9 de maio de 2008

DARFUR


AJUDEM A FECHAR O TEATRO

O telefone tocou e o padre Jervas foi mais rápido do que eu a atendê-lo. Eis a boa notícia: finalmente a linha telefónica voltou. Já não era sem tempo! Foram dias a fio sem qualquer tipo de comunicações: desde o correio normal ao electrónico e telefone. Além disso, é comum algumas estradas serem fechadas ao trânsito.
As ligações aéreas, essas não têm falhado. Sobretudo – e infelizmente – as que são programadas pela mão diabólica de uma elite que escolheu a morte de outrem como prioridade. Há momentos em que o céu de Nyala é um palco assustador. As cores brancas dos aviões e helicópteros da paz misturam-se no ar com as cores esverdeadas das máquinas da guerra. Uns são comandados pelas forças da paz, UNAMID (MISSÃO DAS NAÇÕES UNIDAS E DA UNIÃO AFRICANA NO DARFUR na sigla em inglês); os outros são comandados pelo governo sudanês. Entre eles parece não haver intenções de combate. Uma atitude dificil de classificar. Medo ou respeito mútuo? Tolerância ou indiferença? Paz ou guerra? Será, talvez, o que se ouve dizer da boca de um qualquer Zé Ninguém que passa na rua e olha para o ar: “Cada um trabalha para o seu patrão que, pelos vistos, é muito rico”. E o Zé Alguém responde: “São marionetas da guerra…"
O povo darfuri ama o seu céu azul celeste, com a variante do cinzento nublado, durante a curta estação das chuvas. Venha tambem o céu das tempestades de areia a despejar a tão incómoda poeira, pois também é parte do nosso clima. Mas não nos obriguem a ser actores de um teatro em cujo ponto de mira está a extinção do povo da tribo Fur e outros seus vizinhos!
Onde está Deus e a beleza da sua criação?! Os darfuris já não são o reflexo da beleza original de Deus e o seu brilho é cada vez mais ténue. A comunidade cristã de Nyala, uma e outra vez, faz da sua oração um grito de revolta contra os crimes e abusos à mão solta neste Darfur sem rei nem roque. No entanto, ficamos gratos a Deus, à medida que vamos aprendendo que Ele não deixará de responder, a seu tempo e modo, à oração de seus filhos.
Se bem que não é absolutamente grave para a vida do missionário a ausência de comunicações, este silêncio – que já durava quatro dias – trouxe uma certa apreensão. Estávamos ansiosos de (boas) notícias. As palavras do Jervas ao telefone são poucas e entrecortadas. No seu rosto leio preocupação. Não me é difícil adivinhar, certeiro, por onde vai a conversa. Já os salamaleques dos amigos que há pouco encontrara na rua traziam, tambem, rumores do mesmo tom.
Quem tinha ligado era o jovem padre Lucas, sudanês, da tribo Maban. É o pároco de El Fasher, a segunda das três paróquias católicas em toda a região do Darfur.
Observo o padre Jervas que pousa, lentamente e com certa renitência, o auscultador. Não me surpreende ouvi-lo dizer que nem sequer conversaram à vontade. A cidade de El Fasher, neste momento, perdeu toda a segurança. O padre Lucas não exclui que haja escutas telefónicas.
Os Janjauids – agora oficialmente com o novo nome de “exército das fronteiras” – revoltaram-se contra o governo em protesto pelos salários em atraso. Tomaram conta dos lugares estratégicos da cidade, especialmene o suq (mercado público) que continua fechado há três dias. Levam o que lhes apetece, estragam e destroem. Os comerciantes, apesar de quase todos armados, não ousam oferecer resistência, pois os Janjauids estão por todos os cantos e não há por onde escapar vivo. No entanto, três personalidades que ocupavam postos-chaves na cidade foram assassinados em suas próprias casas.
Dez dias mais tarde, o padre Lucas fez-nos a surpresa de uma visita facilitda pelos aviões da UNAMID. Foram três dias que lhe fizeram bem ao corpo e ao espírito, entre os seus amigos de Nyala, onde passou vários anos da sua juventude aquando estudante da escola secundária.
Trouxe-nos notícias frescas. “Já há alguma segurança em El Fasher, mas as pessoas ainda têm muito medo de sair à rua. No domingo em que o suq ainda se encontrava sitiado pelos Janjauids não apareceu vivalma na igreja. Os que vivíamos na casa paroquial – três irmãs do Bom Pastor, o diácono e eu – representámos toda a comunidade paroquial na celebração da eucaristia."
Não me saem da mente as palavras que o governador de El Fasher vai repetindo ao povo darfuri e a todo o Sudão através dos meios de comunicação social: “O nosso povo – finalmente – vive em segurança, estabilidade e paz. Os desalojados estão a voltam para as suas aldeias. O acampamento de Abu Chok está a ficar vazio."
É preciso muita coragem para mentir tão descaradamente!
A reportagem televisiva sobre o tão falado campo de refugiados de Abu Chok, em El Fasher, foi uma montagem falsa. E não pode enganar ninguém, porque a verdade é conhecida por toda a gente. Os desalojados, apesar de serem intimidados pelas autoridades, não saíram do campo. Nem de Abu Chok nem dos outros 85 campos espalhados pelo Darfur.
Ir para onde, se as suas aldeias destruidas e queimadas ainda não foram restabelecidas? Evoco as palavras da Hicham que, entre lágrimas, dizia a um dos agentes da organização dos Médicos Sem Fronteiras: “Vivemos com extremas dificuldades no campo. Mas enquanto não tiver um lugar seguro onde habitar com as minhas duas filhas, ninguém me arranca daqui”.
Ela chora o marido e o filho que morreram num ataque dos Janjauids, nos arredores de Kas, pequena cidade no caminho de Nyala para Geneina.
Desde o início do conflito armado, em 2003, o Darfur tem sido testemunha de um bom número de personalidades internacionais e diplomatas que vieram para facilitar a paz aos cidadãos. Fizeram-se acordos, ouviram-se promessas de paz que ainda não trouxeram os frutos desejados. Falta vontade política.
O presidente da república sudanesa, Omar El Bashir, é famoso pelos truques que inventa cada dia para atrasar, a seu favor, a solução do grave conflito nesta zona do Oeste do Sudão. E a comunidade internacional parece ter, infelizmente, acertado o passo com o presidente. As organizações internacionais são impedidas de actuar livremente no terreno e os seus veículos são, mesmo dentro da cidade, alvo de pilhagem e sequestro.
Finalmente, desde Janeiro 2008 começaram a chegar elementos das forças híbridas da paz, a UNAMID. Mas ainda nada de palpável e concreto mudou. Não se vêem acções de desarmamento individual ou colectivo, como era de esperar.
A comunidade internacional deixa passar o tempo, dando a impressão de estar a pactuar com o vil dinheiro do petróleo, do urânio e outros interesses politicos. Em conversa com o Samuel, um sargento da UNAMID meu amigo, compreendi que os próprios soldados da paz estão cansados do trabalho rotineiro de todos os dias, conscientes de que o seu patrulhamento muito dificilmente ajudará a trazer a paz ao Darfur.
Na quarta-feira passada, dia de folga para o sargento Samuel, pus-me a caminho do quartel dos Capacetes Azuis. Queria fazer-lhe uma visita surpresa. Mas quem ficou surpreendido fui eu pelas palavras que não esperava à porta de entrada:
“Ah, o nigeriano? Já acabou os seis meses de serviço. Embarcou ontem com o seu grupo. O novo batalhão da Nigéria chegará amanhã.”
Batalhão que parte, batalhão que chega. Para executar ordens de chefes que não têm a coragem de avançar com uma solução radical e definitiva para a calamidade fantasma que é o Darfur. Matar e ser morto, neste quadrante do planeta, não é fingimento ou truque artístico de palco de teatro. É a realidade quotidiano dos últimos cinco anos.
Senhoras e senhores, por favor, não comprem mais bilhetes! Ajudem-nos a fechar o teatro do Darfur!
Feliz da Costa Martins
Missionário Comboniano em Nyala DARFUR

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