram, muitas pessoas falaram da beleza deste amor, do lado romântico do seu finamento. Os meus amigos gujis, com quem partilho o diário viver no sul da Etiópia, também disseram o mesmo: casal enterrados juntos na mesma sepultura é sinal de um amor enorme.
A missa de corpo presente, presidida pelo senhor bispo de Lamego, o meu amigo D. António Couto, e animada pelo coro de cerca de três dezenas de padres do clero de Lamego e Guarda e do Instituto Comboniano a que pertenço, foi uma sentida homenagem aos pais por uma igreja a abarrotar de familiares e amigos.
Todavia, ficar órfão de pai e mãe em menos de 24 horas é uma experiência avassaladora. Quando soube que o pai faleceu através da chamada dominical costumeira fui chorar para trás da igreja da missão.
Soube da morte da mãe por volta das 16h00 quando cheguei a Adis-Abeba, a Nova-Flor que é a capital etíope.
A notícia tinha chegado muito antes, mas tinha os óculos de ler no saco de viagem e só abri o telemóvel depois de oito horas para cobrir os cerca de 450 quilómetros que separam Qillenso — onde vivo — da capital. Os meus olhos transformaram-se na nascente de um rio de dor.
Veio ainda a incerteza de que talvez não conseguisse participar nos funerais devido a problemas burocráticos com a renovação do meu cartão de estrangeiro residente na Etiópia.
Porém, graças ao empenho do meu provincial e de outras pessoas para conseguir autorização para deixar o país e ao adiamento dos funerais por um dia, consegui estar presente no último adeus aos pais e receber os pêsames de tanta gente — conhecidos e desconhecidos, dois ingredientes fundamentais para iniciar o meu luto com a minha família.
As semanas seguintes foram dedicadas à burocracia para deixar tudo em ordem antes do regresso à Etiópia. A Drª Liliana Ferreira, a quem reconhecidamente agradeço, foi fundamental neste processo.
Como família dorida, respeitamos a memória dos nossos pais, avós e bisavós celebrando o Natal juntos na casa deles e dando as prendas que tinham combinado com a minha irmã Armanda.
Regressei à Etiópia menos de um mês depois como turista e… com mais meia dúzia de quilos. A mana e os vizinhos trataram-me bem de mais! A anca, essa queixa-se.
De volta a Qillenso, foi a vez de ritualizar o luto à moda dos gujis. No primeiro domingo, à tarde, fi-lo com os católicos de Qillenso. Reunimo-nos em grande número no salão paroquial.
Abraçaram-me e disseram-me palavras de alento. Depois pediram que lhes contasse a morte dos pais e os funerais. No fim, partilhamos um pão de trigo redondo com cerca de um metro de diâmetro com refrigerantes, café e leite.
Nas semanas seguintes vieram delegações das capela de Hindhale, Urdata e Badeye. O ritual e as narrativas repetiram-se.
As sobras do pão, dos refrigerantes e do leite ficavam connosco.
A vida continua!
Gosto muito de ler, mas durante o primeiro mês não tinha disposição para virar uma página que fosse nem de escrever nada. Dois meses depois, começo a normalizar a minha rotina.
Agora não falo nem brinco com os pais através da vídeo-chamada dominical, mas nas asas da oração de intercessão pela família alargada, pela paz na Etiópia e no Sudão do Sul. Creio na comunhão dos santos.
Além da foto deles que sempre me acompanha nas andanças de andarilho do Evangelho, uso uma volta de ouro que a mãe fez com o seu cordão de solteira, dividido em três para a Celeste, para a Armanda e para mim; e a aliança das bodas de ouro do pai.
Trago-os sobretudo no meu código genético e na memória. Sei que estão em paz, que estão bem, que estão com Deus!
A morte súbita dos pais, poupou-os a outros sofrimentos. Agradeço a Deus por isso. E pelo testemunho de que nem a morte separou quem Deus uniu — como escrevemos na lápide da campa.
Deixo também uma palavra de agradecimento sentido a todas as pessoas que suavizaram a nossa dor com gestos tão carinhosos e próximos nos funerais e no tempo que passei em Portugal.
Agradeço ao senhor Dom António Couto, que presidiu às exéquias; ao pároco de Cinfães, P. Francisco Marques, que foi incansável no acompanhamento dos pais em vida e nos preparativos para os funerais; ao provincial dos Combonianos, P. Fernando Domingues, que me foi buscar ao aeroporto e também esteve presente na missa de sétimo dia; aos membros da família comboniana (seculares, leigos, irmãs, irmãos e padres); às generosas gentes de Cinfães tão próximas e solidárias também nas ofertas que me entregaram para a missão; aos familiares do lado do pai e da mãe; aos amigos de perto e de longe; a todos os que estiveram connosco em tão dorido momento e nos fortaleceram…
Os gujis dizem Bayee galaatooma! Muito obrigado!
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