19 de junho de 2016
MISSIONÁRIOS DA MISERICÓRDIA
Os tempos de Jesus estavam maduros de expectação. Os romanos eram a potência ocupante de serviço havia quase um século. Os judeus piedosos, cansados do controlo militar, político e fiscal de Roma, suplicavam que o Messias viesse restaurar o Israel de Deus.
Os religiosos de Qumran pediam um Messias que vindicasse a sua fidelidade e restaurasse o culto purificado do Templo. Os zelotas esperavam um líder ultranacionalista e revolucionário, um Ungido radical e violento que libertasse a Terra da promessa de Pilatos, dos seus soldados e da sua ignomínia.
É neste contexto prenhe de esperas desesperadas e de orações balbuciadas por corações doridos que Jesus quer avaliar o impacte do seu ministério depois de um tempo de oração e antes de começar a grande peregrinação final a Jerusalém.
«Quem dizem as multidões que Eu sou?», pergunta aos discípulos (Lucas 9,18).
É o passado benquisto que ecoa na opinião pública: «João Batista, Elias, um profeta antigo que ressuscitou.» Mortos-vivos, redivivos no ministério do carpinteiro de Nazaré.
Jesus estica a sondagem: «E vós, quem dizeis que Eu sou?» (Lucas 9,20).
Pedro, intempestivo como sempre, tomou a dianteira aos outros na profissão de fé: «És o Messias de Deus» (Lucas 9, 20).
Pedro proclama Jesus como o Ungido do Pai, cheio do Espírito Santo. O esperado nas orações de todos os que aguardavam pela restauração de Israel.
Jesus sabe quem é! Ele é o Messias prometido, o rebento de Jessé esperado e chegado (Isaías 11,1). Mas não é um Cristo político que vai varrer os romanos. É o servo sofredor que o Segundo Isaías canta desde o desterro da Babilónia, que carrega as nossas dores, ferido por causa dos nossos crimes, que nos sara pelas suas chagas (Isaías 52,13-53,12).
Como o anunciara a profecia de Zacarias uns 300 anos antes de Jesus ter nascido: «naquele dia, jorrará uma nascente para a casa de David e para os habitantes de Jerusalém, a fim de lavar o pecado e a impureza» (Zacarias 13,1). A nascente do coração aberto de Jesus, olhos d’água e sangue…
Jesus explica que o seu caminho messiânico é o roteiro de vida dos seus seguidores, para todos e para todos os dias: «Se alguém quiser vir comigo, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz todos os dias e siga-Me. Pois quem quiser salvar a sua vida, há-de perdê-la; mas quem perder a sua vida por minha causa, salvá-la-á» (Lucas 9, 23-24).
Uma proposta que desafia a cultura globalizada dominante do egoísmo, individualismo, narcisismo, hedonismo e consumismo que mesmo sem o darmos conta é a nossa cultura… Jesus propõe a cruz: braços e corações abertos entre o céu e a terra para acolher, vivificar.
A cruz e a misericórdia são temas essenciais da espiritualidade comboniana. Antes demos mais atenção à cruz, mas a celebração deste jubileu levou-nos a reler os textos de São Daniel Comboni em chave de misericórdia, do Deus da(s) misericórdia(s) como tantas vezes O invoca.
Em Fevereiro de 1868, Comboni escrevia do Cairo: «Deus digna-se, em sua imensa misericórdia, marcar a nossa obra com o adorado selo da cruz» (Escritos 1571).
A cruz é o selo de garantia, a certificação da misericórdia de Deus no serviço missionário: «É preciso que as obras de Deus encontrem dificuldades; assim levam a adorável marca da Providência» (Escritos 1185)
Em 1880, Dom Daniel Comboni escreveu num longo relatório sobre a carestia e a epidemia de 1878 e 1879 que devastaram a África Central e fizeram milhares de vítimas.
«Estas tremendas calamidades não beliscaram, pela graça de Deus, a nossa coragem nem diminuíram a força do nosso espírito; antes pelo contrário, provas tão duríssimas contribuíram fortemente para que o nosso ânimo se fortalecesse, pondo toda a nossa confiança nesse Deus das misericórdias que nos precedeu no caminho da cruz e do martírio e mantendo-nos firmes e constantes na nossa árdua e santa vocação» (Escritos 6367), nota.
A firmeza e a constância dos missionários da África Central, «a missão mais árdua, laboriosa e vasta da Terra» (Escritos 2987), formam-se na contemplação do Redentor e da sua misericórdia na via da cruz, uma experiência da graça de Deus.
A contemplação é a forma de oração apostólica mais essencial que permite ao discípulo missionário entrar no dinamismo da misericórdia divina de que é prenúncio e anúncio.
Comboni escreve no Plano de acção apostólica a seguir ao assumir o Vicariato da África Central de Março de 1872 que os missionários da África Central «formam-se nesta disposição essencialíssima tendo sempre os olhos fixos em Jesus Cristo, amando-o ternamente e procurando entender cada vez melhor o que significa um Deus morto na cruz pela salvação das almas» (Escritos 2892).
No mesmo relatório sobre a grande calamidade escreve: «A misericórdia divina, graças à exímia caridade dos benfeitores, manteve ainda de pé as árduas e importantes missões do Vicariato e salvou muitas almas atendendo às mais extremas necessidades» (Escritos 6403).
Comboni percebia os colaboradores e benfeitores da missão africana como incarnação da misericórdia de Deus.
E continua: «Os missionários, as irmãs, os irmãos coadjutores e as pessoas acolhidas na missão suportaram a pé firme, com inamovível constância, coragem e resignação, as maiores privações e sacrifícios. Sofremos muitíssimo, mas alegramo-nos disso, porque o Senhor se dignou fazer-nos participantes da sua paixão e nos ajudou poderosamente a levar a sua cruz divina, símbolo de ressurreição e de vida» (idem).
Este parágrafo é um óptimo comentário comboniano ao anúncio de Jesus que pronuncia o seu mistério pascal de sofrimento, rejeição, morte e ressurreição e que nos leva à Carta aos Hebreus: «Corramos com perseverança a corrida, mantendo os olhos fixos em Jesus, autor e consumador da fé. Em troca da alegria que lhe era proposta, Ele submeteu-se à cruz, desprezando a vergonha, e sentou-se à direita do trono de Deus» (Hebreus 12, 1b-2).
O caminho do Senhor é balizado pela misericórdia e pelo amor em enlace de reciprocidade.
Comboni escreveu ao P. José Sembianti na festa de São José, meia dúzia de meses antes de morrer: «as vias do Senhor são misericórdia e Deus charitas est» (Escritos 6582).
Antes, havia respondido a uma campanha de difamação contra a sua administração com um ato de fé: «Deus é misericórdia, caridade e justiça, e saberá tirar destas providenciais vicissitudes o maior bem para a África» (Escritos 6098).
A cruz e a misericórdia são a rocha firme onde se alicerça a espiritualidade missionária comboniana, a força do missionário descrito por Comboni como «verdadeiro anjo de misericórdia» (Escritos 4803) na pessoa do P. Olivieri.
Contemplando o Senhor morto e ressuscitado de coração escancarado para acolher a todos aprendamos a ser verdadeiros anjos de misericórdia para todas as pessoas com que nos cruzamos.
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