Que se ouçam disparos aqui e além,
de noite ou de dia, intermitentes e passageiros como muitas outras vezes os temos
ouvido é banal e comum nestas terras. Porém, naquela noite de quarta para
quinta-feira o tiroteio foi demasiado longo e não se esperava e muito
menos se desejava que se transformasse numa tão assanhada batalha de vários
dias. A parte central da cidade e o bairro de Malaja sofreram maiormente. Mas quase
não houve lugar em Nyala que tenha escapado à violência militar naquela semana,
de forma muito especial nos dias 4 e 5 de Julho de 2013.
Já tinha chegado a maioria dos alunos
do curso de língua inglesa que funciona nas instalações da paróquia católica. Não houve
tempo para sugestões nem anúncios mas também não foi necessário, pois num abrir
e fechar de olhos o recinto ficou literalmente vazio. A mesma coisa aconteceu
nas outras escolas da cidade, estabelecimentos ou instituições onde diariamente
se juntam pessoas em grande número. As lojas, como também os muitíssimos e
grandes mercados ao ar livre, seguiram o mesmo rumo: salve-se quem puder. Os
cidadãos retiraram-se para dentro de casa, dando campo livre aos dois grupos
rivais que tentavam eliminar-se mutualmente como crianças no jogo do
esconde-esconde. Com a diferença fatal de que este era um jogo bélico verdadeiro
em que as armas eram de fogo real. Além disso, acrescente-se que um grande número
de pessoas também não foi poupado à despiedada crueldade dos soldados que
destruiram e fizeram pilhagem das suas lojas e armazéns a seu bel-prazer.
Para
nós os três missionários da comunidade comboniana a situação não foi diferente da
do comum cidadão em Nyala. Optámos por não arriscar sair de casa, à espera que
passasse a tormenta do tiroteio que se ouvia ora de mais longe, ora de mais perto
ou mesmo a poucos metros de distância da missão, por vezes distinguindo-se
também o som de armas pesadas.
Dois dias depois, quando o perigo
pareceu ter diminuido consideravelmente, saí à rua, muito cautelosamente e com
algum temor. Havia pouca gente e o mercado quase não tinha vida. Tinha apenas
acabado de pagar o quilo das lentilhas à vendedeira quando esta se levantou de
um salto e nos encontrámos com toda a outra gente correndo na direcção oposta donde
viera o som da rajada de metralhadora.
Passados que foram cinco dias o
som ameaçador da guerra tinha praticamente deixado de se ouvir. No entanto, o
recolher obrigatório continuava em vigor desde as sete e meia da tarde até às
sete horas da manhã. Tive ocasião de observar alguns dos sinais devastadores e profundamente
tristes do pós-combate nas ruas de Nyala. Paredes baleadas, vidraças estilhaçadas,
mercados arrasados. Ambos os hospitais, o civil e o militar, ainda continuam a cuidar
dos feridos mais graves, entre eles um grande número de civis inocentes. Ouve-se
o lamento das mais de trinta famílias enlutadas. Já sem lágrimas para chorar, grita
enraivecida a mãe duma criança atingida por fogo cruzado: “Não foi suficiente a
miserável situação das doenças, da pobreza e da fome em que nos deixaram os janjauides
e o seu ‘patrão’ de Cartum para, além disso, termos também agora de chorar os nossos
mortos caídos em mais uma batalha sem sentido!”
O combate foi entre o exército
das fronteiras – cujos membros foram sempre conhecidos por janjauides – e o exército
da segurança nacional. Duas instituições governamentais sudanesas. O líder máximo
dos janjauides, Ali Kusheib, um dos quatro criminais sudaneses indigitados pelo
Concelho de Segurança da ONU foi atingido gravemente, permanecendo até hoje entre
a vida e a morte.
No segundo dia do referido combate
o vice-presidente do Sudão, Ali Osman Taha, chegou de Cartum a Nyala. Depois de
várias horas entre discursos e reuniões de mesa redonda não conseguira produzir
o desejado cessar-fogo. O governo sudanês continua a não poder ou a não querer
(?) solucionar o colossal problema da região do Darfur que muita tinta e muito
sangue fez correr. Quando se verá a solução deste velho conflito? Quem poderá
trazer a paz? No profundo do meu ser ouço ecos da simplicidade e inocência de
uma criança que, segura de si mesma, responde: Deus, porque Deus tudo pode. Porém,
no diálogo com a mesma criança ouço também o próprio Deus que, carinhosamente, acrescenta:
eu dei esse poder aos homens mas eles não têm tido vontade de o utilizar devidamente.
Engajada seriamente no diálogo
com o Todo-poderoso, a criança comprometeu-se rezar para que os homens venham a
ser pessoas de boa vontade e queiram trazer a paz ao Darfur. Deus apreciou a solidariedade
humana daquele pequeno coração de ouro. Mas, por fim, despediu a criança com
estas palavras: o teu modo de rezar faz-me muito prazer. Todavia, deixa que te
ajude a completar o que falta à tua oração. E o pequeno coração de ouro escutou
as palavras de Deus que disse: vai por toda a terra e fala aos responsáveis e
políticos de todo o mundo. Ergue a tua voz e diz-lhes que me reservem um lugar
nas suas conferências e reuniões de mesa redonda. Então sim, a paz irá chegar!
Padre Feliz da Costa Martins
Missionário Comboniano em Nyala –
Darfur - Sudão