10 de abril de 2010

LEER







©JVieira

O Estado de Unity fascina-me desde que cheguei ao sul do Sudão. É lá que se encontram as maiores jazidas de petróleo e um dos pontos de discórdia entre o norte e o sul.
Por isso recebi com muita alegria o convite para celebrar a Páscoa na missão comboniana de Leer, a segunda cidade de Unity, e consegui convencer o Ir. Alberto a ir comigo.
O avião levou-nos para Thar Jath, um dos maiores campos de petróleo na área. Sobrevoámos muitos poços e a refinaria e a central eléctrica na aproximação à pista. A escala de exploração do crude é impressionante.
Depois o Ir. Nicola levou-nos para a missão, a hora e meia do aerodromo. Na zona dos poços a estrada de terra batida é uma autêntica auto-estrada. E as aves aquáticas nos charcos que sobreviveram a estação seca fazem um espectáculo fascinante. A mais bonita é a solitária águia pescadora.
Passados os poços, a estrada vira picada atravessando planuras imensas e esgalgas de vegetação, excepto uma pequena floresta de acácias com inúmeras manadas de vacas a pastar.
O solo é preto (black cotton soil) e nem uma pedra se vê. O que coloca um problema existencial: sem pedras como se pode escorraçar um cão – e em Leer há tantos a fazer serenatas às cadelas suas amadas?
Os combonianos estão em Leer há dois anos. As residências ainda estão em construção e os missionários e as missionárias vivem em palhotas.
Uma palavra sobre a técnica de construção. Em Leer não há pedra nem areia. Esses materiais vêm de muito longe e custam uma fortuna.
Por isso, decidiram usar a técnica M2: placas de um material parecido com a esferovite, revestidas com uma rede de metal galvanizado contra o qual se injecta cimento em alta pressão. As casas são seguras, mas quando se bate nas paredes soa a choco!!!
A igreja de Leer é uma estrutura provisória: um tecto de plásticos e caniços sobre estacas retorcidas.
A vigília começou às nove da noite com a bênção do Lume Novo no aeródromo que também é uma das ruas principais da povoação.
Depois fomos em procissão para a igreja para continuar a celebração: eu usava o inglês e as pessoas o nuer, a língua que falam.
Os nuer são altos e magros e têm a fama de serem os povos mais aguerridos do sul do Sudão. Os cânticos são monótonos acompanhados por tambores – um grande e um pequenino.
No dia de Páscoa, celebrei a missa às 8h30. Tudo muito calmo. Terminou com uma sessão de esclarecimento sobre o modo de votar nas eleições.
Estava um vento danado e o pó fino que levantava do chão irritava os olhos e a garganta.
Nessa manhã, a Ir. Ana recebeu umas amêndoas azedas: enquanto tomava banho foi mordida por um escorpião, mas a famosa pedra negra faz milagres.
De tarde, para encerrar os festejos, baptizei 40 bebés. Angelina – o nome da candidata independente a governador de Unity, uma filha de Leer – estava no topo das preferências juntamente com Bakhita.
Na segunda-feira de manhã descansei mas o calor era tanto que a cabana em que dormia estava um forno.
De tarde fomos visitar o Nilo e o porto de Adok que serve Leer e onde secam parte do peixe entrançado que comemos em Juba e a escola técnica que os Combonianos estão a construir.
Angelina Teny fez nessa tarde o comício em Leer e atraiu uma multidão, sobretudo mulheres que desafiavam o calor tórrido e cantavam e dançavam pelas ruas.
No fim do dia fiz-lhe uma entrevista: está certa que vai ser a próxima governadora de Unity. Queixou-se que as autoridades locais obstaculizaram-na muito por concorrer contra o candidato do partido, mas diz que isso lhe deu força.
Na terça-feira deveríamos regressar a Juba, mas o avião não apareceu devido a problemas técnicos. Chegou um dia depois.
Durante a estada tive oportunidade de entrevistar uma geóloga alemã que estudou a qualidade da água na zona da exploração do petróleo e chegou à conclusão que o consórcio de empresas da China, Índia, Malásia e Sudão está a provocar uma catástrofe ambiental.
Os técnicos não impermeabilizam os depósitos das lamas resultantes da perfuração dos poços e os sais que usam para compactar o solo e arrefecer as brocas juntamente com chumbo e crómio arrastados pelas chuvas estão a contaminar as águas e as populações e o gado não têm alternativa.
Outra observação: quanto mais nos chegamos à fronteira que divide o sul secular e o norte islâmico e governado pela charia, mais a cerveja é mais forte. Em Juba não se vende cerveja acima dos sete por cento de álcool. Em Leer a mais forte, da Dinamarca, tem dez por cento. Será para marcar o contraste entre as liberdades do sul e as proibições do norte?
Cheguei a Juba exausto com o calor e pó de Leer e a dona malária aproveitou-se da minha fraqueza para atacar. Mas já está quase debelada.
A minha Páscoa foi feliz. Voltei a sentir-me missionário no sentido tradicional.

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