25 de novembro de 2021

REZAR JUNTOS





As Missionárias da Caridade, como são conhecidas oficialmente as irmãs de Santa Madre Teresa de Calcutá, construíram na cidade de Adola um pequeno bairro para alojar 12 famílias que necessitam de apoio porque têm membros com deficiências físicas ou mentais.

Uma das casinhas tem uma divisão que foi transformada em espaço de oração com um pequeno oratório de Nossa Senhora de Fátima.

Todas as segundas-feiras, por volta das cinco da tarde, alguns dos moradores do pequeno bairro juntam-se para a reza do terço com algumas das missionárias e outros católicos da cidade. 

Petrós, o catequista do hospício que as irmãs têm noutra parte de Adola, é quem preside à oração mariana.

Quando estou em Adola também participo. Faz-me muito bem!

Os pai-nossos e as ave-marias são rezados, de vagar, em tom de cantilena com um cântico e uma pequena introdução a cada dezena.

Desfruto imenso daquela hora que passa, tranquila, sem se dar conta, a embalar o coração. Um momento profundo, mágico mesmo, de oração para todos.

No fim do terço, Petrós lê o evangelho do dia e faz uma pequena reflexão-exortação em amárico, a língua comum da Etiópia, porque na cidade há uma mistura de etnias. No interior usamos a língua guji.

Para concluir, pede que dê a bênção. É o único ato que faço como padre! De resto, sou mais um membro do Povo de Deus que reza e canta.

Santo Agostinho escreveu: para vós sou bispo, mas convosco sou cristão!

Em Adola, no terço de segunda-feira, sou cristão com os cristãos. E sinto a força enorme do terço rezado em comunidade.

A missão também se faz com a oração comum!

Rezar juntos é celebrar a presença do Deus unitrino que nos une e abençoa, que é Pai e Mãe — como o invocam os gujis. Porque nos ama e está sedento do nosso amor.

Já comecei a presidir à eucaristia em guji nas comunidades de Qillenso e Adola. Guyaté, uma vizinha que frequenta o décimo segundo ano, corrige a homilia que escrevo e que depois leio.

Voltar a ser criança, reaprender o B A BA aos 61 anos é complicado, mas é possível. Até porque «de tudo sou capaz naquele que me empodera». Faz parte do processo de esvaziamento que a missão pede para poder entrar nesta cultura e viver com este povo a fraternidade ao redor de Jesus — o Senhor da Missão!

18 de novembro de 2021

ETIÓPIA: PRIMEIRAS IMPRESSÕES









O avião aterrou no aeroporto de Adis Abeba — a Nova Flor — por volta das seis da manhã de 30 de Outubro. Na contagem etíope, era zero horas, o início do novo dia. Para mim é a hora zero de uma nova fase de serviço missionário comboniano, 21 anos depois da minha primeira estada na Etiópia.

As montanhas gastas e enrugadas que desenham a linha do horizonte do aeroporto, em cambiantes cinza e laranja, coloridas pelo sol nascente, afirmam que estou a pisar um país antigo, nobre, grandioso. Sagrado.

A cidade parece mais limpa, arrojada, maior. As construções de zinco entre o aeroporto e o centro deram lugar a grandes edifícios modernos, de muitos andares. As avenidas, mais largas e bem pavimentadas. O metro de superfície atravessa, em viaduto, a capital com duas linhas.

O primeiro-ministro Abiy Ahmed Ali dá, de sorriso rasgado, as boas-vindas de um póster gigante na empena de uma torre na Praça da Cruz, o centro da cidade, que também cresceu em altura com edifícios de linhas arquitectónicas ousadas.

Fui caminhar pelas ruas da cidade para a sentir. Um miúdo fixou-me com olhos grandes, ridentes e gritou «China!». Esperava ouvir «Frenji!», estrangeiro! A China está por detrás de boa parte do progresso da cidade e do país. A que custo, não sei! O trânsito, durante a semana, é caótico e o ar muito poluído.

Duas décadas passam depressa e deixam marcas indeléveis de mudança. Contudo, em Novembro de 2020 o país voltou à guerra no Estado do Tigray. Os tigrinos, a etnia que controlou o poder no país desde 1991 até 2018, pegaram em armas para obter mais autonomia do governo federal. Na capital, a guerra sente-se sobretudo através das filas longas para a compra de pão. E do estado de emergência desde o início de Novembro.

Vim para Qillenso, a 435 quilómetros a sul de Adis Abeba, a 5 de novembro, depois de iniciar o processo de legalização da minha estada no país.

A viagem revelou algumas novidades: os grandes bairros sociais na periferia da cidade com inúmeros autocarros para transportar os trabalhadores; a autoestrada entre a capital e Hawassa já tem uns 130 quilómetros — a portagem custa o equivalente a dois euros — e facilita imenso a viagem, tornando-a mais rápida e segura; no Vale de Rift há inúmeras estufas de plástico para o cultivo sobretudo de flores; nota-se um grande desenvolvimento do sector agrícola (muito trigo e tef já ceifados, plantações de vegetais e vinhas); vi mais igrejas ortodoxas ao longo da estrada em competição com as mesquitas; Langano, o lago de águas castanhas, é agora uma estância turística com muitos hotéis novos; Hawassa, a capital do Sul, cresceu muito e transformou-se numa cidade moderna, movimentada, asfaltada; a estrada para Neguele — que passa em Qillenso — está alcatroada até Kebre Menghist, a cidade a 30 quilómetros a sul da missão, que os gujis chamam de Adola, o lugar onde Deus criou as primeiras pessoas. O trabalho foi feito pelos chineses. Na parte sidamo há pontos bastante degradados a pedir intervenção urgente.

Chegamos a Qillenso à noite. Esperava-nos o padre Hippolyte Apedovi, um jovem comboniano do Togo há dois anos na Etiópia.

No sábado fiz o primeiro reconhecimento: a missão — que me acolheu há quase 30 anos — mudou muito. Tem eletricidade (quando há corrente). O sinal da rede móvel é fraco e os dados móveis só funcionam em Adola. A floresta foi devastada para dar lugar a campos de favas, ervilhas, cevada, trigo, milho, tef, café, couves, batatas. A colina, por cima da missão, é agora um eucaliptal. O campo de futebol foi aplanado pelos construtores da estrada. Temos uma pequena plantação de café. A TV via satélite, gratuita, apanha bem a CNN e a BBC de vez em quando.

A casa das irmãs está fechada. E o programa de promoção da mulher também. A clínica quase não funciona. Não há uma congregação com irmãs disponíveis para virem para Qillenso?

A escola, que antes tinha alunos da primeira à quarta classe, agora funciona da quinta à oitava. Tem 187 estudantes matriculados: 102 rapazes e 85 raparigas. As matrículas ainda não fecharam. Os catequistas vieram saudar-me. Alguns são dos meus tempos!

No sábado à tarde fomos a Adola, o novo centro pastoral da missão.

Fiquei impressionado com o desenvolvimento da cidade e, sobretudo, com a presença comboniana: uma biblioteca de apoio aos estudantes do secundário, uma igreja grande dedicada a São Daniel Comboni, um hostel para uma dúzia de alunas e alunos que precisam de apoio para estudar na cidade. Há nove capelas a funcionar na zona.

Celebramos a missa na capela de bambu com os utentes do hospício das irmãs de Madre Teresa, as Missionárias da Caridade: um oásis verde e tranquilo que acolhe bebés abandonados (uns 16), pessoas com doenças graves e terminais e distribui alimentos e remédios aos mais pobres. Cinco irmãs — quatro da Índia e uma da Roménia — encarnam a ternura de Deus por essa gente necessitada.

No domingo de manhã cedinho regressamos a Qillenso para a missa dominical às 9h00. A igrejinha da missão estava cheia.

As pessoas andam mais bem vestidas e parecem mais saudável (graças sobretudo à produção agrícola; antes cuidavam mais do gado que não dava rendimento, porque não o queriam vender). Os cânticos foram acompanhados por uma pequeno órgão eletrónico. Reconheci algumas pessoas idosas. Alguns jovens adultos disseram que jogámos futebol juntos (quando eram pequenos).

A eucaristia (de quase duas horas) terminou com a bênção de meia dúzia de estudantes que durante a semana iam fazer o exame de admissão à universidade. A maioria eram moças. Há 30 anos a carreira académica das meninas terminava para a maioria com a quarta classe. Agora já há jovens de Qillenso com curso superior.

Durante a semana visitamos a missão de Gosa, a uns 30 quilómetros a norte de Qillenso. O lugar onde antigamente só havia a missão cresceu muito. As irmãs e o pároco também partiram de lá e a missão é agoras uma capela de Qillenso. A clínica e a escola primária funcionam com pessoal local. Tem uma igreja nova, ampla. A floresta cedeu espaço à agricultura.

No fim de semana seguinte voltamos a Adola para a reunião dos catequistas da zona, para a missa dominical e para a assistência espiritual às irmãs.

A igreja nova e ampla, lindamente decorada, em anfiteatro, estava bem composta com jovens estudantes, na maioria. A aparelhagem de som de uma igreja protestante vizinha quase que nos abafava! Encontrei duas pessoas que me são muito queridas: Dabalá Elema — que nos ajudava nas traduções dos textos litúrgicos e dos Evangelhos para guji — e Uddessa Jarso — um adolescente que concertava as bolas de futebol e me ajudou na aprendizagem da língua. Ambos têm bons empregos, famílias bem estruturadas.

No domingo à tarde, presidi ao sepultamento de um bebé de quatro meses no cemitério do hospício das irmãs. Impressionou-me a multidão que se reuniu para apoiar à família devastada pela dor e rezar juntos naquele momento de dificuldade.

Em Adola, os ortodoxos começam a cantar e a rezar às 4h00 da manhã através do sistema de som das suas igrejas, em clara competição com os muçulmanos. A oração pode ir até às 10h00. Por isso, é preciso ir cedo para a cama — eu vou às 21h00 — para aproveitar o silêncio e dormir!

Em Adis Abeba, continuam a tratar dos papeis para oficializar a minha presença no país. E da carta de condução.

Por agora, ando às voltas com a língua guji. O meu organismo está a habituar-se de novo aos 2300 metros de altitude. Tempo de paciência e calma!

Aqui, em Qillenso, não se sente o ambiente de tensão provocado pelo levantamento dos tigrinos há um ano. A vida da aldeia decorre tranquila. A estrada regista grande movimento de pessoas e bens, até durante a noite. Em Adola, há recolher obrigatório desde as 19h00 às 5h30 da manhã.

3 de novembro de 2021

A RIQUEZA DO LEITE DE CAMELA


O leite de camela ganha o estatuto de superalimento e afirma-se como fonte de rendimento.

Algumas economias africanas têm beneficiado com as novas dietas divulgadas pelos influenciadores das redes sociais como o consumo de abacate – que já tratei nesta coluna – e a descoberta do tef, um cereal resistente, miúdo e muito nutritivo oriundo da Etiópia que é a base da injera, o pão nacional etíope.

Agora é o leite de camela que ganha o estatuto de superalimento depois de os nutricionistas terem vindo a afirmar os seus benefícios para a saúde. Encontra-se à venda fresco, congelado, em pó, em iogurte, queijo, gelados e até com vodca. Afigura-se como mais uma oportunidade económica para a África, onde vivem mais de 80 por cento da população global dos dromedários. A lista dos maiores produtores mundiais é encabeçada pelo Quénia, seguido da Somália, Mali, Etiópia e Arábia Saudita. Em 2020, o mercado global do leite de camela gerou mais de 2000 milhões de euros. A grande procura e oferta limitada do produto faz crescer o negócio em oito por cento ao ano.

O leite de camela é um recurso alimentar secular para as comunidades nómadas dos territórios áridos no Norte e Leste de África  e no Médio Oriente; é uma fonte nutritiva em tempos de seca, porque o animal continua a dar leite mesmo não bebendo água todos os dias.

A camela ganha à vaca no confronto directo porque o seu leite tem menos gorduras mono e polinsaturadas, é mais tolerado por ter pouca lactose, possui propriedades antimicrobianas e mais vitaminas e minerais (é dez vezes mais rico em ferro, zinco e vitamina C), tem proteínas de insulina e inibidoras das hepatites B e C.

Pela negativa, sobressai o preço – há muito menos camelas que vacas, uma vaca produz 24 litros por dia, enquanto a camela só dá seis, precisa de 13 meses de gestação e leva de 12 a 18 meses a amamentar a cria. Por outro lado, não vivem em explorações intensivas e não se adaptam bem à ordenha mecânica. Depois há o problema do armazenamento e transporte: o leite de camela não aguenta o processo de pasteurização – as proteínas reagem mal ao aquecimento, o que limita o transporte e tempo de prateleira do produto fresco. O problema está a ser resolvido com a introdução da rede de frio: distribuição de frigoríficos solares por parte de algumas ONG e introdução de máquinas de venda refrigeradas no Quénia, onde um litro de leite fresco custa 100 xelins, uns 78 cêntimos.

Uma curiosidade: em árabe as palavras jámal (camelo), jamal (bonito, lindo) e o feminino jamila – que também são nomes próprios – partilham a raiz jml. Quando vivia na Etiópia, todos os anos ia renovar os meus papéis de trabalho como professor numa zona onde havia muitos camelos com mulheres a vender o leite nas ruas. Ao ver os lábios feios, o olhar altivo e o andar desajeitado do animal, perguntava a mim mesmo onde estava a sua beleza. Um dia recebi a resposta: a beleza do camelo é uma beleza útil, porque tudo se aproveita – o leite, a bosta (para cozinhar), o pêlo (para tecidos), a carne, a pele (para tendas) e os ossos (para fabricar instrumentos de trabalho). Lindo!