6 de outubro de 2006

Refracções

O SÍMBOLO DA PAZ

Maria do Carmo sabia que o menino ia nascer um dia destes.
Ou uma noite destas.
O mais certo era ser uma noite destas: a avó estava sempre a dizer que toda a gente da família tinha nascido pela madrugada dentro. E a mãe recordava-lhe sempre que ela tinha decidido aparecer neste mundo na noite de Santo António, quando todos andavam a saltar as fogueiras em Alfama... Por pouco não tinha nascido nas Escadinhas de São Miguel, onde a mãe se tinha sentado, estafada, e com umas dores muito estranhas nas costas... Tão estranhas que, algumas horas depois, estava estendida numa maca no corredor da maternidade, e Maria do Carmo nascia momentos depois.
— Quem sabe desenhar uma pomba?
Maria do Carmo sabe que o menino vai dormir numa cestinha forrada de azul que já está no quarto dos pais à sua espera.
O menino devia ser redondo, redondinho como a barriga da mãe, pensava Maria do Carmo.
Maria do Carmo olhava todos os dias para a barriga da mãe, e cada vez ela estava mais redonda, redonda de apetecer a gente passar a mão por ela e sorrir devagarinho.
— Então, ninguém sabe desenhar uma pomba?
O menino ia ser menino. Toda a gente sabia. Mas ainda não tinha nome. «Primeiro quero olhar para a cara dele», dizia o pai. «Imaginem que escolhíamos Francisco e ele nascia com cara de Pedro?»
Maria do Carmo não sabe como é nascer com cara de Francisco. Ou de Pedro. Mas o pai deve saber. O pai sabia sempre tudo. Há dias ela perguntou-lhe se tinha nascido com cara de Maria do Carmo e ele riu e disse que com ela tinha sido diferente, porque ela ia ter o nome da avó, tivesse ou não cara para ele. «Mas por acaso até tens», rematou ele.
— E quem é que sabe o significado da pomba?
Maria do Carmo só sabe que o menino vai nascer não tarda.
Olha em redor e não vê ninguém, não ouve ninguém.
Gostava de poder estar todos os dias em casa, para olhar para a barriga da mãe e vê-la crescer todos os dias mais um bocadinho.
Tem a certeza de que se olhasse para ela todos os dias, com muita força, e sorrisse para ela, todos os dias, o menino havia de nascer mais depressa.
Mas Maria do Carmo tem de ir todos os dias para a escola. Tem de ficar ali sentada muitas horas, e ouvir falar de muitas coisas.
Gostava que a professora fosse parecida com a mãe, e tivesse a sua voz suave e os seus olhos claros e macios.
Mas a professora tem voz áspera e olhos sem cor, pelo menos Maria do Carmo não conhece nenhuma cor igual àquela. A professora chegou há pouco tempo e nem sequer sabe que em casa de Maria do Carmo vai nascer um menino dentro de poucos dias, dentro de poucas horas. A professora só sabe o que é preciso saber.
— É o símbolo da paz. A pomba é o símbolo da paz.
Maria do Carmo não sabe o que quer dizer símbolo. Mas, pelo modo como a professora fala, Maria do Carmo pensa que paz e pomba devem ser quase a mesma coisa. Coisas boas. Como a barriga da mãe, tão redondinha do menino por nascer.
— Então, ninguém quer vir ao quadro desenhar uma pomba?
Como é que se desenha uma pomba?
Como é que se desenha a paz?
Como é que se desenha um símbolo — que ela não sabe o que seja, mas a professora deve saber?
— Então?
E de repente Maria do Carmo está diante do quadro e pega no giz. E vai riscando, primeiro devagar, depois mais depressa, o giz a arranhar o quadro e ela a arrepiar-se toda, e a mão a desenhar sem ela quase dar por isso.
— Maria do Carmo! Então isso é que é uma pomba?! Onde é que tens a cabeça? Isso é uma bola! Ou um balão! Eu disse uma pomba. Uma pomba, ouviste? O símbolo da paz!
Maria do Carmo não diz nada.
Maria do Carmo quer sair dali depressa, enfiar-se por qualquer buraco no chão,
ou atravessar os vidros de qualquer janela, ou a madeira de qualquer porta. Quer estar em casa, já, quem sabe se o menino não terá já nascido e ela ainda ali.
Outra que desenhe o tal símbolo.
Ela só sabe desenhar a barriga redondinha da mãe, tão parecida com pombas.
E com certeza tão parecida com a paz de que a professora falava.
Porque todas as coisas boas são parecidas com a barriga redonda da mãe.
Maria do Carmo tem muita pena que a professora não tenha entendido nada.
Mas, para não a aborrecer, diz:
— Enganei-me. Isso é um balão, pois é.
E vai silenciosamente para o seu lugar, limpando ao bibe as mãos sujas do pó de giz.

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