8 de dezembro de 2016

OLHAR IMACULADO


O Papa Francisco termina a Carta Apostólica Misericordia et misera na conclusão do jubileu extraordinário da misericórdia com estas palavras: «Sobre nós permanecem pousados os olhos misericordiosos da Santa Mãe de Deus. Ela é a primeira que abre a procissão e nos acompanha no testemunho do amor. A Mãe da Misericórdia reúne a todos sob a protecção do seu manto, como a quis frequentemente representar a arte. Confiemos na sua ajuda materna e sigamos a indicação perene que nos dá de olhar para Jesus, rosto radiante da misericórdia de Deus» (MM 22).

Um parágrafo cheio, redondo e profundo!

Vivemos sob o olhar misericordioso da Imaculada Virgem Maria que abre a procissão, o itinerário santo do amor.

O Cardeal-arcebispo John Njue de Nairobi repete que viemos de longe e vamos para longe. Eu sou mais específico: viemos de Deus e vamos para Deus. Este é o roteiro sagrado, a procissão que Maria abre e em que todos participamos.

Nessa procissão vamos sob o manto protetor de Maria, o pálio que nos protege e resguarda – a todos.

Maria abre o caminho e indica o olhar de Jesus, o «rosto radiante da misericórdia de Deus». «Fazei tudo o que Ele vos disser», repete hoje o que disse ontem aos serventes das bodas de Caná.

Algumas igrejas protestantes criticam a superlativação de Maria, produto de muitas teologias e práticas católicas e ortodoxas, transformando-a numa semidivindade, distante da nossa realidade humana.

Mas Maria é sobretudo mulher, mulher-menina, menina-mãe!

São Paulo diz que «Deus enviou seu Filho, nascido de mulher» (Gálatas 4, 4). Jesus dirige-se por duas vezes à mãe chamando-lhe simplesmente mulher em Caná (João 2, 4) e no Calvário (João 19, 26), no início e no fim da vida pública.

O evangelho da anunciação – os ortodoxos chamam à anunciação a evangelização de Nossa Senhora – apresenta Maria como uma mulher como nós. Uma mulher de Nazaré de onde para Natanael/Bartolomeu não vinha nada de bom (João 1, 46), da Galileia dos gentios, gente mestiçada com pagãos.

Esta é a primeira condição da Senhora da Anunciação: mulher-menina marginalizada e descriminada. Como tantas mulheres-meninas que passam cabisbaixas e apressadas pelos ecrãs das nossas televisões e computadores a fugir da Síria, da Eritreia, do Sudão, do Paquistão, da guerra, da violência, da pobreza, da fome, da morte.

Gabriel chamou-lhe cheia de graça, cheia do amor do amado, e Maria ficou perturbada com tal saudação. Não parecia muito virada para florilégios, não se deixava levar por palavras sumptuosas. Podem fazer bem ao ego, mas não passam disso!

O anjo explicou-lhe que Deus achou-a com graça e escolheu-a para ser a mãe de Jesus, «grande e filho do Altíssimo».

Maria-menina questiona a possibilidade de ser mãe: «Como será isso se não conheço homem?» Estava prometida, era noiva mas ainda não casara, não coabitava.

O relato da anunciação apresenta uma Maria ao nosso nível: que se espanta, perturba, questiona, duvida. Mulher que sente a solidão. O versículo 38 termina com este apontamento que a liturgia deixou de fora: «E o anjo retirou-se de junto dela». No fim da anunciação ficou só!

Esta é a menina-mulher que depois de encontrar as respostas para o espanto e para as dúvidas diz: «Eis a escrava do Senhor; faça-se em mim segundo a tua palavra».

Frederico Lourenço traduz: «Eis a escrava do Senhor. Aconteça-me segundo a sua palavra».

O Mestre Eckhart, místico dominicano alemão do século XIII-XIV escreve no Tratado do discernimento: «Quando o Anjo apareceu a Nossa Senhora: tudo o que ela e ele possam ter conversado, nunca a teria transformado em mãe de Deus; mas assim que ela renunciou à sua vontade, ela tornou-se logo numa verdadeira mãe da palavra eterna e concebeu Deus nesse momento que se tornou no deu filho por natureza».

Maria ao abrir a procissão, aponta para o roteiro sagrado do eu para o tu, o recentramento redentor. Este ícone mariano é muito actual e desafiante para os dias de hoje, marcados pela cultura do selfie, do auto-retrato no centro de tudo, do individualismo globalizado e paralisante.

Esta é Senhora da Conceição que hoje celebramos!

O dogma católico proclama desde 1854 que Maria foi concebida sem pecado original. Um dogma recente mas uma verdade de fé que vem do Concílio de Basileia em 1439.

Para nós portugueses tem um significado especial: Nossa Senhora da Conceição é padroeira e rainha de Portugal desde 1646 quando Dom João IV a coroou no Solar de Vila Viçosa! Desde então os nossos réis e rainhas deixaram de usar a coroa real.

Celebrar a Imaculada Conceição é reconhecer que como Maria somos gratificados por Deus – todos somos cheios de graça, todos somos beneficiários da sua misericórdia.

Mas, como nota o mestre Eckhart, não podemos ficar pela conversa fiada! Na procissão da fé, temos que sair da zona de conforto do eu, recentrar-nos no Tu, deixar-nos encher e preencher por Deus, deixar-nos «cobrir pela força do Altíssimo» para sermos geradores de Jesus-Palavra hoje, «um hino de louvar da sua glória» (Efésios 1, 12).

E esta a graça que peço à Imaculada Conceição para cada um de nós hoje na sua festa.

Ámen.

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