21 de fevereiro de 2014

PARTILHANDO AS DORES, ANSIEDADES E ESPERANÇAS DO POVO


UMA NARRATIVA DOS CONFLITOS DE GUERRA NA MISSÃO DE LEER


«Se alguém quer me seguir, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e me siga.» (Marcos 8:34)

Considerações iniciais – A narrativa que segue não é um relatório oficial dos membros da Família Comboniana que trabalham na missão de Leer sobre o que lá aconteceu no decorrer das últimas três semanas. Pretende ser uma partilha de uma experiência pessoal do que ocorreu na missão de Leer após os conflitos iniciados em Juba no dia 15 de dezembro de 2013 com uma ênfase particular na experiência em que os missionários de Leer vivenciaram recentemente e o que resulta disto. Basicamente representa a experiência pessoal do autor sem, contudo, negligenciar o papel das duas comunidades religiosas envolvidas. Por questão de segurança, alguns nomes de lugares e pessoas serão omitidos.

A missão de Leer e os missionários – A missão de Leer (Paróquia de São José Operário) compreende quatro municípios no sul do estado de Unity: Leer, Koch, Mayiendit e Panyijiar. Situa-se na Diocese de Malakal e foi confiada aos cuidados pastorais dos Missionários Combonianos. Toda a região é habitada pelo povo Nuer. É uma terra rica em petróleo e outros recursos naturais. Atualmente somos cinco missionários combonianos trabalhando em Leer: Pe. Francesco Chemello (Itália), Pe. Raimundo Rocha (Brasil), Pe. Yacob Solomon (Etiópia), Ir. Nicola Bortoli (Itália) e Ir. Peter Fafa (Togo). Em janeiro juntaram-se a nós o seminarista Ketema Dagne (Etiópia) e Pe. Michael Barton (USA). Eles foram lá para aprender a língua Nuer. As Irmãs Missionárias Combonianas são: Ir. Agata Catone (Itália), Ir. Carmirta Júlia (Equador), Ir. Laura Perina (Itália) e Ir. Lorena Morales (Costa Rica). 

Nossos hóspedes – Na sexta-feira dia 10 de janeiro acolhemos o Pe. Stephen e Pe. Ernest Adwok que fugiram dos conflitos em Mayom e Bentiu. Nós os acomodamos juntamente com um casal que veio com eles. O Pe. Joseph Makuey de Rubkona foi para Koch em meio a parentes. Um senhora viúva e comerciante com sua bebê de 17 meses, de Juba, pediu ajuda em nossa comunidade e também a acolhemos no dia 24 de janeiro. Ela caminhou os 130 km de Bentiu a Leer depois de ficar duas semanas no mato. Ela pretence a outra tribo em Juba e não conhece ninguém em Leer.

Os conflitos – Quando a violência começou em Juba no dia 15 de dezembro de 2013, ninguém imaginava que pudesse se espalhar tão rápido e chegar a outras regiões do país. Enquanto nos informávamos sobre o que acontecia em Juba seguíamos nossa vida diária normalmente, mas com preocupação. Logo a violência chegou a Bentiu, 130 km de Leer. Isso gerou mais preocupações. A essa altura o exército se dividiu e a oposição (rebeldes) passou a controlar Bentiu. Combates ocorreram e a população começou a fugir rumo a Leer. Um número estimado de 30 mil pessoas teria chegado a Leer, a maioria a pé. As preocupações aumentaram mais ainda, porém nossa esperança era de que os conflitos não chegassem a Leer.

Os conflitos e mudança de ambiente em Leer – Desde que os conflitos começaram em Bentiu o ambiente mudou em Leer. Tinha dias mais tensos e outros mais calmos, mas nunca aconteceu um combate efetivo na cidade até o dia em que partíamos. O mercado de Leer era o único abastecendo a região com alimentos e outros itens. O movimento de soldados (rebeldes) começou a crescer a cada dia na medida em que as tropas do governo avançavam rumo a Leer. O hospital de Leer dirigido pelos Médicos Sem Fronteiras (MSF) operava normalmente. Nós, porém, cancelamos todas as atividades pastorais, exceto as missas, e permanecemos em Leer monitorando a situação e informando a Província dos Combonianos e a missão de paz da ONU (UNIMISS) em Bentiu sobre questões de segurança. Recebemos informação de que as tropas do governo estariam avançando rumo a Leer. Na segunda-feira, 13 de janeiro, podia-se ouvir tiros por toda a noite, mas não era combate, eram tiros de alerta. Às 4h00 da manhã alguns catequistas vieram nos avisar que os tiros eram para informar que as tropas do governo teriam chegado a Koch (Tharjath, 55 km de Leer). Tivemos uma reunião de emergência às 5h00 da manhã sobre o que fazer e resolvemos ficar e só deixar a missão em caso de um grande perigo. Os tiros eram de facto para alertar, mas também para assustar o povo e saquear o mercado e as residências quando o povo estivesse em fuga. De facto, foi isso o que ocorreu. A equipe de médicos e enfermeiros estrangeiros dos MSF deixaram o hospital. Tensão e medo aumentaram. A possibilidade para a guerra chegar até Leer era real. A cidade estava com a população aumentada dias antes. Agora parecia uma cidade fantasma. Até aqui o exército em oposição (rebeldes) estava em controlo de Leer. Não tinha combates, mas o povo que fugia não queria voltar. Também não tinha nenhum tipo de ameaças a nós missionários. No domingo, 19 de janeiro, celebramos em quatro localidades diferentes nas proximidades de Leer. Pe. Francesco Chemello tinha ido desde início de janeiro para Mayiendit e Panyijiar, nas áreas mais isoladas. Novamente no domingo, 26 de janeiro, celebramos em seis localidades diferentes onde o povo estava. Dessa vez percebemos que a situação estava piorando. A comida estava diminuindo e a fome chegava. Começava a faltar água, saneamento e remédios. Mais tarde, na mesma semana, duas das irmãs combonianas, Laura e Lorena, resolveram ir ficar junto com o povo. Elas foram para uma comunidade a 6 km de Leer. A essa altura as tropas do governo tinham chegado a Mirmir (21 km de Leer). Combates aconteceram em Mirmir por alguns dias. Podíamos ouvir o som dos tiros de artilharia pesada à distância. Tensões aumentavam, o medo crescia. Os civis que restavam fugiam para o mato e pântanos. A possibilidade para deixar a missão a essa altura era muito difícil, mas não impossível, se alguém desejasse fazê-lo. Porém, decidimos ficar. Na quarta-feira, 29 de janeiro, cinco diferente grupos de soldados/polícia (alguns bêbados) tentaram levar os carros da missão. Conseguimos evitar, mas não sabíamos até quando resistir. O hospital dos MSF e outras propriedades das ONGs já tinham sido saqueados. A propriedade da missão poderia ser a próxima. Eu informei o Provincial que a situação tinha-se tornado muito mais tensa e perigosa e confessei que estava com medo. As duas linhas telefónicas foram desativadas. O único meio de comunicação era a nossa internet. Naquela mesma noite recebemos informações de que na linha de frente das tropas estariam os rebeldes darfurianos que se aliaram ao governo. Eles não nos respeitariam como Igreja como poderiam fazê-lo as tropas do exército. Era um grande perigo para nós. Enquanto isso, eu recebia pedidos de familiares, amigos e combonianos para deixar a missão e voltar depois com meus colegas, mas era muito tarde e já havíamos decidido ficar.

A fuga dos missionários para o mato – No dia 30 de janeiro, depois da oração da manhã, nos reunimos e decidimos deixar a missão e procurar refúgio no mato onde o povo tinha ido. O Pe. Stephen já tinha ido um dia antes com o casal que o acompanhava. Decidimos ir a uma localidade chamada Gandor para encontrarmos o Pe. Stephen, pois ele tinha um telefone via satélite. Arrumamos nossa bagagem, carregamos os carros com comida e outros itens e partimos às 9h45 da manhã. Fiz questão de colocar na minha bolsa a Santa Eucaristia e o necessário para as orações, uma imagem de Nossa Senhora Aparecida, meu velho computador, algumas roupas e outros objetos. Antes de partir, informamos os provinciais sobre para onde estávamos indo. A partir dali não haveria mais comunicação. Não tínhamos muitas opções. Leer está isolada. Seríamos encurralados em qualquer lugar onde fôssemos. Então partimos, mas na esperança de retornar. Agora nos tornamos pessoas deslocadas tal qual o povo. Sem eira, nem beira. O Pe. Michael Barton decidiu ficar na missão. Assim que partimos começaram a saquear a sede da missão e as nossas escolas. Era gente do povo e também militares. O Pe. Michael foi retirado para não lhe acontecer o pior. No caminho encontramos a Ir. Lorena e uma senhora dos grupos da igreja. Estavam indo saber como estávamos. Entraram nos carros e fomos para onde tinham estado. Lá decidimos não ir para Gandor, mas para Beer que era mais longe (28 km de Leer). Alguns catequistas eram nossos guias. Um dos carros atolou na areia e isso atrasou a viagem. Nosso grupo aumentou com a chegada dos catequistas e de um casal de Yambio. Excluindo os Nueres, nós éramos dez missionários, um padre diocesano, uma senhora com uma criança e um casal. A caminho de Beer encontramos o Pe. Stephen. Foi uma alegria. Informamos-lhe sobre nosso destino e ele nos disse que se juntaria a nós mais tarde. Chegamos em Beer finalmente a 1h45 da tarde. Ao chegarmos tomamos um chá com biscoitos e fomos descansar.

O momento mais dramático – Fomos bem recebidos pelos cristãos dessa comunidade e nos acomodamos por achar que estávamos seguros. Pensamos que as tropas do governo chegariam a Leer em breve, mas pela estrada principal. Estávamos a 28 km de Leer e salvos. O que aconteceu, porém, foi que os rebeldes de Darfur, junto com soldados do exército, chegaram até onde estávamos, vindos pelo mato e em uma pequena estrada. Eles nos atacaram uma hora depois da nossa chegada. Eles não batem na porta para entrar, já chegaram atirando. Quando ouvimos os tiros e o som das balas sobre nossas cabeças resolvemos correr levando o que era possível. Eu levei três bolsas e corri com o Pe. Ernest e a senhora com a criança. Todo mundo correu em diversas direções. O tiroteio era intenso. Eu caí três vezes. Deus me deu forças pra levantar-me. Em um dado momento, já exausto, resolvi não correr mais, mas o Pe. Ernest continuou-me dando forças. Um senhor já de idade, a cujo matrimónio eu tinha assistido, apareceu do meio do nada, pôs um lençol no chão para eu deitar e descansar, carregou minha bolsa mais pesada. Foi mandado por Deus. Continuamos a correr e a senhora com a criança ficou para trás. Tinha já entregado outra bolsa para uma irmã. Agora estava mais leve. Mais tiros e mais corrida. A maioria dos tiros era para cima para nos espantar, mas também atiravam contra alguns de nós. Quando nos sentimos completamente exaustos, nos atiramos no capim seco debaixo de algumas palmeiras e ficamos imóveis por mais de uma hora. Não conseguíamos saber se estavam todos vivos ou não. Todos se espalharam. Os tiros foram das três às seis horas. Dois moradores apareceram, nos identificamos e eles seguiram em frente. Mais tarde retornaram com Rebeka, uma senhora da igreja, que nos levou para onde o resto do grupo estava. Foi um alívio perceber que todos estavam vivos. Escapamos da morte por milagre. Sem dúvida Deus nos protegeu. A senhora com a criança e mais três companheiros continuaram sumidos naquela noite, mas fomos informados de que correram para longe e estariam vivos também. Passamos a noite ali naquela casa que nos acolheu. Todos estávamos temerosos e em estado de choque.

Chegando a outra localidade e realidade – De manhã logo cedo seguimos caminhada para uma localidade distante e segura indicada pelos catequistas. Era nos pântanos. Ali estaríamos seguros. Fomos acolhidos pelo dono da casa e ali fizemos nossa morada onde dormiríamos no chão pelos próximos vinte dias. Aos poucos o grupo foi se recompondo. Sentimos-nos tão aliviados e agradecidos a Deus. Ficamos sabendo que uma pessoa foi morta, dois de nossos carros foram levados com toda nossa comida, documentos e outros pertences e um terceiro carro foi incendiado porque não conseguiram levar. Essa ação foi levada a cabo pelos rebeldes Darfurianos e soldados do governo enquanto a população civil e soldados rebeldes saqueavam a nossa missão. Perdemos quase tudo. A maioria no grupo ficou apenas com a roupa do corpo. Compartilhamos nossas roupas e outros objetos com os que pouco tinham. Eu conseguir salvar meus documentos, um velho computador, algumas roupas e o necessário para as missas. O Pe. Jacob também conseguiu salvar alguma coisa. Um pouco de dinheiro foi salvo, o qual usamos para comprar comida. A nova localidade era uma área de verdadeiro pântano. Tem hipopótamos e crocodilos. Fazia muito frio à noite e muito vento durante o dia. Logo se tornou um lugar muito habitado. Muitas famílias vieram ficar no mesmo lugar. Um dia eu pude contar mais de 140 tendas de mosquiteiros com cerca de duas a três pessoas em cada o que chegaria a quase 500 pessoas refugiadas. A comida era escassa. Os cristãos iam atrás de comida para nos alimentar. Conseguimos quatro cabras e um boi. Tudo era partilhado entre o povo. O mesmo fazíamos com o peixe seco. Caça também era parte do cardápio (búfalo, hipopótamo e crocodilo). Bebíamos da mesma água do pântano onde tomávamos banho. Só era preciso fervê-la. Eu levava um pouco de remédio e logo me tornei o médico do grupo. Muitos vinham por um comprimido ou outro. A maioria das crianças tossia e estavam mal nutridas. Essa é a estação das queimadas e para piorar a situação puseram fogo no capim seco. No dia 10 de fevereiro um grande fogo veio em nossa direção. Tivemos que correr outra vez para escapar das chamas e fumaça. Enfim, foi controlado. A lenha dessa pequena floresta foi queimada. Ali era também o nosso ‘banheiro’.

Solidariedade em tempos de dificuldades – Estávamos na mesma situação do povo. Tínhamos muito pouco para nos apoiar, mas ao mesmo tempo tínhamos Deus. De facto, todo fim de tarde celebramos a Eucaristia em um pequeno altar improvisado com o povo sentado no chão. Estávamos certos que muita gente rezava por nós e connosco em todo o mundo. Nunca perdemos a esperança de sairmos daquele lugar. O maior desafio era a comunicação. Dois catequistas e dois missionários caminharam três horas até encontrar um telefone via satélite com o qual conseguiram se comunicar com os Combonianos e a ONU em Juba. Agora nos sentíamos mais tranquilos, pois nossos confrades, familiares e amigos saberiam onde estávamos e que estávamos bem. Ficamos sabendo que o Pe. Francisco Chemello ainda estava em Panyinjiar e o Pe. Michael Barton tinha chegado à missão de Old Fangak após dois dias de barco. Também o Pe. Stephen tinha sido levado para Bentiu e estava bem. Nossa esperança era de que a ONU, através da missão de paz, pudesse nos resgatar de onde estávamos, mas eles não fazem mais operação de resgate porque um de seus helicópteros foi derrubado no ano passado. Intensificamos nossas orações. Tínhamos todo apoio possível dos cristãos. Se por um lado as mesmas pessoas que tentávamos ajudar e servir, incluindo alguns cristãos, saquearam a missão, por outro lado a solidariedade e compromisso de alguns cristãos nos fizeram sentir orgulho deles. Comemos pouco, mas nunca faltou comida. Partilharam o pouco que tinham. O principal catequista de Leer caminhou dois dias a nossa procura até nos encontrar. Vendeu uma cabra para ajudar seu filho paraplégico e partilhou o dinheiro connosco. Eram muitos sinais como estes. Também estávamos preocupados e ansiosos sobre eles porque quanto mais tempo ficássemos por lá, mais difícil seria para eles encontrar comida para nós. Sentíamos-nos um peso para eles. Porém, a única forma de sairmos de lá era poder chegar até Leer onde tem a pista de pouso. Então, escrevi uma carta ao comissário para saber se era seguro irmos a Leer e se podíamos ficar em nossa casa na missão. Ao mesmo tempo o comissário procurava por nós, mas sem sucesso. Quando recebemos sua resposta dizendo que poderíamos ir até à estrada principal onde ele nos pegaria de carro, decidimos partir na madrugada do dia seguinte. Partimos às 6h00 da manhã com frio e sob a luz da lua. Caminhamos por quatro horas. A Ir. Agata de 67 anos foi uma heroína. Alguns cristãos caminharam connosco até Mirmir. Caminhávamos com medo, pois alguns jovens armados nos ameaçavam de ataque porque para eles a nossa presença atrairia os soldados. Quando chegamos a Mirmir, ficamos sabendo que os carros do comissário tinham ido para outra direção para nos pegar lá. Assim tivemos que ficar dois dias em Mirmir. Os soldados foram muito amigáveis, sem animosidade. Ofereceram-nos comida, mosquiteiros e colchões para passarmos a noite. Dormimos na capela. O transporte chegou no dia seguinte. Depois ficamos sabendo que a causa foi uma emboscada armada pelos rebeldes. As tropas tiveram que os repulsar e limpar o caminho entre Leer e Mirmir. Finalmente o transporte chegou e fomos levados para Leer, mas com medo de uma emboscada. Felizmente nada aconteceu. Chegamos em Leer no domingo, 16 de fevereiro, às 6h00 da tarde e fomos para nossas casas. Era de partir o coração ver que nossas casas foram saqueadas. Somente as casas restavam com portas, portões e banheiros danificados. Tudo mais tinha sido levado pelo povo e soldados. Não tocaram na igreja, mas as construções em material local do centro catequético foram queimadas e algumas cabanas da igreja. É muito triste ver o que levou anos de muito trabalho e investimento ser destruído e saqueado. Porém, nossas vidas e nossa fé não as levaram. Agora a possibilidade de ir para Juba era mais real e naquela noite celebramos uma missa em ação de graças por termos chegados até aqui.

Ida a Juba – No dia 16 de fevereiro fomos informados de que haveria um voo no dia seguinte, mas somente com quatro assentos disponíveis. Fizemos uma reunião para discernimos e decidimos quem seriam os quatro primeiros passageiros a ir para Juba. Decidimos que os com alguma enfermidade viajariam primeiro. Eram Ir. Agata, a senhora com a bebê doente, uma senhora de idade e a Ir. Carmita. Elas viajaram num avião Caravan Cesna da ONU. Os outros nove permanecemos em Leer por mais dois dias. Isso nos permitiu limpar a bagunça e recuperar alguns livros deixados pelo chão. Recebemos mais comida que foi somada a outra trazida de Juba no avião. Finalmente partimos de Leer para Juba no dia 20 de fevereiro às 2h30 da tarde num helicóptero Mi8 da ONU. Depois de uma parada em Rumbek para reabastecimento seguimos para Juba onde chegamos às 5h45 da tarde todos cansados mas felizes. Fomos bem acolhidos pelos missionários e missionárias de Juba. Reencontrámos o Pe. Francisco Chemello. Na mesma noite conseguir ligar para minha mãe, irmã e sobrinho para dar notícias. Enquanto exultávamos, nossas mentes e corações estavam com o nosso povo em Leer que ficou para trás no mato e pântano sem comida, água tratada, saneamento, abrigo e remédios.

Decisão de ficar em Leer – Em Leer mesmo, até o dia em que lá ficamos, não teve combates. Quando os rebeldes Darfurianos e as forças do governo lá chegaram a cidade estava deserta. O povo tinha ido para o mato, incluindo os rebeldes. Mesmo assim eles queimaram todas as cabanas/casas construídas em material local como capim. Somente as construções de tijolo e zinco permanecem. Há informações de que algumas pessoas morreram e algumas mulheres foram violentadas. Uma mulher teria sido violentada por sete homens. Toda a população e alguns milhares de pessoas de Bentiu continuam no mato e pântanos. Somente algumas mulheres chegam a Leer a procura de alimento. Os homens não vêm por medo. Muita gente de Bentiu vai a Leer na esperança de ser levada de volta para suas casas. As tropas do governo controlam Leer. Enquanto tudo isso acontecia muita gente se perguntava porque decidimos ficar em Leer quando se sabia que era muito perigoso. Quanto a isto eu partilho minha opinião a qual pode coincidir com a dos meus colegas missionários. Na verdade, para ser sincero, eu estava com medo e fui o único que expressou abertamente o desejo de sair para Juba caso percebesse que minha vida estivesse em perigo e fosse seguro um avião pousar em Leer. Isto eu informei ao provincial por email. Alguns membros da minha família, amigos e outros missionários também me motivaram a deixar a missão a tempo e retornar depois com meus colegas. A questão que sempre me fazia era quando minha vida estaria em perigo e quando seria o momento certo de partir e como. Não foi um discernimento fácil. O que mais pesou em minha decisão de ficar foi o facto de, se eu deixasse Leer para ir a Juba, deixando para trás os meus colegas sozinhos numa situação de perigo onde poderiam perder a própria vida, eu nunca me perdoaria por tal atitude. Minha comunidade religiosa é minha família e eu nunca abandonaria minha família. Eu preferiria enfrentar dificuldades, até mesmo encarar a morte, a permanecer vivo e seguro na dor e sofrimento. Esse foi um dos meus sentimentos. No caso das duas comunidades religiosas (missionárias e missionários combonianos) o que nos fez ficar basicamente foi a esperança de que as tropas do governo não chegassem a Leer e não ocorresse nenhum combate. Se eles viessem de qualquer modo, esperávamos que nos respeitassem como igreja e não saqueassem a propriedade da missão. Também esperávamos que o acordo de paz para cessar-fogo e fim das hostilidades pudesse ser respeitado e implementado e os conflitos pudessem terminar em breve, mas o acordo foi violado a violência aumentou. Além disso, achamos que nossa presença em Leer de alguma forma inibiria as atrocidades e violência contras os civis inocentes. Queríamos ao mesmo tempo ser sinal de esperança para o nosso povo e nos fazer solidários com eles. Estávamos lá para eles, ficaríamos com eles. Porém, estávamos muito conscientes dos riscos. Não fomos ingénuos, não subestimamos a situação e não queríamos colocar ninguém em perigo. Fizemos nossa opção missionária. Consideramos, no entanto, o facto de nos refugiar no mato se realmente fosse necessário, mas permanecendo em Leer. De facto, foi o que aconteceu. Em todo o processo tentamos tomar as decisões juntos. Ambos os Superiores Provinciais das irmãs e dos combonianos respeitaram nossa decisão e nos apoiaram. Nenhuma decisão foi imposta. Foi nossa escolha livre e consciente e nunca nos sentimos negligenciados.

Considerações finais – Agora nos encontramos em Juba nos recuperando do cansaço e estresse. Juba é segura. Continuaremos a monitorizar a situação em Leer até onde podemos e no resto do país. Esperamos e rezamos para que essa guerra acabe logo e a paz possa ser reestabelecida. Sou muito agradecido ao Deus da vida e do amor por tudo que tem feito por mim, meus colegas, as irmãs e pelo povo que nos ajudou. Quero agradecer cada pessoa que tem rezado por nós e por nossa segurança, vida e resgate. Deus ouviu as orações de vocês e as nossas. Eu creio em milagres. Eles aconteceram. Agora estamos bem, mas nosso povo está sofrendo no mato e pântanos. Por favor rezem por eles e façam o que puderem para ajudá-los. Muito obrigado ao Ir. Peppo e a Ir. Anna em Juba que mobilizaram ‘metade do mundo’ para nos trazer a Juba. Muitos agradecimentos também ao Provincial Pe. Daniele Moschetti e à Provincial Sr. Giovanna pela confiança e apoio. Obrigado ao Pe. Daniele Moschetti e aos Combonianos no Brasil que manifestaram sua solidariedade e mantiveram minha família informada. Agradecimentos à Missão de Paz da ONU (UNIMISS) por coordenar os voos de evacuação. Também meu imenso agradecimento a todos os cristãos e demais pessoas em Leer que nos ajudaram de uma forma ou de outra. Ainda estou me recompondo e tentando dar sentido a muitas coisas, mas me sinto feliz por ser um missionário membro da Família Comboniana.

Que São Daniel Comboni e Santa Josefina Bakhita intercedam por nós e pelos povos do Sudão do Sul. Fiquem com Deus e muito axé. 
Em Cristo,
Pe. Raimundo Rocha, mccj
Pároco de Leer

Juba, 21 de fevereiro de 2014.

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