4 de fevereiro de 2011

REFERENDO



UMA AGRADÁVEL SURPRESA


Mais de 2,6 milhões de sul-sudaneses foram às urnas entre 9 e 15 de Janeiro para escolherem o futuro da região num ambiente de festa e paz únicos.

Mais de vinte mil observadores internos e internacionais seguiram todo processo desde o recenseamento até à contagem final. A avaliação foi comum: o referendo foi credível, bem organizado, pacífico, consistente com as normas internacionais e expressão genuína do eleitorado.
Apesar de ainda não haver resultados finais, projecções indicam que a opção pela independência foi a grande vencedora. O mais novo país da África é também dos mais pobres e precisa da comunidade internacional para se construir.
O embaixador António Monteiro seguiu o processo desde Setembro integrando o Painel do Secretário-Geral das Nações Unidas para os Referendos do Sudão. Em entrevista à Além-Mar em Juba, o ex-ministro dos Negócios Estrangeiros disse que o referendo foi uma agradável surpresa.


Além-Mar: Sr. Embaixador, como viu a preparação para o referendo?


Embaixador António Monteiro: Sabe que no início eu e os meus colegas do painel tivemos muitas dúvidas sobre a possibilidade de este referendo se realizar em boas condições dados os atrasos com que nós nos deparámos em Setembro quando fomos nomeados e também com as enormes dificuldades técnicas que se apresentavam à nossa frente. Também o facto de a comissão para o referendo ter sido nomeada tardiamente não era um bom indicador e portanto nós tínhamos algum receio que as coisas não pudessem seguir o caminho normal que depois nos levasse a sancionar o acto referendário. Devo dizer que só tivemos boas surpresas. A primeira delas foi que a Comissão e os seus diversos órgãos, incluindo o Bureau em Juba, e os próprios presidentes da Comissão e do Bureau, demonstraram uma enorme competência, maturidade, capacidade profissional, e conseguiram num curto espaço de tempo, abreviar e ao mesmo tempo, respeitado a lei, realizar todos os actos necessários para que o registo eleitoral começasse. Mas o aplauso maior deve ir para os Sudaneses porque foram capazes de levar este processo muito bem e fazer um recenseamento eleitoral que nós considerámos credível e que foi aliás aceite por toda a gente. Não houve praticamente reclamações.


A-M: O Sr. Embaixador visitou muitas partes do Sudão integrado no Painel das Nações Unidas. Qual é a imagem que guarda do Norte e do Sul país?


EAM: É interessante que são dois países completamente diferentes na paisagem física e na paisagem humana e ambos com encantos muito grandes e muito marcantes.
O Norte do Sudão é uma terra de história. Visitei o museu em Cartum e tive a sorte de ter um guia extraordinário e é impressionante a história do país. Só desejava ter tempo e um dia voltar para visitar todos os reinos e todas as ruínas que são extraordinárias e que existem no Sudão e notam um país com grande história e grande mérito na acção que teve em África e no mundo e com aspectos e com gente muito válida e muito interessante. Encontrei muita gente no Norte de grande qualidade na sociedade civil e na classe política, nas ONG e académicos que me impressionaram muito.
O Sul é um país belíssimo, é onde começa a África na sua imponência, de explosão tropical, muito mais verde e muito menos monótono do que o Norte, e também com uma gente extraordinária. Vê-se que é uma gente que soube ultrapassar as dificuldades com determinação, que tem uma visão quanto ao futuro o que é muito importante. E também há um aspecto que aqui me tem tocado muito que é o do subdesenvolvimento. É de facto uma zona onde praticamente está tudo por fazer. O povo sabe o que quer, os líderes têm visão, têm ideias mas há um trabalho enorme para fazer. E eu espero que, após a luta que eles têm travado que culminou na assinatura do acordo de paz e agora no resultado deste referendo, a comunidade internacional continue a reconhecer a necessidade de apoiar os Sudaneses e sobretudo, se eles votarem pela independência, apoiarem o novo Estado e dar-lhes as condições que as populações merecem.
Eu lembro-me de ter ido a Raja – que é um sítio recôndito como Terekeka, mas mais longínquo ainda – e onde fiquei surpreendido com a sabedoria, a calma com que as pessoas me queriam falar e também com a beleza primitiva do local, onde aliás está uma missão católica que me impressionou muito. Além disso, o contacto com as pessoas tem sido muito enriquecedor e uma experiência que eu não posso esquecer.


A-M: Um dos argumentos contra a independência do Sul do Sudão era que o país poderia tornar-se uma nova Somália e um Estado inviável, marcado pela falta de desenvolvimento, mas sobretudo pelo tribalismo. Acha que o Sudão do Sul é um Estado viável?


EAM: Eu creio que sim! É claro que o Sul do Sudão vai enfrentar dificuldades e obstáculos enormes, aliás como o Norte também vai continuar a enfrentar. Se houver separação, os dois países vão enfrentar problemas muito sérios e graves que necessitarão inclusivamente do envolvimento contínuo da comunidade internacional, não só das Nações Unidas, como naturalmente dos Estados Unidos, da União Europeia e de outros países que aqui têm actuado a favor da paz e que têm de continuar.
O facto de no Sul do Sudão haver muitas tribos é comum aos outros países africanos. Isso é consequência das fronteiras coloniais e da maneira como foram desenhadas. O Sul do Sudão tem dez Estados com problemas étnicos que não vale a pena esconder: está na cultura, está na tradição, está na história das tribos. Agora eu acho que também há consciência – e isso foi provado recentemente pelo diálogo intra-sul – de que a guerra não pode e não deve continuar. Os anos de luta contra o Norte criaram um certo espírito nacional. Eu sei que continua a haver aqui exércitos privados em praticamente cada Estado, mas o facto de os partidos terem feito um diálogo entre eles e terem chegado a um acordo e terem feito uma plataforma para este referendo e para o futuro augura um bom andamento. É necessário também que os dirigentes políticos entendam que têm de dialogar, que têm de dar lugar a uns e a outros, que não pode haver uma apropriação do poder. Mas eu acho que eles têm maturidade suficiente para isso e que as perspectivas para o desenvolvimento são tantas e as dificuldades para lá chegar tão gigantescas que eles compreenderão que aquele slogan que me foi dito aqui no Sul que «nós decidimos substituir as balas pelos votos» espero que se mantenha. E sobretudo que aqui se mantenha até um Estado democrático e que eles considerem que futuras eleições são essenciais para continuar a dar ao povo a capacidade de se exprimir como ele teve agora ocasião pelo referendo.


A-M: As Nações Unidas tiveram um papel preponderante no estabelecimento e na manutenção da paz durante os seis anos do período interino. Qual vai ser o papel da missão da ONU depois da independência a 9 de Julho?


EAM: O papel das Nações Unidas vai-se manter durante uns tempos. Primeiro, porque há problemas que ainda não estão resolvidos a começar por Abyei, temos o Darfur, o Cordofão do Sul, Nilo Superior… Problemas que se vão manter e necessitarão do envolvimento da comunidade internacional. Depois ente o Norte e o Sul há as chamadas questões pós-referendárias que são enormes e muito vastas e continuarão a necessitar de envolvimento e até possivelmente de uma certa mediação e dos bons ofícios da comunidade internacional a começar pelas Nações Unidas.
Depois as Nações Unidas, quando têm missões, têm de as levar até ao fim, não se devem interromper. Há aqui, sobretudo a Sul, uma questão de «nation building», de construção do país. E as Nações Unidas são se podem alhear da necessidade de ajudar este país a reconstruir-se, aliás como nós defendemos em Timor. Aquilo que nós aplicámos a uma terra que nos dizia alguma coisa, temos que o aplicar aqui também. É a mesma situação, digamos: um país como este sem infra-estruturas – como Timor não as tinha porque foram destruídas pelos Indonésios quando saíram – e as Nações Unidas tiveram um papel relevante para ajudar a erguer o país, a criar as suas próprias capacidades. E essa é uma obrigação que se mantém e eu espero que as Nações Unidas não desistam e que as potências compreendam que é preciso continuar a investir, porque só com o contínuo desenvolvimento no investimento é que nós podemos ter estabilidade efectiva.

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