11 de janeiro de 2014

SANTOS e PECADORES

 Terekeka: celebração da missa © JVieira

VIVI OS ÚLTIMOS SETE ANOS no Sudão do Sul, o país mais novo do mundo. Integrei uma equipa de Missionárias e Missionários Combonianos encarregada de estabelecer a Rede de Rádios Católica: nove estações locais mais direcção e redacção central e um centro de produção de programas.

Foi uma experiência de trabalho única e também uma experiência de Igreja casta meretrix, casta prostituta, de santos e pecadores, pedindo emprestada a afirmação a Santo Ambrósio de Milão. Uma igreja que nos manteve um ano sob os radares antes de aceitar a nossa colaboração pastoral. Queriam saber ao que vínhamos já que os Sudãos são a terra santa dos combonianos e por vezes comportaram-se como donos e senhores da igreja até que em 1964 Cartum expulsou todos os missionários cristãos do Sul! Em 1993, o regime de Al Bashir repetiu a dose: levou para Cartum os missionários que trabalhavam no Sul e recusou-se a dar-lhes novos vistos de residência pelo que tiveram de abandonar o país.

1. Igreja mártir

A Igreja do Sudão do Sul é uma igreja mártir. Quatro padres foram assassinados durante a 1ª guerra civil entre Agosto de 1955 e Março de 1972: Arkangelo Ali, diocesano, em Rumbek, pelas forças da ordem a 21 de Julho de 1965; Barnaba Deng, comboniano, a 23 de Agosto de 1965, em Wau, pelas forças da ordem; Saturnino Ohure, diocesano, em Kitgum-Uganda a 27 de Janeiro de 1967; e Leopold Anywar, diocesano, em Kitgum-Uganda em 1968. O crime? Opuseram a arabização do sul e a aplicação da charia, lei muçulmana.

Durante a 2ª Guerra civil (1983- Janeiro de 2005) um número indeterminado de catequistas e leigos desapareceram da Casa Branca em Juba, o quartel da secreta sudanesa no Sul, e de outros postos de tortura e morte, e alguns padres foram presos e torturados por operem mais uma vez o processo de arabização e islamização do Sul que é negro e cristão ou segue a religião tradicional.

2. Igreja mãe

A Igreja manteve-se ao lado do povo e cuidou dele durante quase 50 anos de guerra:
  • Animava a gente a acreditar num futuro melhor e a aguentar o terror da guerra, da doença, da fome e da deslocação. Mais de dois milhões foram mortos e quatro milhões deslocados pelos combates para Cartum, Uganda, Quénia e Canadá, EUA, Reino Unido, Austrália;
  • Organizava orações ecuménicas pela paz, envolvendo também muçulmanos;
  • Mantinha escolas e centros de saúde abertos sobretudo nas áreas libertadas e procurava e distribuía comida;
  • Os dois arcebispos de Juba, um católico e outro anglicano, tinham um acordo: um deles tinha que estar na cidade quando o outro tinha que viajar por algum motivo;
  • Promoveu o diálogo sul-sul para procurar a reconciliação entre fações desavindas e senhores da guerra;
  • Manteve a questão do Sudão do Sul na agenda internacional através de um incessante trabalho de advocacia nos fóruns internacionais e eclesiais;
  • Propôs a ideia do referendo para a autodeterminação através da campanha «Deixem o meu povo escolher.»

3. Igreja à procura

O Arcebispo Católico Paolino Lukudu Loro de Juba disse que a geração que guiou a Igreja durante os longos anos da guerra devia passar o testemunho, mas só o bispo Paride Taban de Torit o o fez, reformando-se aos 69 anos, na véspera do acordo de paz, para começar uma experiência inovadora: a Aldeia da Paz da Santíssima Trindade em Kuron: uma aldeia que recebe gente de tribos que se digladiam por causa do gado e fazem a paz através da agricultura e do desporto «para construir um oásis de paz onde as comunidades vivem em harmonia total explorando o seu potencial total para transformar as sua vidas/aldeias.»

Com a paz, a torneira das ajudas fechou e os bispos foram obrigados a buscar novos financiamentos para reconstruir as finanças incluindo contratos sem grande futuro com investidores chineses: eles constroem, exploram por 15 a 20 anos, pagam uma pequena renda, e depois passam a propriedade à igreja pronta para a demolição.

Os bispos formam uma conferência episcopal incapaz de tomar e implementar decisões rápidas: a mudança do secretário-geral da conferência levou dois anos a concretizar… E no Sul do Sudão estão mais preocupados com a sua autonomia do Sudão que ajudar aquela Igreja perseguida pela regime e que tanto fez para receber os deslocados do Sul durante os anos 80 e 90.

Os Bispos governam a igreja como chefes tradicionais e não prestam contas a ninguém. Quando o membro de uma ONG católica alemã visitou o Sudão do Sul para verificar como alguns bispos estavam a usar o dinheiro que tinham pedido para projetos concretos, um dos purpurados questionou: «Quem é o senhor para me perguntar isso?»

A Igreja denuncia a corrupção, o tribalismo e nepotismo, cancros que comem o tecido social do Sudão do Sul, mas que ao mesmo tempo não é transparente com a sua administração e não investiga os casos de corrupção… Na escola secundária Daniel Comboni sumiram uns 10 mil Euros das matrículas em oito meses em 2009 e a administração diocesana não se preocupou em descobrir como ou para onde o dinheiro foi…

4. Igreja viva

A Igreja continua à procura do seu caminho no tempo de paz mas continua viva:
  • Organizou um programa especial 101 Dias de Oração pele Paz para preparar o referendo de autodeterminação a 9 de Janeiro de 2011. O Programa correu de 21 de Setembro de 2010 – Dia Internacional da Paz – a 1 de Janeiro de 2011 – Dia Mundial da Paz. Envolveu também outras igrejas e além de oração, procissões, um dia de jejum, também incluiu plantação de árvores, campanhas de limpeza…
  • Os bispos católicos e protestantes e o Conselho das Igrejas continuaram a preparar mensagens para guiar as pessoas durante os momentos críticos do referendo, independência, durante os confrontos que mergulharam o país no medo a partir de 15 de Dezembro…
  •  Deu protecção a milhares de pessoas que se refugiaram nos seus adros durante os confrontos étnicos das últimas semanas.
  • O poder político pediu aos dirigentes religiosos – cristãos e muçulmanos – que liderassem o tão necessário projeto de reconciliação nacional e confiou-lhes a iniciativa apesar de nem sempre colocar o dinheiro onde tem a boca…
5. Igreja mestra

Na Etiópia, com o povo Guji, aprendi a evocar Deus como pai e mãe, avô e avó, bisavô, o que nos deu à luz, uma experiência que me ajudou a viver Deus como o Antepassado comum.

No Sudão do Sul, aprendi a rezar Allah Kareem – Deus é generoso: uma evocação muito comum em árabe.

Sim, Deus é generoso através das pessoas que nos envia – em Juba fiz amizades muito lindas e profundas até com gente fora dos círculos eclesiais – e pela experiência profissional de um jornalista a narrar o dia-a-dia de um país em construção.

Aprendi a apreciar as missas longas – pelo menos de duas horas – e vividas intensamente até ao suor e quase à exaustão no cantar e dançar, debaixo dos pés de manga, das árvores nim, nas capelas simples da periferia da capital, especialmente nos meus sítios preferidos: Mori, na outra margem do rio, e Walawalang, por detrás do aeroporto junto ao canal, onde me deram um nome novo: Tombe, o primogénito, por tentar aprender a ler a língua Bari para celebrar a missa. Tenho saudades dessas experiências da presença palpável da energia de Deus presente no seu povo.

7. Igreja minha

Uma amiga enfermeira canadiana que trabalhou três anos como voluntária na Etiópia e com quem mantinha conversações interessantes sobre homossexualidade, divórcio, aborto e outros temas quentes, um dia perguntou-me: «Joe, todas essas patranhas cometidas pelo pessoal do Vaticano nunca te tentaram a deixar o ministério?»

«A minha própria experiência de pecado ajuda-me a entender o pecado dos outros», foi a resposta que lhe dei.

A mesma atitude mantenho hoje: com a Igreja e como a Igreja sou casto e prostituto, Santo e pecador: o ying e yang da minha experiência cristã.

(Testemunho para ciclo de debates «Uma Igreja despojada» na paróquia de Santa Isabel - Lisboa)

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