17 de maio de 2023

CORAÇÃO: A CASA DE DEUS



O ícone do Coração Trespassado do Bom Pastor é uma chave interpretava para a religiosidade pós-moderna, um olhar para um futuro que já começou.

Parto de um dado inegável: a secularização está a avançar a passos largos, sobretudo no hemisfério norte, e as instituições religiosas estão a perder uso, peso e influência. Os mais jovens aderem menos a formas organizadas de religiosidade: 27 por cento dos norte-americanos e 11 por cento dos europeus descrevem-se espirituais mas não religiosos, de acordo com um estudo do Pew Institute.

Os agentes da pastoral vamos para o desemprego? Acho que não! Mas necessitamos de reciclar o nosso serviço missionário: passar de uma abordagem institucional e estrutural à missão do coração através da mística do encontro. Uma mudança de época exige uma mudança no paradigma da missão.

Religião tem a raiz em religare (voltar a ligar, a atar, a unir) ou relegere (voltar a ler, revisitar). O prefixo RE demanda uma atualização constante do ligar ou do ler.

A busca espiritual das novas gerações revela-se através estilos de vida mais eco-harmoniosos. Os sinais dessa procura espiritual passam pelas opções ecológicas, meditação, ioga, retiros, ativismo pró-clima, harmonia com a criação. Vidas ecologicamente sustentadas ancoradas no vegetarianismo e no veganismo — que é uma forma radical do modo de vida vegetariano — e no recurso ao mercado de segunda mão. Manifestações de uma compaixão integral pelas pessoas, pelos animais e pelos recursos da criação.

Por outro lado, a secularização não mata a fé. Antes, purifica-a. Devolve-a ao essencial: à relação cordial com Deus, com as irmãs e irmãos e com a natureza. É no coração que se encontra o epicentro da religião.

Jesus respondeu ao fariseu que procura uma síntese da fé que o essencial é amar a Deus com todo o coração, com toda a alma, com todo o entendimento e com toda a força e ao próximo como a si mesmo, citando os livros do Deuteronómio e do Levítico. Paulo é mais radical: «toda a Lei se cumpre plenamente nesta única palavra: Ama o teu próximo como a ti mesmo» (Gálatas 5, 14).

Lemos na profecia de Jeremias, capítulo 31, 31-34: «Dias virão em que firmarei uma nova aliança com a casa de Israel e a casa de Judá — oráculo do SENHOR. Não será como a aliança que estabeleci com seus pais, quando os tomei pela mão para os fazer sair da terra do Egipto, aliança que eles não cumpriram, embora Eu fosse o seu Deus — oráculo do SENHOR. Esta será a Aliança que estabelecerei, depois desses dias, com a casa de Israel — oráculo do SENHOR: Imprimirei a minha lei no seu íntimo e gravá-la-ei no seu coração. Serei o seu Deus e eles serão o meu povo. Ninguém ensinará mais o seu próximo ou o seu irmão, dizendo: 'Aprende a conhecer o SENHOR!' Pois todos me conhecerão, desde o maior ao mais pequeno, porque a todos perdoarei as suas faltas, e não mais lembrarei os seus pecados» oráculo do SENHOR».

A profecia de Jeremias anuncia a passagem de uma religião organizada — a religião gravada na pedra, empedernida, do templo e da casta sacerdotal, clerical — para uma relação cordial com Deus, tatuada no coração e não na epiderme.

Nesta aliança nova e eterna «ninguém ensinará mais o seu próximo ou o seu irmão, dizendo: 'Aprende a conhecer o SENHOR!' Pois todos me conhecerão, desde o maior ao mais pequeno, porque a todos perdoarei as suas faltas, e não mais lembrarei os seus pecados», sublinha o versículo 34.

Talvez por isso a cidade santa, a nova Jerusalém descida do céu, não tem templo. João escreve no final das suas visões: «Templo, não vi nenhum na cidade; pois o senhor Deus, o Todo-Poderoso, e o Cordeiro são o seu templo» (Apocalipse 21, 22).

O rasgar de alto a baixo da cortina do Templo no momento em que Jesus entrega o espírito ao Pai tem esse significado: o Santo dos Santos — o lugar mais sagrado do Templo — é escancarado, deixando o mistério de Deus acessível a todos! Não há nem fronteiras nem controladores do divino para mediar a relação entre Deus e o seu povo.

Paulo fala com frequência do cristão como a nova casa de Deus. «Não sabeis que sois templo de Deus e que o Espírito de Deus habita em vós?», pergunta aos cristãos de Corinto (1 Coríntios 3, 16; 6, 19). Pedro diz que somos pedras de um edifício espiritual (1 Pedro 2, 5).

Por outro lado, Jesus fala à samaritana que «a água que Eu lhe der há de tornar-se nele em fonte de água que dá a vida eterna» (João 4, 14).

Daí que Etty Illesum, a jovem judia holandesa morta em Auschwitz, tenha escrito no seu diário: «Dentro de mim há um poço muito fundo. E lá dentro está Deus. Às vezes consigo lá chegar. Mas acontece mais frequentemente haver pedras e cascalho no poço, e aí Deus está soterrado. Então é preciso desenterrá-lo».

Por seu turno, o Papa Francisco escreve no n.º 88 da. Carta encíclica Fratelli tutti: «A partir da intimidade de cada coração, o amor cria vínculos e amplia a existência, quando arranca a pessoa de si mesma para o outro. Feitos para o amor, existe em cada um de nós “uma espécie de lei de ‘êxtase’: sair de si mesmo para encontrar nos outros um acrescentamento de ser”. Por isso, “o homem deve conseguir um dia partir de si mesmo, deixar de procurar apoio em si mesmo, deixar-se levar”.»

É o amor que nos saca da zona de conforto e nos abre a Deus e aos outros, porque «Deus é amor», como não cessa de repetir João na primeira carta que escreveu.

A secularização está a promover a religião do coração baseada numa espiritualidade pessoal, cordial. Importa recuperar a dimensão comunitária da fé.

Contemplar o Coração de Cristo leva-nos a sermos missionários de coração e com coração, que revelam o Coração da Trindade Santíssima e são ponto de encontro com os corações de todos os homens e mulheres, com o grande Coração do Universo.

16 de maio de 2023

ESPELHO MEU


Cada rosto que contemplo
é espelho

da glória bela e bondosa

     de Deus!


Mistério de Amor,
centelha de Graça,
cartografia de amizade,
tempestade perfeita de bênçãos.

Crentes e não crentes
     tanto faz:
Deus é de todos
     e está em todos.

Ele é a nossa Paz!
Ver-nos felizes
   é o que se lhe apraz.

12 de maio de 2023

LITURGIAS VIVAS






O Missal Romano é o livro que a Igreja Católica usa para as suas liturgias. Tem, a negro, tudo o que se deve dizer e explica em letras vermelhas pequenas — as chamadas rubricas — como e quando dizer ou fazer silêncio. 

Os liturgistas, os especialistas versados em liturgia e que velam pelo modo do celebrar católico, defendem as rubricas com unhas e dentes. Um bispo comentou comigo, aparentemente citando o Papa Francisco, que é mais fácil negociar com um terrorista que com um liturgista! A imagem é eminentemente exagerada, mas ilustra bem a tensão que existe em certos sectores.

As liturgias que celebramos nas igrejas e nas capelas da missão de Qillenso podem escapar ao controlo das letrinhas vermelhas do missal, mas são celebrações cheias de vida e cheias de Deus. Muitas vezes dou comigo a pensar até que ponto as rubricas  não são uma tentativa de manter o Espírito Santo — através de quem rezamos — refém da suposta arte — e ordem — do bem celebrar.

Os africanos celebram com o corpo todo e com a vida inteira.

Os cânticos têm uma expressão corporal própria que vai da voz à dança, do ulular às palmas ritmadas. Há cânticos em que a assembleia litúrgica se expressa de uma forma quase tumultuosa: começam a balançar o corpo e os braços para a frente e para trás nas estrofes e no refrão pulam e a batem palmas num exercício exaustivo e cheio de alegria. Chamam-lhe xabe-xabá e acaba por ser um ato de louvor em que todos se associam com as forças que têm, desde a exuberância das pré-adolescentes ao cansaço das velhinhas.

Normalmente os diálogos entre o presidente e a assembleia são proclamados num tom próximo da cadência da liturgia ortodoxa, emprestando um ambiente sonoro de recolhimento à celebração.

A oração dos fiéis é espontânea. As pessoas contam as suas estórias e pedem a ajuda de Deus para as ultrapassar ou louvam-n’O por as ter abençoado depois de uma doença, de um animal perdido, de um acidente… No passado costumavam durar até meia hora. Agora restringem-se a meia dúzia de intenções ou menos.

Durante o ofertório a assembleia faz uma procissão para trazer as oferendas ao altar. Normalmente dão dinheiro, mas também trazem leite, café, cevada, couves, milho e outros produtos agrícolas. Ocasionalmente apresentam um animal (vitelo, cabra, ovelha ou galinha). No passado usávamos as ofertas em género para ajudar os pobres da comunidade. Quando regressei, encontrei a tradição de leiloarem no fim da missa os produtos para juntarem ao dinheiro do ofertório que é usado para a manutenção da igreja e das capelas e outras despesas da missão.

Na liturgia, foram introduzidos alguns detalhes novos. Durante a elevação da Hóstia consagrada, depois de todos proclamarem «Meu Senhor e meu Deus», cantam «Jesus, Pão da Vida» três vezes. Depois, na elevação do Cálice, repetem a oração «Meu Senhor e meu Deus» e cantam «Jesus, Cálice da Vida, Alfa e Omega, que não é mudado». A oração eucarística conclui com triplo amen solene cantado três vezes.

Como oração de graças comum usamos a oração «Alma de. Cristo» proclamada por toda a comunidade em tom próprio.

No final da Eucaristia, os grupos etários — crianças, jovens e mulheres — costumam brindar a comunidade com dois cânticos cada. Normalmente são originais treinados durante o encontro semanal: as mulheres reunem-se às quartas-feiras à tarde e os jovens e crianças aos sábados de manhã.

Talvez o que mais caracteriza as liturgias é o uso do tempo. John Mbiti, um filósofo queniano e pastor anglicano, escreveu que os africanos não contam o tempo, mas fazem-no. E fazem-no sobretudo na liturgia. Uma missa semanal leva quase uma hora, a de domingo duas horas, e a da festa do orago pelo menos três (e acaba com uma refeição comum). O tempo da celebração é sagrado e ninguém olha para o relógio, embora alguns dos mais novos às vezes saiam discretamente a meio da celebração.

9 de maio de 2023

FLORESTA


 Poiso o olhar sobre este mar de verde
tranquilo
que se abre diante de mim
em silêncio glorioso,
prenhe de vida
por debaixo das copas frondosas
a abraçarem o céu de azul pintado
lá longe
onde o finito e o infinito se fundem,
confundem.
Bailado de ramos entrelaçados
à melodia da brisa da tarde,
ondulação verde,
de vida,
condomínio aberto de ninhos,
lar de seres à procura de sustento,
de proteção,
casa viva,
palco da sinfonia polifónica
de chilreios, assobios, rugidos,
silêncio arrepiante,
diamante,
que talha a luz do sol
em fios esguios
através da densa folhagem
e brincam com a nibelina húmida,
coada,
do amanhecer
que embeleza com pérolas líquidas
as filigranas das aranhas tecedeiras.
Fotossíntese essencial,
fábrica de oxigénio
a partir de carbono reciclado.
Até que o avaro machado
a golpes secos de aço,
coadjuvado pelo fogo lambão,
traga pela raíz
este pedaço de paraíso
que paulatinamente vai dando lugar
a campos férteis de cultivo.
Deflorestação
que corta o coração,
o preço do progresso.
Sem regresso?