Feliz da Costa Martins, em Nyala - Darfur
Fomos ouvindo, com pena e
resignação, várias comunicações de D. Michael Didi, o novo bispo da diocese de
El Obeid, que manifestava o desejo de levar a efeito a sua primeira visita pastoral
à nossa paróquia de Nyala. Porém, os apontamentos adiados à espera de novas
oportunidades são factos do dia a dia nesta zona conflituosa do Sudão. Já nem
sequer consideramos grande surpresa que alguém se veja com a sua viagem, terrestre
ou aérea, porventura anulada sem aviso prévio. A causa e a razão deste grande
problema conduzem-nos sempre à mesma origem: a acentuada precariedade da
segurança desde que começou, em 2003, o conflito armado no Darfur.
Prioridade alterada
Após várias tentativas sem
sucesso recebemos, finalmente, a confirmação da notícia que os cristãos de
Nyala, por sua vez, acolheram com grande
expectativa e imensa alegria. Estava tudo a postos para recebermos o prelado na
nossa paróquia. Entretanto, na última da hora, mais um contratempo surgiu.
Desta vez, o problema não vinha da falta de segurança no Darfur mas sim do lado
oposto, os Montes Núbios, na parte Este da diocese. Os voos comerciais no
aeroporto de El Obeid foram imediatamente cancelados, funcionando somente os
voos militares.
Que tinha, acontecido? Do Kordofão
do Sul ecoaram gritos de sofrimento e morte que deram prioridade máxima a
qualquer outro plano na agenda do novo bispo. Trata-se dos Montes Núbios, a sua
pópria terra natal, onde uma velha guerra nestes últimos dias, ferozmente, se
reacendeu. Quis imediatamente partir de El Obeid na direcção da referida emergência
catastrófica. Entretanto, já não teve tempo de nada, pois os acessos tinham
sido fechados. O exército governamental continuava a bombardear a cidade de
Kadugli, a capital do estado federal do Kordofão do Sul. Aldeias saqueadas,
queimadas, destruídas. Mulheres violadas. Por outra parte, a solidariedade
humana não deixa de unir os corações à volta das vítimas da crueldade da
guerra. E surgem, aqui e além, campos de desalojados onde são socorridas as desventuradas
e infelizes vítimas.
Em casa da Sra. Mariam
Desde Nyala íamos seguindo
as notícias de várias emissoras sobre a guerra dos Montes Núbios. Mas a voz mais
fiável e verdadeira vinha-nos da Sra. Mariam Cucu (sua fotografia na contracapa
e interior de Mundo Negro Junho 2012). De origem núbia, ela pertence ao grupo
dos catequistas aqui em Nyala, onde reside desde há várias dezenas de anos. Embora
com algumas intermitências da rede, as notícias chegavam-lhe em conversa
telefónica com um ou outro dos seus irmãos em Hiban, sua aldeia natal, nos
Montes Núbios. Num desses últimos telefonemas, ela foi conhecedora de que um
conjunto de pessoas, tendo conseguido chegar a pé de Hiban até El Obeid (cerca
de 300 kilómetros), fora recebido por D. Michael, a quem relataram pormenores
do que estava a acontecer. Atravessaram infernos, tendo escapado à morte que
viram em cadáveres espalhados pelas colinas e vales por onde passavam. Consigo traziam suas histórias e também as de
outras pessoas, muitas delas seus familiares e amigos que, num ápice, deixaram
de ser deste mundo, voando pelos ares no redemoinho de bombas despiedadas. Contavam
também histórias de mães que procuravam seus filhos entre os escombros e
gemidos de moribundos.
Quase um mês mais tarde, o
bispo núbio que, finalmente, já se encontrava entre nós em Nyala realizando a
prometida e desejada visita, aceitou com gosto e prazer o convite da Sra.
Mariam com seu marido Ibrahim Judrán e os seus cinco filhos. É uma das poucas
famílias núbias que se estabeleceram aqui desde os primeiros tempos desta antiga
guerra no Kordofão do Sul. No espaçoso pátio de sua casa, enquanto sorviamos o quente
e delicioso chá de menta, falou-se, inevitavelmente, de algumas histórias que
muito dificilmente se apagarão das nossas mentes. Histórias estas de crimes
cometidos contra a humanidade que se tornaram realidades-irmãs de outras aqui
no nosso Darfur e que o mundo nomeou de genocídio. Histórias aquelas dos Montes
Núbios cuja mágoa se torna ainda mais profunda devido à agravante de que a igreja
daquelas terras está a ser directamente afectada nos seus agentes de pastoral e
evangelização. Padres, catequistas, religiosos e religiosas deram-se à fuga
juntamente com a multidão. Subiram montes e desceram vales, penetraram nas
densas florestas do Sul do país, procurando todos juntos um lugar seguro para
as suas vidas. Teme-se pela morte do diácono permanente Abbás que ainda hoje,
no acto em que escrevo estas linhas, continua desaparecido.
Lá mais para o fim da tarde
foram chegando alguns vizinhos, entre eles uma família de muçulmanos; todos
queriam cumprimentar a ilustre visita. Antes da nossa despedida, o pátio da casa
da catequista núbia converteu-se fácil e naturalmente em local de oração onde
se partilharam intenções e preces, especialmente pelo povo da martirizada tribo
dos núbios.
Recordando expulsão
De volta à residência
paroquial, foi então que D. Michael me perguntou:
- Li o teu nome no diário da
diocese numa ocasião em que esta se encontrava em situação de emergência e perigo.
Não estavas tu, Pe. Feliz, no número dos que foram expulsos dos Montes Núbios por
causa desta mesma guerra que já naquela altura se tinha mostrado tão cruel?
- Sim, em Março de 1989, -
confirmei.
Porém, não tendo ficado
satisfeito com somente referir a data, não pude senão citar alguns pontos
essenciais da situação em causa, e acrescentei:
- Naquele tempo eu era pároco da missão de
Delenj. Comigo foram também expulsos treze missionários e missionários/as
estrangeiros que trabalhavam noutras missões igualmente situadas no Kordofão do
Sul. Muito embora a autoridade governamental não usasse literalmente o termo expulsão,
nós sentimos-lhe todo o peso e violência. A ordem de ijlá, evacuação,
foi-nos mandatada por escrito e entregue pessoalmente por mão de um militar
enviado à missão, obrigando-nos a abandonar os nossos lugares dentro de setenta
e duas horas. A razão alegada no documento oficial que nos fora entregue
pessoalmente era a nossa segurança física, sendo a causa o agravamento da
guerra nos Montes Núbios. No entanto, no mesmo ofício lia-se também,
expressamente, a proibição da prática de qualquer forma de culto cristão. Coisa
realmente estranha! Por um lado, a evacuação para nossa segurança física e, por
outro lado, a proibição do culto religioso; duas alegações que não têm nada de
comum entre si. Pelo que ainda hoje me pergunto qual fosse o verdadeiro motivo
da nossa expulsão...
Finalmente em Nyala
Entretanto, chegámos à casa
paroquial. E, neste preciso momento, peço desculpa ao estimado leitor pelo
atalho por onde julguei oportuno e necessário desviar o nosso distinto hóspede,
registando a sua presença em casa da catequista núbia Mariam Cucu. Agora sim, é
meu dever trazê-lo de volta alguns dias atrás e fazer uma apresentação oficial
desde o início da sua visita pastoral.
Os paroquianos começaram a
aparecer desde manhãzinnha para, em festa, brindar as boas vindas de gala ao
seu novo bispo que vinha a Nyala pela primeira vez. A sua chegada, segundo nos
tinha informado de El Obeid, seria pelas nove da manhã. Porém, as horas iam-se alongando e não se viam
sinais de nada. Ele próprio nos comunicou uma, duas e três vezes, desculpando-se pelo atraso.
Pelas cinco e meia da
tarde, finalmente, o prelado deu entrada no adro da igreja, onde o esperava um
grande número de fiéis. Tinham, na verdade, dado prova da sua paciência. A
pouca sorte coube, porém, ao carneiro, o animal a que não só haviam pedido a
paciência da espera mas sim tudo quanto tinha de seu: a própria vida. Foi
degolado ali mesmo à entrada do portão do recinto da igreja. E enquanto o
sangue jorrava para o chão arenoso o ilustre hóspede, num passo alto, longo e
solene, avançou por cima do animal sacrificado, ao mesmo tempo que redobravam
os zagarid, as aclamações em forma de gritos estridentes típicos das
mulheres sudanesas de corações em festa.
Mabruc aleicum, felicidades e
parabéns, ouvia-se aqui e além a saudação de alguns vizinhos muçulmanos que
não hesitaram em aparecer nesta hora, partilhando o júbilo de seus amigos cristãos
pela visita do seu lider espiritual. Apesar do cansaco, a alegria via-se bem
impressa no rosto de todos que, havia vários dias, preparavam, os simples mas
simbolicamente grandes números da festa que, finalmente e com orgulho, poderiam
agora realizar. As tâmaras e o refesco do carcadê, o chá vermelho, servidos
pelos jovens que circulavam no meio da gente, deram ainda mais realce ao brinde
da feliz ocasião. O Sr. Deng Mabil, o tesoureiro do conselho paroquial, quase
se escusava no meio da gente: ‘isto é uma coisa muito simples e pobre, mas o
mutran, o Sr. Bispo, vai ficar mais de uma semana entre nós’. E, como que
revelando um meio segredo, concluiu: ‘o sacrifício do borrego foi só para dar o
sinal da abertura dos dias que se seguem, cujo momento mais alto será no
domingo.’
Já anoitecia quando os
tambores pararam de arrufar. Despedindo-se com certa relutância, algumas
mulheres com os seus pequenotes foram as primeiras a abandonar o recinto. Terão
mais sorte do que outros que se descuidam, talvez ficando até mais tarde. Para estes,
o perigo poderá estar à espreita em qualquer esquina. É que os soldados da
ronda nocturna não brincam em serviço e não poupam ninguém. Para quem
ultrapassa as dez da noite, a hora do recolher obrigatório, será afortunado se
conseguir chegar a casa em vez de constrangido a passar a noite na esquadra da
polícia.
Encurralados
Nos dias que se seguiram, além dos encontros com o
pessoal específico da comununidade das irmãs da Caridade e a dos missionários
combonianos, D. Michael visitou os sete centros/capelas e respectivas escolas e
jardins de infância, nos subúrbios da cidade. Como ele próprio se apercebeu, Ichlaque
é o lugar onde se encontra o maior número de cristãos. Situa-se na grande zona militar de Nyala. Foi
aqui que nos encontrámos com o Sr. Anthony Creb. É, ou mais exactamente, era sargento.
Tem cinquenta e seis anos. Todos o apreciam pela sua disponibilidade servicial
nas actividades sociais em geral e da igreja. Depois de uma saudação alongada, ao jeito
sudanês, não descansou enquanto não referisse, pessoalmente, o ponto da
situação ao el qaid, o comandante da nossa dicese de El Obeid, como ele
espontaneamente lhe chamava. O prelado, não
pôde senão acolher – e fê-lo de bom grado – a clara intenção do ex-militar que
tinha, certamente, algo de muita importância para lhe comunicar. Os dois sentados
num dos bancos da pequena escola do centro/capela de Ichlaque, o bispo mostrou-se
todo ouvidos para o seu interlocutor.
- Pensei que não iriamos ter tempo de nos conhecermos,
mas o atraso da sua visita coincidiu com o atraso da minha viagem e da dos meus
colegas para o nosso novo país, o Sudão do Sul.
E continuou: o único trabalho na minha vida foi no
exército. Eu sei que, para um cristão, o participar na guerra não tem justificação mas, como militares, o combate era parte da nossa
vida. E, mais ainda, no nosso caso de sulistas, pois nos vinte e tal anos de
guerra civil, tocou-nos a má sorte de termos de combater contra os nossos
próprios irmãos do Sul. Mas para quem não quisesse ver os seus filhos sofrer a
fome, este era o emprego à mão. Estou certo que Deus, que sabe tudo, compreendia
bem a nossa maneira de actuar nas batalhas quando nos encontrávamos frente ao
nosso inimigo-amigo-irmão sulista. Custava-nos muito manter o dedo no gatilho
da kalashnicov; Deus nos perdoe... Agora, felizmente, os ventos mudaram. Desde
o passado 9 de Julho, dia da independência do Sul do país, fomos, natural e
justamente, despedidos dos nossos postos de trabalho. Entregámos a farda e a
arma, prontos para, no espaço de poucos dias, nos juntarmos aos civis que para lá
se dirigem continuamente.
O prelado continuava a escutar com interesse o sargento
que, por sua vez, lhe pediu só mais uns minutos.
- Está à vontade, Anthony, e não te preocupes; o tempo é
nosso.
O ex-militar agradeceu e continuou a falar:
- De certeza que o Sr. D. Michael não pensava encontrar aqui
um tão grande número de sulistas e cristãos. Nenhum de nós, de facto, imaginava
que a situação chegasse a este ponto. A razão é simples: um número considerável
de militares que trabalhavam nas unidades espalhadas por todo o Darfur do Sul fixaram-se
nesta cidade, Nyala, a capital do estado federal, na esperança de deixar o país
de uma vez para sempre. O que viria a acontecer, apenas recebessem a justa paga
da pensão/reforma dos anos acumulados de trabalho no exército. Com boa
fé na palavra das autoridades militares que tinham dito lhes pagariam dentro de
dias ou semanas, também eles, tal como todos nós, pensavam partir brevemente.
Mas já lá vão seis meses. E, como se fosse pouco, muitos dos ex-militares enviámos
as nossas famílias para o Sul (os solteiros sao pouquíssimos entre nós), na
esperança de, dentro em breve, podermos também juntar-nos a elas. E ainda aqui
estamos, todos sem trabalho, alguns sem habitação e, além disso, outros,
separados da mulher e dos filhos. A tudo isso junta-se o mal-estar de que, se
antes éramos apenas tolerados, agora fazem-nos sentir o peso de estrangeiros
não desejados. Abriram-nos uma porta de saída que é trucada e enganosa que nós
não usaremos enquanto não recebermos o que nos é devido. Estamos encurralados;
mas não estamos dispostos a ceder. Confiamos em
Deus que é justo e fiel. Ele não nos há-de abonadonar.
Finalmente, o Sr. António
levantou-se, devagar, e disse: ‘não pensava estar aqui hoje, mas dou graças a
Deus por poder conhecer e receber em Nyala o mutran bitana, o nosso
bispo. Obrigado pela sua visita!’ D. Michael pensou dirigir-lhe, talvez, uma palavra
de consolação e encorajamento. Mas o sargento não esperou. Já a caminho do
portão, voltou-se para o seu el qáid e, levando a mão ao peito numa
ligeira vénia, gesto típico de saudação na sociedade sudanesa, repetiu ainda:
Muito obrigado por ter vindo até nós!
O grande domingo
No sábado à tarde havia grande
azáfama no adro da igreja na preparação
de tudo o necessário, desde a limpeza e enfeites à montagem das siuanát, as tendas
grandes e típicas que se usam no Sudão para as ocasiões de festa. Não faltou a
barraca da cozinha improvizada onde um grupo de senhoras voluntárias se
encarregaria de preparar a comida. O touro e os dois borregos esquartejados ali
mesmo ao lado seriam parte principal do menú. A refeição seria servida imediatamente
depois da celebração da missa festiva do dia seguinte, o grande domingo.
Ainda o sol não tinha
nascido quando o som metálico do portão do adro chegou aos ouvidos das senhoras que tinham trabalhado durante toda
a noite na cozinha. O grupo das inocentes crianças que estavam do lado de fora
ouviram o que não esperavam: ‘ainda é muito cedo, venham mais tarde’. Ao que
eles responderam prontamente: hoje é domingo de festa especial e nós queremos
cumprimentar o mutran bitana antes da missa. Seguiu-se um certo diálogo agitado e o portão
ainda fechado. Mas a chefe da cozinha foi-se aproximando, desaccionou o trinque
e eles empurraram a porta delicadamente. Viram o sorriso desenhar-se nos lábios
da senhora que lhes disse: ‘têm razão, meus meninos; com festa em casa não se
fecham portas’. No entanto, não entraram sem ouvir o justo recadinho: agora,
vão e esperem dentro da igreja, que o mutran lá vos irá encontrar.
Perante o facto de muitas
famílias já terem partido para o Sul, com certeza que não seria de esperar que
hoje, ainda antes da santa missa, a igreja e o adro estivessem repletos de fiéis. Mas a
verdade é que a multidão cobria todo o espaço livre. Concordo com o meu colega
e pároco Pe. Asfaha que, sorrindo, comenta que a fé também é feita destas
coisas. Referia-se à visita do bispo e ao
almoço oferecido que juntam hoje tanta gente aqui no mesmo lugar.
As doze pequenas bailarinas
também tinham marcado apontamento cedo para as últimas provas, pois não queriam
fazer má figura num dia tão importante como este. E, quando chegou a hora da
santa missa, vimo-las apurar as suas posições na extrema dianteira da procissão,
prontas para executar com graça e maleabilidade a primeira das melodias que as
vozes, ao ritmo dos tambores, lançavam no ar. E assim sucessivamente, ali perto
do altar, acompanharam com belas danças os cânticos ao longo de toda a celebração,
imprimindo alegria e beleza às várias partes da festa eucarística.
Antes do final da liturgia,
duas pombas brancas voaram soltas das mãos do presidente da celebração, enquanto
ecos da sua homilia povoaram à minha mente. ‘Abramos as portas ao Espírito Santo
e deixemo-Lo entrar na nossa vida, nos nossos costumes e tradições e Ele nos
guiará ao ritmo da fé que um dia professámos, aquando do nosso baptismo’. Na execução
do cântico final, as pequenas bailarinas, como se acordadas num mesmo
sentimento de inércia que as moveu a não parar o ritmo da dança, contagiaram o
grupo coral e os muitos fieis à sua volta que, por sua vez, continuaram também a
cantar entusiasmadamente. O Sr. Bispo partilhou a cena com alguma surpresa e
muita alegria, sugerindo ainda que se repetisse o lindo cântico que tinham
executado logo após a administração do Crisma aos catorze rapazes e raparigas.
Alguém se apressou a trazer o acordeão, o instrumento que eu tinha apenas usado
na igreja para acompanhar a referida canção. Os tambores também apareceram
nesse mesmo instante. Umas vozes contagiavam as outras e o coro iniciou:
“elleila yom machhur akhadna fihi ettasbit... hoje é um dia grande para nós,
hoje recebemos o Crisma... vinde, irmãos, partilhar a nossa alegria...!
Enquanto uns cantavam e bailavam, outros moviam-se por
tudo quanto é sítio nas dependências da
igreja, desde a sacristia aos vários quartos e salas, recolhendo o que julgassem
necessário para o próximo acto. Em poucos minutos o recinto da igreja ficou
pronto com pequenas mesas, cadeiras e bancos de toda a cor e feitio. A seguir,
recheadas de apetitosa comida, vieram as sinias, semelhantes a bandejas
gigantes de alumínio tosco, tipicamente usadas em todo o Sudão nas ocasiões de
grandes festas e convites. De forma circular e de tais proporções que me fazem
recordar a expressão portuguesa ‘grandes
do tamanho da roda de um carro’ (de bois). Arrumado o acordeão, foi a vez de me
sentar, completando o número dos comensais que, segundo os organizadores da
festa, estava marcado na sinia do Sr. Bispo com o Pe. Asfaha , a irmã
Jean, o irmão comboniano Abele e três membros do conselho paroquial. Este é um
cenário conhecido em qualquer grande festa de muitos convidados: grupos de sete
ou oito pessoas à volta da sinia pousada em cima de uma pequena mesa ou
no chão de areia. A Regina, uma das jovens do Crisma apareceu, trazendo um sorriso
desenhado na face e água no ibrique, semelhante a um pequeno regador de
plástico. Toalha de enxugar não era necessário. Mãos lavadas, a água escorre
para o chão. Dispensam-se também os talheres que, ao fim e ao cabo, só viriam
estorvar e complicar a acção de comer juntos do mesmo prato. “Bom apetite” –
ouviu-se D. Michael Didi, tentando fazer chegar a sua voz às mesas mais
distantes. A Regina e outras companheiras continuavam de mesa em mesa,
oferecendo sorrisos e água, no mesmo gesto servicial; o chão arenoso a ficar
húmido e o ar límpido, sem poeira.
Olhando em volta, fiquei
contente em ver as jovens professoras Assmá, Kalthum, Nafissa e outras que se distinguiam
facilmente pela sua tarha, o véu que usam a maioria das sudanesas
muçulmanas, deixando-lhes o rosto modestamente descoberto. Presentes estão
também outros seus colegas muçulmanos que, juntamente com elas, ensinam nas
nossas escolas católicas dos bairros de Taiba e Jir. Mas, por mais que os meus
olhos procurem, não vejo os professores da grande escola do campo de
desalojados de Bileil. Não vieram? Estarão ainda a caminho? Sabemos que os dois
pontos de controlo nos 18 Kms de distância que nos separa de Bileil apresentam
dificuldades especiais nestes dias, inclusivamente para os professores tais
como Daud, Fátima e Mahdi, caras já conhecidas pelos soldados de turno. A
chance será muito mais apertada para os novos que só começaram a leccionar este
ano lectivo.
Hussein quer ser cristão
Não muito longe da nossa
mesa, avistei o simpático Hussein Mohammad. Vinte e sete anos, casado. Procura
luz para a sua vida que, segundo me confidenciou, não tem encontrado no Islão,
a religião à qual pertence por direito e obrigação de nascimento. Desde que nos
encontrámos pela primeira vez, tenho procurado ser franco e claro a respeito da
religião cristã que ele deseja abraçar. Há pouco menos de uma semana, enquanto
caminhava em direcção ao hospital, onde trabalha como recepcionista, passou
pela igreja. Não é a primeira vez que o faz. Ele sabe que é sempre bem-vindo.
Tem gosto em conhecer e faz muitas perguntas no que respeita o cristianismo. Mais ainda, disse-me clara e distintamente que
queria ser cristão. Alegrei-me por este seu desejo; no entanto, não deixei de
lhe dizer pela última vez, no caso de que, porventura, ainda houvesse alguns
restos de dúvida:
- Hussein, uma vez que és
persistente sobre o assunto, é também de absoluta importância que fiques bem esclarecido.
Ser cristão é grandioso e belo mas não por isso deixa de ser também muito
exigente. Assim o é para mim e para todos os que o queiram ser de verdade. Não
te aconselho, absolutamente, a ter pressa em mudar de religião. E se este teu
desejo de hoje se tranformar numa futura
decisão por tua parte, não penses que poderás ser cristão de um dia para outro.
Levar-te-á, pelo menos, dois anos antes de ser batizado. Tu mesmo sabes que é altamente
arriscado para ti, visto que o Islão proibe os muçulmanos de mudar de religião,
sob a pena de perseguição até à morte.
O meu amigo muçulmano,
porém, mostrou estar bem a par da situação. De facto, está a ser tratado pela
família como um murtad, isto é, alguém que renegou e abandonou o islão.
Foi então que Hussein me disse que a sua mulher grávida, instigada pela
família, o abandonou porque via que ele não frequentava a mesquita, nem sequer à
sexta-feira, e não cumpria o mínimo dos deveres de muçulmano. Passaram mais de
dois meses antes da decisão de aceitar o
referido jovem numa caminhada catequética um tanto formal e organizada. Foi
assim que Hussein começou a ser catecúmeno, o único desta paróquia de Nyala,
neste tempo de instabilidade e transição em que não convém tomar compromisso deste
tipo com os sulistas, que estão, continuamente e a qualquer momento, de partida
para o Sul.
No decorrer do almoço,
enquanto se conversava disto e daquilo, eu trouxe o assunto à mesa. Ao meu
lado, o Sr. James, presidente do conselho paroquial, reagiu com um belo e
ecorajador testemunho a respeito do jovem acima mencionado:
- ‘Foi meu aluno na escola secundária’ – confirmou, a mão
suspensa no ar com um bocado de borrego que estava para meter na boca. E
prosseguiu: ‘um dia, durante o intervalo do fatur (refeição do pequeno
almoço tardio, a meia-manhã), veio cumprimentar-me enquanto atravessava o pátio
da escola. Mas era muito mais do que um simples cumprimento. Trazia uma
mensagem, talvez uma decisão da sua parte. E, como que medindo as palavras, foi-me
dizendo que queria tornar-se cristão. Foi a primeira e a única vez na minha
vida que alguém me tenha surpreendido com um conversa dessa maneira. Eu
respondi-lhe: devagar, Hussein! Essa é uma questão muito séria; não sei se
sabes quanto é arriscada essa tua decisão; tem calma e dá tempo ao tempo’.
O pessoal da mesa fez
comentários, realçando com louvor a coragem do jovem estudante muçulmano. O Sr.
James acrescentou ainda: isso já foi há mais de dez anos; se o rapaz foi
persistente até hoje, significa que a sua questão deve ser tomada a sério.
A D. Rosa Kontino, uma das
senhoras voluntárias da cozinha, apareceu a perguntar se queríamos mais comida.
‘Lá, shucran, teslam idêkum’, (não, obrigado, parabéns! Estava uma
delícia) – respondemos quase simultaneamente. E ela com um sorriso bem
desenhado nos lábios: ‘Afuan’,
ora essa, não tem de quê’. E retirou a sinia, enquanto uma das colegas pousou
na mesa, agora despida, alguns copos de chá de menta e outros de carcadê,
chá vermelho. ‘Para quem preferir café, já vem a caminho’ – disse. E
desapareceu por entre as mesas.
Pelas cinco horas da tarde,
algumas pessoas despediam-se do Sr. Bispo que se encontrava ali no meio da
gente, outras conversavam à vontade. Entretanto, ouvi o Sr. Deng comentar: que
eu me lembre, festa assim, tão completa, não houve até hoje. Tudo arranjado e
cozinhado aqui em casa, convite geral e aberto para a alegria de todos! Ao que
respondeu a mamã Ana, membro do conselho paroquial, com um toque de brio e
orgulho: o el qaid da nossa diocese bem o mereceu’! E continuou: ‘aliás, o sentimento que fica desta
visita é duplo, de boas-vindas e de adeus’. Afirmação que ninguém põe em dúvida
pois brevemente, e será uma questão de semanas, todos, excepto as pouquíssimas
familias núbias, esperam deixar Nyala e partir para o seu novo país do Sudão do
Sul.
Partida para El Daein
O Sol já se tinha escondido
para os lados do país vizinho do Chade quando o pároco sugeriu ao prelado que
talvez fosse melhor ir dormir cedo pois na madrugada do dia seguinte devia
partir para a El Daein. Tudo estava previamente
assegurado pelas Forças Armadas da Paz, os capacetes azuis (UNAMID em sigla
inglesa). Entretanto, houve uma chamada telefónica: ‘pedimos desculpa, Sua
Excelência, a data do voo foi alterada por motivos de segurança; surgiu uma
nova batalha entre os rebeldes e o exército do governo nos arredores de El
Daein; mantê-lo-emos informado sobre o novo horário de voo’.
Pela experiência de vários
anos no Darfur, essas batalhas, geralmente, não acabam tão depressa como se
espera e julga. De todos os modos, no dia seguinte, a informação foi de feliz surpresa:
‘há uma margem de possibilidade que nos permite voar sem grande risco; o helicóptero
levantará às quinze horas de terça-feira’. Isto é mesmo muita sorte, alguém
diria milagre. El hamdu lillah, graças a Deus!
No diário da missão de
Nyala ficou registado: D. Michael Didi, deu por concluida a sua visita
pastoral. Aterrou aqui em Nyala em 23 de Novembro de 2011, donde partiu no dia
29 do mesmo mês em direcção a El Daein. Foi pena não ter podido chegar até El
Gineina, o centro/capela mais longínquo, na fronteira com o vizinho país do
Chade. O exército da UNAMIDE aconselhara-o fortemente a não arriscar essa
possibilidade. Ficará para a próxima vez, cuja oportunidade, o pastor solícito
e zeloso da diocese de El Obeid, não há-de deixar passar, in chá Allah.
Senhor comandante, ajude-nos a partir
Passou uma semana depois da
partida de D. Michael. Se estivesse ainda hoje entre nós, teria agora o amigo sargento
Anthony Creb a pedir-lhe que o escutasse por mais uns minutos. Na mão trazia um
papel amachucado que lhe vi tirar do
bolso da camisa. ‘O que diz aqui – quis
ele assegurar-me – foi copiado a limpo e entregue ao comandante geral, enquanto
o grupo em massa dos quase 500 ex-militares faziam uma sentada à porta da sua
residência’. Depois de descodificar algumas palavras que a areia misturada com o
suor tinham quase apagado, acabei de ler o dito rascunho, que dizia o seguinte:
“Queremos o dinheiro das
nossas reformas.
Queremos partir e juntar-nos às nossas famílias, às
nossas mulheres e filhos que, já há meio ano, enviámos para o Sul.
Somos estrangeiros aqui no Sudão do Norte. Estamos
sem família, sem pão, sem lar.
Senhor comandante das
Forçs Armadas de Nyala, ajude-nas a partir!
Dei-lhe os parabéns pela
coragem que tiveram ao fazerem, no dia anterior, a manifestação pacífica.
- Não, eu não estava lá, -
corregiu. E acrescentou:
- é mesmo por isso que eu queria, pessoalmente,
falar com D. Michael. Mas, quando ele aqui vier de novo, eu espero já ter
partido ... conceda-nos Deus este milagre! Ao falar hoje contigo, abuna
Feliz, é como se estivesse a falar com ele.
Fui retendo na memória o que o sargento me ia dizendo, a sua voz sofocada
pela emoção. Ei-lo agora a falar, em conversa virtual, com o bispo de El Obeid:
«Sr. D. Michael Didi,
nosso qáid espiritual: a vida, por mais paciência que se tenha, não corre
sempre como queremos. Há algo dentro de nós que nos impele a agir e, por vezes,
até contra a nossa própria vontade. A paciência esgotou-se e a maior parte dos ex-militares
sulistas, meus companheiros, juntaram-se à porta da residência do comandante
geral em demonstração pacífica. Gritaram a plenos pulmões palavras enraivecidas:
‘queremos as nossas gratuidades! Queremos pão! Queremos partir!’ A resposta foi
uma rajada de balas, deixando dezenas
de feridos, alguns deles em estado grave. Senhor Bispo, eu estava a adivinhar
que a coisa ia dar para torto porque o exército (do governo) não reconhece demonstrações
pacíficas. De facto, resultou em violência. Eu não participei na manifestação mas
hoje estou arrependido e tenho vergonha de não ter partilhado esse gesto com os
meus companheiros. Não é que eu seja medricas, mas tinha posto a confiança na
minha oração para que Deus tocasse o coração dos responsáveis a agir com
justiça, de modo a recebermos o que nos é devido depois de termos prestado
serviço durante quinze, vinte e mais anos. Eu, pessoalmente trabalhei no
exército durante trinta anos. Queremos partir para o nosso país do Sul do
Sudão, mas não sem as nossas devidas pensões/reformas. Estou certo que esta nossa
forma de pensar não vai contra o modo de ser de Deus que não quer senão o bem
dos seus filhos».
Natal na missão de Nyala
Aproximava-se o dia 25 de
Dezembro e os responsáveis das várias actividades começaram a ocupar-se nas preparações
imediatas do Natal. Apesar de muitíssimos cristãos terem já partido para o Sul,
prevaleceu a ideia de que, à maneira dos anos passados, houvesse missa campal. A razão é simples: é que, uma
grande parte dos soldados cujos postos de trabalho era distante de Nyala
escolheram, quando despedidos do serviço militar, ficar a habitar nos arredores
da cidade, por motivos duma sobrevivência mais fácil. Seria um erro não contar
com eles e suas famílias, pois com toda a certeza não hão-de deixar de vir à ‘kanissa
umme’, igreja matriz, para as celebrações do Natal.
As decorações e os enfeites
na igreja e no adro eram sóbrios e modestos. Todavia, na sua máxima justiça, a
imagem do Menino Jesus e a tradicional estrela dos Reis Magos sobressaíam ali à
frente do altar. A missa da noite (?) teve início imediatamente depois do pôr-do-sol,
ainda com a última claridade do dia. Aquela da meia noite propriamente dita, a popularmente
chamada missa do galo é, infelizmente, por razões de segurança, uma
impossibilidade aqui em Nyala e em todo o Darfur. Mas não será a questão do
horário que nos vem abstrair os sentimentos de alegria, de maravilha e contemplação
próprios da noite de Natal.
Ao fim da celebração, as tâmaras
e os rebuçados foram o símbolo da
partilha da multidão em festa, enquanto se trocavam as alegres saudações
natalícias que ecoavam no ar, enchendo todo o ambiente: id milad said, Feliz
Natal! Esta quadra do ano, nesta parte do globo terrestre, não traz a
chuva ao pensamento de ninguém e, além
disso, o verdadeiro frio invernal ainda está para chegar. A noite é agradável e
convida os fieis a permanecer à vontade
e sem pressa durante alguns prolongados minutos, antes de tomar o caminho de
suas casas. Porém, este é um desejo que fica só no pensamento, pois o recolher
obrigatório encarregou-se de fazer o corte no tempo. Em poucos instantes fez-se
silêncio no espaço da igreja e do adro.
Faltam duas horas para a
meia noite. O céu pontilhado de uma imensidão de estrelas está aí a recordar a
paz que o Menino Deus veio trazer à terra. Que não todos encontraram ainda,
alguns preferindo criá-la a seu modo e bel-prazer por suas próprias mãos
manchadas de sangue. Nós, por nossa parte, continuamos a esperar que o Darfur e
tantas partes do mundo em guerra se disponham a encontrar essa paz que Jesus não
cessa de oferecer à terra inteira.
Ao surgir da aurora, alguns
cristãos já começavam a chegar, sobretudo os que tinham a responsablidade de
preparar o lugar para a missa campal no grande largo/praça onde desemboca a rua
da igreja. Por fim, tudo estava pronto: o altar bem visivel em cima do estrado/plataforma,
as cadeiras e os bancos, a aparelhagem sonora e as siuanát, as tendas
gigantes. Também não podiam faltar os contentores com água para beber, distribuidos
pelo recinto. Digo água, sim, pois aqui o inverno é estação seca por natureza e,
se bem que há temperaturas mínimas nocturnas que fazem temer e tremer quem não tem
casa e vestuário adequados, durante o dia ultrapassa facilmente os trinta graus.
A gente não parava de chegar.
A rua, a um certo momento, continuou a
oferecer o seu espaço aberto a todos aqueles que já não encontraram lugar à sombra
do coberto das siuanát. O número de participantes na missa campal
ultrapassava todas as expectativas: cerca de duas mil e quinhentas pessoas. No
princípio da eucaristia, ali perto do altar, reconheci alguns rostos de amigos
muçulmanos que, à semelhança dos anos passados, não quiseram faltar à festa do
Natal cristão. Estavam presentes também algumas dezenas de estrangeiros oriundos
das várias partes do mundo, membros de organizações humanitárias com sede aqui
em Nyala. A eles foi dirigida uma saudação e a leitura do evangelho em língua
inglesa.
Depois do cântico final, o
grupo coral continuou a cantar, à discreção, mais algumas melodias do seu repertório para gozo e
contentamento dos muitos fiéis que, apesar da hora já adiantada, não mostravam
pressa em abandonar o local. Uma senhora europeia aproximou-se e soltou em alta
voz um caloroso chucran! Mabruc! Obrigado, parabéns. Um deles agradeceu
o elogio e acrescentou: ‘quase ninguém de nós é propriamente do coro original; os
melhores cantores já partiram para o Sul e nós, enquanto aqui estamos,
propomo-nos fazer do nosso melhor’. Disse-o em lingua árabe, que a mencionada estrangeira
não captou mas, no entanto, fez questão de repetir ainda com mais entusiasmo o
que sabia muito bem pronunciar em língua árabe: chucran! Mabruc!
Natal sem fim
Ao aproximar-se as quatro horas
da tarde, os responsáveis mostraram intenção de levantar o conjunto das tendas
da missa campal com todos os seus pormenores, devolvendo a praça ao seu aspecto
nomal. Mas a compreensão e colaboração de quem os rodeava ia noutra direcção,
trazendo-lhes fortemente à memória que era dia de Natal e que aquele terreiro ainda
continuava a ser templo sagrado. Alguém apareceu com alguns pacotes de tâmaras
que comprou da carroça do vendedor ambulante que por ali passava naquele
momento. ‘Ah, assim até parece mais Natal!’ – ouviram-se vozes felizes.
Por casualidade, eu encontrava-me
no extremo oposto do terreiro, donde presenciei a referida cena, mas só a meio
tempo, não dando muita atenção ao que realmente se passava. Porém, o convite à
partilha que me chegou da parte deles, desfez em mim qualquer dúvida: ‘Id
milad saíd, ia akhuna ua abuna Feliz’! Feliz Natal, nosso irmão e
padre Feliz! Ao lado, o barril de plástico ainda com água. Somos mais de uma
dezena de pessoas saboreando agora as doces e deliciosas tâmaras secas à volta
da sinia pousada no chão. Youssif e Bakhita com os seus três filhos
pequenos, passam junto de nós, a caminho da aldeia. Olham, duvidosos e, por fim,
decidem fazer parte do grupo. Traziam com eles uma cesta de mangas que
depuseram ali ao lado das tâmaras. Outros e outros mais se juntaram a nós,
entre eles alguns muçulmanos; a roda humana foi-se alargando.
A cesta e a sinia ficaram vazias. Já
não há tâmaras, nem mangas, nem doces. Mas o Natal continua. Sentimo-lo vivo no
meio de nós. Entre as repetidas palavras de felicitações, distinguiu-se a voz infantil
e inocente da pequena Helen. Expressou
um desejo que é de todos e para todos: ‘Id milad mubárac’! Seja um Natal
abençoado! E, em linha de continuação da sua menina, ouviu-se da boca de
Youssif outra expressão que hoje, por ser o dia que é, Natal, todos têm gosto
em pronunciar: ‘Culla am ua antum bikhêr! Que o Natal vos colme todos os
anos com as suas bênçãos!
Responderam todos à uma: ‘bis
saha uas salama’! Saúde, paz e bem-estar! Mas o pai da menina projectou-se
ainda mais longe no tempo e no espaço, revelando-se pessoa universal. ‘As bençãos
do Menino Jesus sejam para todos e em qualquer parte do mundo, neste Natal e sempre’
– disse com fé e convicção.
As expressões linguísticas acima
citadas são algumas das frases naturais e espontâneas usadas no mundo árabe. Refrãos
que todos sabem de cor e que, por vezes, se dizem mesmo sem pensar. No entanto,
desta vez, pai e filha sentiram-lhes o seu profundo significado. Que todos e
cada um dos presentes captaram no seu íntimo. Para, em seguida, em voo solto, lançar
no destino infinito. Que as bençãos do Menino Deus cheguem a todos, em qualquer
lugar do mundo e sempre! O Natal não tem fim!