16 de fevereiro de 2023
A POESIA DA MISSÃO
Há muito que acalentava um sonho que ia adiando dada a sua magnitude: ler de fio a pavio os Escritos de São Daniel Comboni. A obra reune em mais de duas mil páginas cartas, relatórios, estudos, documentos e outros textos escritos pelo fundador da Família Comboniana — os Missionários Combonianos, as Irmãs Missionárias Combonianas, as Missionárias Seculares Combonianas e os Leigos Missionários Combonianos — entre 27 de Dezembro de 1850 e 4 de Outubro de 1881.
Em meados de agosto passado, quando regressei de Portugal, decidi-me: é agora ou nunca. Até porque aqui tempo não falta, faz-se. Descarreguei as 1494 páginas A4 de texto corrido no leitor eletrónico e, mais de 50 horas depois, dei o meu sonho por cumprido.
Ler Comboni dia após dia foi sobretudo uma experiência de comunhão muito forte com o meu pai e fundador: desde a luta interior que travou para deixar os velhos pais (era o único sobrevivente de oito irmãos) e embarcar numa expedição do Instituto de Dom Mazza — de que fazia parte — à África Central até à última carta ao P. José Sembianti, superior dos Institutos masculino e feminino que fundou em Verona, Itália, para a África Central seis dias antes de morrer. Consumido pelas febres, esgotado pelas fadigas apostólicas, dilacerado pelas calúnias, escreve: «Que aconteça tudo o quer Deus quiser. Deus nunca abandona quem nele confia. Ele é o protector da inocência e o vingador da justiça. Eu sou feliz na cruz, que levada de boa vontade por amor de Deus gera o triunfo e a vida eterna».
Comboni é um excelente escritor e leva-nos a viajar com ele através das descrições que faz da peregrinação à Terra Santa, a caminho de África, das viagens Nilo Branco abaixo até Santa Cruz, a missão entre os dincas do Sudão do Sul onde viveu entre fevereiro de 1858 e janeiro de 1859, através dos desertos do Atmur e do Cordofão baloiçando na garupa de um camelo de braço ao peito, de Cartum, El Obeid ou dos Montes Nuba.
Escrevia muito para dar a conhecer a sua amada África Central — «o primeiro amor da minha juventude», denunciar a escravatura atroz a que os seus povos estavam submetidos, para encontrar missionários e meios financeiros para levar por diante a sua missão superlativa — «certamente a parte mais infeliz e abandonada do mundo, como também a mais difícil de evangelizar pelas particulares circunstâncias que se opõem à sua conversão», «a mais vasta», «a mais extensa e povoada missão do universo». Ele queria ter «cem línguas e cem corações para falar em favor da pobre África», «mil vidas para as consumir nesse fim». «Eu morrerei com a África nos lábios», profetizou.
Comboni cultivava a amizade desde gente simples a reis e imperadores. Entre as pessoas amigas figurava «Sua Alteza Real D. Maria Assunção de Bragança, filha do antigo rei de Portugal, que tem a bondade e a paciência de me receber durante 4 e até 6 horas por dia. Grande bem reverterá em favor da África de tão grata e valiosa relação». A princesa portuguesa, de 32 anos, vivia em Roma e foi sua professora de português. Mas também falava e escrevia em latim, italiano, alemão, francês, inglês (assinava The Tablet, o semanário católico que ainda hoje é publicado), árabe, dinca e oromo (uma das línguas da Etiópia que aprendeu quando foi ao Adem, em 1861, resgatar alguns rapazes dessa etnia para os levar para Itália para os formar).
Comboni tinha um só ideal: salvar a África através dos africanos. Escreveu um plano para colocar essa máxima em prática envolvendo todas as forças missionárias da Igreja numa colaboração que não era fácil devido «[a]o maldito egoísmo religioso e fradesco que impera em quase todas as ordens religiosas». Caluniado por alguns dos colaboradores que queriam o seu posto de pró-vigário apostólico e, depois, bispo, perdoava-lhes tudo contanto que se mantivessem a trabalhar na África. E não tinha problemas em beber merisa, a cerveja que os sudaneses faziam com sorgo e que substituía o vinho que era caríssimo e usado só para a missa.
Comboni foi o primeiro a levar missionárias para a África Central: primeiro, as irmãs de São José da Aparição, e depois, as Pias Madres da Nigrícia, que fundou em 1872, hoje chamadas Irmãs Missionárias Combonianas: «Eu fui o primeiro a fazer com que colabore no apostolado da África Central o omnipotente ministério da mulher do Evangelho e da irmã da caridade, que é o escudo, a força e a garantia do ministério do missionário».
Há dois séculos, ser missionário na África Central não era fácil. Não havia os remédios que temos contra as doenças tropicais, o transporte por via fluvial, de camelo ou a cavalo levava meses, os custos eram enormes, «em El Obeid a água custa mais que o vinho em Itália». Comboni chamava cruzes às dificuldades e dizia amiúde: «Deus estabeleceu que as obras que devem servir para a sua maior glória sejam marcadas com o selo da cruz». Para ele as cruzes eram o selo de garantia das obras de Deus. E explicou: «Cristo fabricou a cruz e não a carroça para ir para o céu».
Comboni escreve que lhe chamavam poeta dado o entusiasmo com que falava da África e dos Africanos. Mas a situação na linha da frente era desafiante: «toda esta poesia tornou-se prosa em três dias», confessa. Sobre um colega missionário, rico de pessoal e de meios, comenta: «rogo a Deus que este grande prelado faça o bem; mas não tenho confiança nele, pois falta-lhe a poesia do verdadeiro espírito». A esta poesia da missão chamo mística. O fundador da Família Comboniana era um grande místico, capaz de intuir o dedo de Deus nos acontecimentos e nas pessoas e viver, tranquilo, a realidade.
Ele queria missionárias e missionários «santos e capazes, […] humildes», porque «uma missão tão árdua e laboriosa como a nossa não pode viver da aparência, e de sujeitos de pescoço torto, cheios de egoísmo e de si mesmos, que não cuida como se deve da salvação e conversão das almas». Para ele, «a caridade é a vida do missionária».
Comboni sofria de insónias terríveis, lutava constantemente com a falta de recursos humanos e financeiros, era atribulado por um sem número de problemas, mas não deitava a toalha ao chão: dizia-se «pobre, crucificado, porém sempre alegre».
Só parou com a morte, a 10 de outubro de 1881, em Cartum, no Sudão, cidade de que era bispo. As suas últimas palavras? «Coragem para o presente, mas sobretudo para o futuro» e «Eu morro mas a minha obra não morrerá», como contaram os missionários que assistiram à sua agonia.