22 de janeiro de 2019

«NÃO TEMOS MEDO»



«Ma benekhaf!!!», «Não temos medo!!!», diz este cartaz provocador,
sinal desafiador da presença massiva das mulheres nos protestos do Sudão.


Estou em Roma há dois dias. Em Cartum deixei multidões de pessoas atrapalhadas, famintas, cansadas, feridas ou mortas na rua sem poderem ser sepultadas dignamente.

Quase todos os dias nas ruas, em demonstrações revolucionárias contra os preços que subiram aos píncaros desde há precisamente um ano.

Gritam contra o Presidente da República, Omar al Bashir, e os seus governadores dos Estados Federais e os seus seguidores. Que são muitos. São mais de metade da população do Sudão. Agora, a gente grita abertamente nas ruas e sem medo contra a fome e a vida impossível. À procura de viver.

Retrocedo uns dias no calendário. Foi há menos de um mês. E não foi só poesia de uma noite de frio de inverno, ou de neve, ou das renas do Pólo Norte, ou do pai natal, ou um qualquer conto de fadas. E é propriamente esse, e não outro, que é o verdadeiro sentido do Natal. Era isso o que contemplávamos naquela noite de 24 para 25 de Dezembro: a sua nua e crua humanidade no Presépio de Belém. Emanuel, Deus connosco.

Na verdade, o governo transformou em violência sangrenta as demonstrações revolucionárias pacíficas, já há mais de quatro semanas, com (segundo as noticias frescas de hoje) mais de 40 mortos e mais bem de 1000 prisioneiros, muitos deles jornalistas, e tantos feridos impedidos de fazer tratamento (…) porque uma multidão de polícias de segurança, controla, de arma em punho, o acesso ao Hospital de Royal Care no Bairro de Burri, em Cartum.

Gente que anda à procura de pão, casa, vestuário e de tudo o que é essencial para viver.

Esta gente tinha tentado fazer demonstrações nas ruas, muitas vezes, durante vários anos, e perdeu. Fugiram. Porque as balas de fogo real que tinham feito algumas vítimas, meteram-lhes medo. Recuaram. Diziam: temos mulher e filhos para alimentar.

Mas desde há um mês, todos à uma, perderam o medo. Bem se vê no cartaz que seguram que mostram na televisão: «Ma benekhaf!!! NÃO TEMOS MEDO!!!». Quer-me bem parecer que o que dizem é verdade: «Não temos medo».

Quem teve medo fui eu, estrangeiro, que um dia me encontrei na rua no meio deles, por engano, porque, nos meus cálculos, atrasei a minha fuga para casa. E logo ouvi alguém que me dizia: «Vai-te, foge, que tu com essa pele branca de estrangeiro, és e, ao mesmo tempo, fazes-nos também ser, alvo de primeira classe. Eles, os da Segurança, já vêm aí. Escapa, enquanto é tempo.»

E eu escapei. Sim, não só escapei do meio da multidão mas também do Sudão propriamente dito. Tinha, de facto, o bilhete marcado para anteontem, quinta-feira, 17 de janeiro, às 3h00 da manhã: Cartum-Roma.

Já cheguei atrasado ao curso de Renovação dos Missionários Combonianos que já tinha começado em 4 deste mês de Janeiro. A desculpa foi aceite pelo director do curso, que é muito compreensivo.

O curso é importante para todos os combonianos inscritos. Mas ele, na verdade, estava a par do que se estava a passar no Sudão. Além disso, o director sabia que o governo tinha retardado toda a documentação a meu respeito, não me tendo sido dado o visto de saída-reentrada, que já antes do Natal eu tinha solicitado.

Integrei-me e inseri-me bem no grupo destas duas dezenas de colegas vindos de todas as partes do mundo onde os combonianos estão a trabalhar como missionários. El hamdu lilhah, graças a Deus!

Feliz da Costa Martins 
21 de Janeiro 2019 
Roma

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