19 de outubro de 2016

MÃE DA MISERICÓRDIA


São sete e meia da tarde. O sol acabou de se esconder. Começa a hora do recolher obrigatório neste conturbado Darfur. Antes de fechar o portão do adro da igreja, paro diante da estátua do nicho de Nossa Senhora que, de facto, se tornou um bom hábito em mim, levando-me, espontaneamente, a puxar pelo terço que trago no bolso. Estamos no mês de outubro, o mês do Rosário.

Avisto um vulto branco do lado de fora do portão ainda aberto. À medida que me vou aproximando, distingo um homem ali parado, olhando numa única direcção dentro do adro, num ponto fixo que lhe terá, porventura, encantado a alma. Um rosário muçulmano de contas volumosas pendia-lhe da mão direita. Inspirava serenidade e paz.

Cheguei-me ao pé daquela figura de jalabia branca, a túnica que os árabes usam no dia-a-dia e sobretudo na sexta-feira, o seu dia santo.

Era um homem já de idade. Inclinei-me para ouvir o que supostamente me queria dizer. Só então os seus olhos deram comigo, ao mesmo tempo que decifrei um pedido na sua roufenha voz: «Ia hajj, meu respeitável senhor, dá-me licença?»

«Faça favor, meu bom homem», - respondi, convidando-o a entrar. Ao mesmo tempo que lhe indicava o zir, a grande bilha de água, e um banco ali mesmo ao lado, disse-lhe: «Beba, sente-se um pouco e descanse, antes de prosseguir caminho.»

Depois de ter bebido, o homem dirigiu-se apressadamente para o nicho. Pela forma resoluta e decidida de agir, faz-me pensar que esta não seria, certamente, a primeira vez que aqui veio. Aí se quedou, olhando fixamente para a Nossa Senhora. De pé. Em silêncio. Imóvel.

Depois de uns bons minutos em contemplação, fez questão de me dizer o seu nome, Mahmude. Não se cansava de agradecer a bela ocasião de ter podido estar com a mãe. Esta palavra, mãe, imediatamente me faz pensar em Maria e seu filho Issa, Jesus, segundo vem escrito no Alcorão. Mas hoje quero aproveitar a ocasião de ouvir o testemunho pessoal de um bom e devoto muçulmano.

Enquanto caminhávamos devagar para o portão de saída, perguntei em tom provocador: «A mãe? A mãe de quem?»

«A mãe de Issa, Jesus, um dos grandes profetas do Alcorão», respondeu.

E ousou acrescentar: «Acho que esse profeta também é uma grande e alta personalidade no vosso livro santo, dos cristãos, não é verdade?»

«Sim, sim, tem toda a razão», confirmei.

Pedi ainda uns minutos de paciência ao bom ancião.

Como missionário, a pessoa de Maria tem estado muito presente na minha relação diária com a minoria de cristãos desta paróquia de Nyala. Mas, falar de religião com os muçulmanos, até mesmo com os amigos mais pessoais, a coisa vai mais devagar. Esta é, pois, uma ocasião providencial para o efeito desejado.

Não o deixei ir embora sem me responder à curiosa e intrigada pergunta: «Ia hajj, meu respeitável senhor: quem é Maria para si? que lugar ocupa ela na sua vida?»

Ele olhou para mim, surpreendido, pela fácil e banal, para não dizer inútil, pergunta.

Como o interesse era todo meu, continuei: «Sim, sim, estou a referir-me a Mariam, à mãe de Issa, Jesus.»

O sábio ancião respondeu prontamente e de boa vontade.

«Deus é Rahman Rahim, Clemente e Misericordioso por excelência, e transmite tudo aquilo que Ele é e possui ao profeta Issa – embora o profeta extraordinário e incomparável, Maomé tenha sempre o primeiro lugar» – certificou.

«O nosso livro Sagrado, o Alcorão, diz-nos que Issa, Jesus, nasceu sem pai na terra e que sua mãe se chamava Mariam. Um grandioso milagre operado pela Misericórdia do Deus Altíssimo! Pode, porventura, alguem pensar no filho e esquecer a mãe? Certamente que não», concluiu.

Depois de ter proferido estas palavras, o rosto do misterioso e simpático amigo adoptou uma expressão majestosa e, ao mesmo tempo, tão doce, capaz de convencer o mais incrédulo dos humanos.

Falou com uma certeza surpreendente: «A rahma, a misericórdia, habita em Deus e em Issa, Jesus, de forma cabal e perfeita.»

Depois, inclinou-se sobre o meu ouvido, não fosse eu perder a essência e preciosidade das suas palavras à causa da sua voz roufenha.

«A conclusão é clara como o sol. Mariam participa da rahma, da misericórdia, de Deus e de Issa. Ela é a mãe, a cheia de rahma, misericórdia. E está sempre pronta a distribui-la e dispensá-la, não só a mim, muçulmano, mas também a ti e todas os seres que vivem à face da terra», disse.

Depois destas palavras tão sábias, o meu amigo Mahmude quedou-se ali, de pé, como que esperando a minha reacção. A verdade é que ele, na sua humildade, temia pela integridade da minha fé como cristão e não queria ofender-me com as palavras que tinha pronunciado. Mas, pelo contrário, tenho, sim, muito que agradecer a Deus pela grande lição de teologia.

Desde o nicho de Nossa Senhora até ao portão de saída, entre contemplação e oração, ouvindo e partilhando lições de teologia da misericórdia, fez-se noite cerrada. O teólogo da jalabia branca despediu-se, acenando com a mão e o grande rosário que lhe fustigava a cara. Hoje, alguém transgrediu a lei vigente do Darfur – o recolher obrigatório – aceitando praticar uma obra de misericórdia para comigo.

Obrigado, meu Deus, porque nos deste Maria, Mãe de misericórdia! Tão de graça o recebeu como tão de graça o dá. A mim, missionário no Darfur, e a todo aquele que abra os braços e o coração a esse grande dom.

Com Maria, missionários da misericórdia!

P. Feliz da Costa Martins
Missionário comboniano no Darfur – Sudão

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