18 de outubro de 2023

A BENÇÃO DA MISSÃO


Lucas conta no Evangelho que os setenta e dois regressaram da sua jornada missionária com incontida alegria. «Senhor, até os demónios se nos submetem em teu nome» — reportaram, jubilosos, a Jesus (Lucas 10, 17).

O Mestre acolheu o seu entusiasmo com alguns ditos. A minha atenção fixou-se na sua última afirmação. Jesus congratula os discípulos com uma bênção: «Felizes os olhos que veem o que estais a ver. Porque — digo-vos — muitos profetas e reis quiseram ver o que vedes e não o viram, ouvir o que ouvis e não ouviram» (Lucas 10, 23-24).

A missão é, de facto, uma bênção, uma felicidade. Ao aceitar sair para as periferias do mundo, o missionário entra numa jornada inédita de redescoberta de Deus e do humano viver.

Quando vim pela primeira vez viver com o povo guji do Sul da Etiópia — já lá vão trinta anos — aprendi a entender Deus de uma maneira diferente.

Os gujis começam a oração tradicional invocando Deus como Pai e Mãe, Avô e Avó, Bisavô, que nos deu à luz. Esta invocação ilumina o conceito de Deus como o antepassado comum do qual todos provimos e para o qual todos voltamos. O Alfa e o Omega do nosso viver. A Fonte e o Destino do nosso ser.

Já no Sudão do Sul, impactou-me a afirmação «Deus é generoso», «Allah Karim». Ouvi esta frase árabe imensas vezes durante os sete anos que permaneci no país mais jovem do mundo. Deus é generoso e nós somos produto e destino dessa generosidade sem limites.

Estes novos modos de dizer Deus, aprendidos dos povos a quem vim missionar, são parte da novidade do seguir Jesus pelos caminhos do Evangelho.

Depois, há a outra vertente: a experiência de ser humano em expressões totalmente novas e tão legítimas como a nossa experiência própria.

Começa com a aprendizagem da língua local e da sua cultura para ter acesso ao coração das pessoas. Ainda hoje quem não me conhece fica surpreendido por me ouvir a falar — mais ou menos bem — guji. A polícia em Adis-Abeba perdoou-me duas multas, agradecendo-me por falar a língua deles.

A língua, além de ser o instrumento de trabalho mais importante do missionário, dá-lhe acesso às pessoas numa plataforma de igual para igual. Na Etiópia, os combonianos têm a tradição de não usar intérpretes. Quando chegam têm o tempo necessário para entrar nos meandros da gramática local para depois poderem trabalhar sem a barreira da tradução.

Há ainda outro aspecto a reter: a emersão numa cultura nova escancara as portas a uma experiência nova de humanidade, experimentando o humano viver em dimensões e expressões novas e desafiantes e reconhecendo a legitimidade e a validade das culturas hospedeiras.

Esta experiência passa pela comida e pela bebida (às vezes à custa de algumas diarreias), pelas danças e cantares, pela forma de vestir, pela singularidade dos conceitos de tempo e espaço, pelas prioridades, pelos salamaleques…

A experiência humana mais profunda que fiz foi passar da vida tranquila dos gujis do Uraga para a Cidade do México depois de uma breve semana em Portugal para levantar o visto de estudante na embaixada mexicana em Monsanto.

Não pode haver contraste maior do que a vida dos gujis do Uraga e a vida dos mexicanos na megalópole que lhes serve de capital. Das colinas verdejantes e cheias de vida à confusão poluída da grande urbe onde — descobri — é quase impossível estar sozinho. Duas maneiras de viver tão díspares e tão legítimas.

Jesus felicita os discípulos pelo que veem e ouvem. O que é? A erupção silenciosa do tempo de Deus no tempo humano, o irromper humilde do Reino de Deus na cidade humana através de pequenos e singulares gestos de partilha, respeito, hospitalidade, acolhimento, salvação.

A missão, essa estranha forma de vida que faz do missionário um andarilho do Evangelho, é uma felicidade, uma bênção, uma jornada pessoal de redescoberta e crescimento na vivência do mistério de Deus e do humano.

Sem comentários:

Enviar um comentário