19 de janeiro de 2014

ESPERANÇA DE PAZ

Negociações de paz em Adis-Abeba © MLomayat
Caros amigos e amigas, muita paz.

Escrevo a vocês com mais notícias sobre a situação no Sudão do Sul. Mais uma vez, quero em nome do nosso povo, agradecer a todos vocês pelas orações e manifestações de solidariedade para com o povo sul-sudanês e para connosco missionários e missionárias presentes no Sudão do Sul.

Em segundo lugar, reafirmo que estamos ‘bem’ aqui na missão de Leer. Já passamos por momentos um tanto difíceis, tensos, mas agora a situação está mais calma em Leer.

Em terceiro lugar, desejo brevemente descrever a situação no geral. Hoje faz mais de um mês desde que os conflitos começaram em Juba na noite do dia 15 de Dezembro de 2013 a partir de uma confusão entre a guarda presidencial e outras forças. O que se desenrolou depois revela uma trágica briga por poder entre as principais autoridades. O exército se dividiu entre as forças insurgentes leais ao vice-presidente deposto e as tropas do governo, envolvendo principalmente as duas maiores tribos do país.

Juba, a capital do Sudão do Sul, hoje está mais calma. Muita gente deixou a cidade, mas concentra milhares que se refugiam nas bases da ONU.

Os conflitos no entanto se espalharam por outras regiões e hoje afetam sete dos dez estados, sobretudo nas regiões central e leste do país. Tudo isso tem um grande custo, sobretudo humano. Além da destruição das poucas estruturas públicas (e algumas privadas), muita gente perdeu a vida, quase todas pessoas inocentes. Não se sabe ao certo sobre o número de mortos, mas são milhares. Fala-se em chacina, massacre, estupros, assaltos e outras graves violações dos direitos humanos.

Estima-se que o número de pessoas que fugiram de suas cidades por causa dos conflitos passe dos 470 mil. A maioria delas estão nas bases da ONU, escondidas no mato ou em cidades onde não há conflitos. Muitos se refugiaram em países vizinhos. Isso gerou uma crise humanitária enorme. Há pouca comida, água, remédio e abrigo.

É incrível a forma rápida como chegam armas e munição e é muito triste e revoltante a forma lenta como chegam alimentos, remédios e proteção. Tem sempre alguns poucos que lucram com as guerras e conflitos.

Bor, capital do estado de Jonglei, foi a primeira a ser dominada pelas tropas dissidentes. Hoje, sob domínio do governo, é uma cidade ‘fantasma’ e destruída. Várias vezes passou das mãos dos ‘rebeldes’ para as do governo.

Malakal, capital de Upper Nile e da nossa diocese, foi a segunda a ser dominada. Hoje está nas mãos dos ‘rebeldes’ e parcialmente destruída. Domingo passado um barco com mais de 200 pessoas em fuga naufragou no Rio Nilo. Todas morreram. Um segundo barco sofreu um acidente.

Bentiu, capital de Unity, nosso estado, está nas mãos do governo. É outra cidade ‘fantasma’e destruída. A população fugiu. Milhares vieram para Leer, a maioria caminhando. Homens, mulheres, crianças, idosos, doentes caminharam 130 km até Leer e outras localidades em busca de proteção e alimentos. Muitos ainda estão na estrada. Muita gente foi assaltada no caminho. As tropas ‘rebeldes’ retornaram de Leer para Bentiu com muitos jovens recrutados para retomarem a cidade. A mesma ação os ‘rebeldes’ pretendem fazer em Bor.

Em quarto lugar, desejo descrever como estamos em Leer. A cidade continua isolada. Isso, de certa forma, garante ‘segurança’. Tropas externas não chegam facilmente. Também não haveriam razões para um ataque em Leer. O maior momento de tensão foi quando as tropas do governo tomaram Bentiu dos ‘rebeldes’ e o povo, junto com algumas tropas ‘rebeldes’, fugiram para Leer. Ainda há muitos soldados em Leer. Com medo de um ataque, muita gente de Leer fugiu com seus rebanhos para um lugar mais seguro. Agora começam a retornar a Leer. O que nos traz insegurança e preocupação é a presença de muitos soldados e civis com armas.

As ONGs que operam em nosso estado evacuaram. Permaneceram somente os Médicos Sem Fronteiras e a Cruz Vermelha, além da ONU com algumas forças de sua missão de paz. Nós, missionários Combonianos e Combonianas, também resolvemos ficar.

As dependências das ONGs e até da ONU em Bentiu foram violadas e saqueadas. Alguns veículos de particulares e das ONGs foram tomados à força por soldados ou por civis armados. Na última quarta-feira, dia 15 de janeiro, três soldados e um comandante entraram nas dependências da missão e queriam levar os carros da igreja. Conseguimos convencê-los de não os levar. Foram às dependências das freiras e queriam levar o carro delas. Chegaram a ameaçar uma irmã comboniana com um galho para dar-lhe uma surra. Conseguimos intervir e acalmá-los até que nos deixaram. Ninguém se machucou. Foi o único assédio e animosidade que sofremos nesses conflitos.

Em situações como a que vivemos não existe lei. Além da insegurança que se instalou, enfrentamos também a crise da insegurança alimentar. Os que fugiam para Leer precisam de comida e no mercado existe pouca e além disso é muito cara. Os refugiados se cadastram com a Cruz Vermelha, mas infelizmente tem chegado pouco alimento. A fome que já existia onde o povo comia só uma vez por dia, agora aumenta e tem gente que nem comida para um dia tem.

A nossa paróquia acolheu algumas famílias e estamos procurando a melhor forma de ajudá-los. O hospital de Leer (MSF) está cheio e continua recebendo pacientes feridos de outras cidades. São trazidos pelos aviões da Cruz Vermelha e dos Médicos Sem Fronteiras (MSF).

Em quinto lugar, queria dizer que nem tudo é tragédia. Existe muita solidariedade entre o povo. Em todas as casas e quintais tem gente. A hospitalidade do povo Nuer é incrível. Uma viúva com família grande acolhe 15 pessoas em sua casa. Confia na Divina Providência para manter esse povo todo. Muita gente é acolhida ao longo dos 130km de caminhada. Às vezes é suficiente um copo de água e uma dormida. A fé e a esperança também são grandes. E assim são muitos pequenos milagres.

Escuta-se muitas estórias tristes, mas também sobre muita ação solidária. Não é preciso muitas palavras. O amor fala mais alto concretamente. Além disso, a boa notícia que lhes queria comunicar é que neste último sábado (18/01/2014) as delegações que negociam o acordo de paz na Etiópia conseguiram assinar um acordo de paz que foi aceito pelo presidente. Com isso se espera que os combates se encerrem para permitir mais negociações. Queira Deus que esse acordo inicial seja cumprido por ambas as partes e não haja mais mortes e destruição. Deus seja louvado por isso.

No entanto, é preciso continuar rezando. Muita coisa precisa mudar para que haja paz definitiva. O acordo para o cessar-fogo, porém, nos traz esperança de paz e um pouco de tranquilidade. Continuem com as orações pela paz e reconciliação. Muita gente reza por nós e connosco e já se sente e vê os frutos das orações.

Fiquem com Deus e muito axé.
Pe. Raimundo Rocha, Missionário Comboniano em Leer, Sudão do Sul

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