24 de novembro de 2006

Refracções

© J. Vieira

PARA DUAS FOTOGRAFIAS
DE NENNI GLOCK
COM O TEJO AO FUNDO

1.
- Antes de haver pontes
o rio era de ouro, e prata e âmbar, e desse ouro
contaram-me
se fez um ceptro de um rei.
E dos canaviais
contaram-me
se faziam as melhores penas que em Roma se escrevia

- Antes de haver pontes
o rio era das sereias, dos tritões e dos heróis, e por aqui
contaram-me
se escondeu Aquiles, fugido de Tróia, e aqui
o encontrou Ulisses no meio de cavalos voadores e éguas velozes
que só o sopro dos ventos emprenhava

- A mim contaram-me apenas que o barco acostou ao anoitecer
e eu pedi à minha mãe que ela me levasse mas ela não levou.
Para quê
explicou mais tarde
o caixão já tinha fechado e eu não ia poder ver
o rosto do meu pai

2.
Chegaram os monstros sem avisar
e já nem se vestem de preto
Assim seria fácil reconhecê-los
tentar fugir a tempo
avisar os incautos

Os monstros têm cores suaves
e bocas enormes
avançam sem ruídos
ferida aberta na paisagem das águas

As bocas dos monstros engolem o rio
as pontes
as margens
o mundo

Os monstros não deixam
rasto

Depois de os monstros passarem até há quem não acredite
que um dia eles existiram
.


Alice Vieira

Sem comentários:

Enviar um comentário