A Assembleia da República recebeu a 26 de Abril uma petição a favor da despenalização da eutanásia assinada por mais de 8000 cidadãos.
Os deputados vão ter de legislar sobre o tema fracturante gerador de grandes paixões e discussões, porque a petição reuniu mais do dobro das 4000 assinaturas que a lei exige para ser apreciada em plenário da Assembleia da República.
Os organizadores dizem preferir que a proposta seja decidida pelos parlamentares em vez de ser submetida a referendo, embora estejam seguros que ganhariam o sufrágio.
O Partido Socialista, que não integrou a questão da eutanásia no programa eleitoral, diz que a discussão ainda está embrionária e não quer «soluções em cima do joelho» e pode travar uma decisão nesta legislatura.
Direito a morrer com dignidade
A iniciativa foi promovida pelo Movimento Cívico para a Despenalização da Morte Assistida, que publicou o Manifesto pelo «Direito a morrer com dignidade» no princípio de Fevereiro.
O texto, de dez parágrafos, defende a despenalização da morte assistida «como uma expressão concreta dos direitos individuais à autonomia, à liberdade religiosa e à liberdade de convicção e consciência, direitos inscritos na Constituição».
Define a morte assistida como «acto de, em resposta a um pedido do próprio – informado, consciente e reiterado – antecipar ou abreviar a morte de doentes em grande sofrimento e sem esperança de cura», um acto «compassivo e de beneficência» inserido no domínio dos direitos individuais «da autodeterminação da pessoa doente».
Pede ao Estado laico que se liberte de leis ancoradas em convicções religiosas e conclui: «É imperioso acabar com o sofrimento inútil e sem sentido, imposto em nome de convicções alheias. É urgente despenalizar e regulamentar a morte assistida.»
O manifesto foi subscrito por 112 individualidades da política e da cultura, conservadoras e progressistas.
A proposta da Igreja
O Conselho permanente da Comissão Episcopal Portuguesa publicou uma nota pastoral intitulada Eutanásia: o que está em jogo? Contributos para um diálogo sereno e humanizador com um anexo de 26 perguntas e respostas sobre a eutanásia.
O documento apresenta-se como um contributo para o debate sobre o suicídio assistido que os bispos desejam «sereno e humanizador» (n.º 1).
A nota define a eutanásia como «uma acção ou omissão que, por sua natureza e nas intenções, provoca a morte com o objectivo de eliminar o sofrimento» (n.º 2).
Equiparam-na a suicídio assistido, «o acto pelo qual não se causa directamente a morte de outrem, mas se presta auxílio para que essa pessoa ponha termo à sua própria vida» (n.º 2) que distinguem da renúncia à «obstinação terapêutica» – ou distanásia, a futilidade de cuidados médicos que adiam artificialmente a morte sem ganhos para o doente.
Os bispos sublinham que com a legalização da eutanásia «pretende-se que o mandamento de que nunca é lícito matar uma pessoa humana inocente (“Não matarás”) seja substituído por um outro, que só torna ilícito o acto de matar quando o visado quer viver» (n.º 3).
O documento reafirma a vida como dom de Deus (n.º 4), um direito indisponível e pressuposto de todos os direitos (n.º 5).
E notam: «O homicídio não deixa de ser homicídio por ser consentido pela vítima. A inviolabilidade da vida humana não cessa com o consentimento do seu titular» (n.º 5) nem se sabe nunca a vontade autêntica de uma pessoa que quer ser eutanasiada (n.º 6).
Os bispos recordam que «não se elimina o sofrimento com a morte: com a morte elimina-se a vida da pessoa que sofre» (n.º 9).
E explicam que «a eutanásia é uma forma fácil e ilusória de encarar o sofrimento, o qual só se enfrenta verdadeiramente através da medicina paliativa e do amor concreto para com quem sofre» (n.º 9).
Francisco dedica dois números da exortação apostólica A alegria do amor à eutanásia. Escreve no n.º 48: «A eutanásia e o suicídio assistido são graves ameaças para as famílias, em todo o mundo. A sua prática é legal em muitos Estados. A Igreja, ao mesmo tempo que se opõe firmemente a tais práticas, sente o dever de ajudar as famílias que cuidam dos seus membros idosos e doentes.»
No n.º 83 acrescenta: «A Igreja não só sente a urgência de afirmar o direito à morte natural, evitando o excesso terapêutico e a eutanásia, mas também rejeita firmemente a pena de morte.»
Biombo dos eufemismos
O manifesto pelo direito a morrer com dignidade pretende esconder o suicídio assistido ou o homicídio atrás de um biombo de eufemismos a começar pelo próprio significado de eutanásia: a palavra vem do grego e significa boa morte.
A iniciativa pede a legalização da morte assistida, mas – como notam os bispos – o que está em causa é o suicídio medicamente assistido de alguém que não quer sofrer mais.
Morte assistida é o agonizante estar confortável e rodeado pelos entes queridos que o acompanham com carinho na passagem para o Além.
O manifesto descreve a eutanásia como acto compassivo e de beneficência para os grandes sofredores terminais. Contudo, a compaixão é proximidade com os doentes, literalmente sofrer com eles e não ajudá-los a cometer suicídio.
Depois há o conceito enviesado do direito constitucional a morrer. A vida é um direito, mas a morte não é um direito: é o fim de todos. A própria Constituição é clara no artigo 24.º, que define no ponto 1 com todas as letras que «a vida humana é inviolável». A eutanásia é anticonstitucional porque é uma violação irreversível do direito à vida.
Finalmente, a eutanásia não resolve a questão fundamental do significado do sofrimento, uma realidade universal e transversal que juntamente com a morte não tem direito de cidadania na cultura dominante, ensoberbada pelo mito narcisista da eterna juventude.
Porta perigosa
A legalização da eutanásia em casos de sofrimento intolerável ou doença terminal é uma porta perigosa que uma vez aberta pode ser alargada a realidades muito diferentes das da proposta original como acontece em alguns países em que médicos assistem doentes depressivos a cometer suicídio.
Os bispos na nota pastoral dizem que a legalização da eutanásia e do suicídio assistido «tem graves implicações sociais» (n.º 10), sendo o meio mais fácil e barato de combate à doença e ao sofrimento. Pode mesmo servir de pressão sobre os doentes considerados a mais e um peso para a sociedade, sobretudo os mais pobres e vulneráveis.
Quatro notas finais: primeiro, em 1867, Portugal aboliu a pena capital, uma afirmação clara de que a morte não é resposta para a grande criminalidade. Hoje também não o é para as pessoas em grande sofrimento ou em estado terminal.
Segundo, a eutanásia não é nome de analgésico novo: não mata a dor, mata o dorido.
Terceiro, a cultura contemporânea tem de repensar o sofrimento e integrá-lo como parte integrante do viver e não matá-lo.
Quarto, o que os pacientes portugueses precisam é de acesso universal aos cuidados paliativos, porque nesta forma de assistência o País encontra-se na cauda da Europa.
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